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2.3 ASPECTOS GERAIS DA ACTOR-NETWORK THEORY (ANT)

2.3.1 Conceitos-chave da TAR

2.3.1.3 Translação

O conceito de translação está fortemente associado a TAR. Constitui algo tão importante que a própria ANT é conhecida por muitos como sociologia da translação (CZARNIAWSKA, 2009). Sua origem está relacionada aos estudos de Michel Serres (1982, 1990), aos quais entendem translação como o processo de estabelecer conexões, forjar uma passagem entre domínios ou estabelecer comunicação. Mas como esse conceito pode ser entendido na TAR?

Callon e Law (1982) mostram as diferentes concepções sobre a importância do interesse social para os estudos das ciências sociais. A partir da diversidade de interesses, tem-se um movimento de transformação que atua como um "funil de interesses" (CALLON; LAW, 1982, p. 619, tradução nossa). É por meio de transformações ou translações que as diferentes demandas daqueles vão aos poucos se aproximando e tornando-se equivalentes.

Dessa maneira, a translação pode ser entendida como um movimento que aproxima diferentes concepções tornando possível a formação de uma rede de atores heterogêneos.

Latour (2000, 2001) explica a translação a partir de

uma interpretação dada pelos construtores de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam (LATOUR, 2000, p. 178), refere-se a todos os deslocamentos por entre outros atores cuja mediação é indispensável à ocorrência de qualquer ação. Em lugar de uma rígida oposição entre contexto e conteúdo, as cadeias de translação referem-se ao trabalho graças ao qual os atores modificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios interesses (LATOUR, 2001, p. 356).

Os movimentos de translação que levam às construções dos fatos podem ser agrupados em cinco diferentes estratégias de interesse. De acordo com Latour (2000), no primeiro grupo há uma adaptação dos interesses/ objetivos dos cientistas aos dos demais indivíduos - "eu quero o que você quer" (LATOUR, 2000, p. 178).

No segundo, tem-se um cenário contrário, onde os construtores de fato buscam modificar os interesses das pessoas - "eu quero; por que você não quer?" (LATOUR, 2000, p. 183). Na concepção de Latour (2000), esta modificação de interesses é difícil de ser alcançada. A difícil aplicabilidade da segunda estratégia leva ao desenvolvimento da estratégia do terceiro grupo, onde há uma tentativa de congruência de objetivos - "se você desviasse um pouquinho" (LATOUR, 2000, p. 183).

Nessa situação só é possível convencer o outro quando a solução apresentada pelos actantes é inexequível ou está bloqueada, sendo proposta uma solução alternativa para atingir os objetivos. No entanto, a solução proposta deve representar apenas um pequeno desvio com relação a original e mostrar-se bem sinalizada, ou seja, ser convincente de seu sucesso. Nota-se que a translação do terceiro grupo não visa modificar o objetivo como acontece com a de segundo grupo, mas apenas atingi-lo de outra forma.

No quarto grupo, por meio de táticas distintas - "remanejando interesses e objetivos" (LATOUR, 2000, p. 187) - o construtor dos fatos vai anular os interesses explícitos. Essas táticas são: promover uma nova interpretação dos objetivos dos grupos criando novos problemas que demandem soluções inéditas; desenvolver dentro dos grupos novos objetivos; criar grupos artificialmente construídos onde se possa incutir determinados tipos de objetivos; transladar o objetivo de modo que o desvio proposto não pareça um desvio, mas a solução pretendida e vencer a atribuição de responsabilidade pelas ações (LATOUR, 2000).

Por fim, a quinta estratégia consiste na transformação do construtor de fatos em um ponto de passagem obrigatório (PPO), essa pode ser vislumbrada como a estratégia mais

poderosa de todas, a qual, de certa forma, todas as estratégias anteriores convergem-se. Ao capturar o interesse das pessoas para uma dada alegação, contribuindo para a sua propagação no tempo e no espaço, o cientista se torna indispensável (LATOUR, 2000).

As estratégias de translação tecidas por Latour (2000) podem ser entendidas como as negociações necessárias para que os interessados sigam as ideias propostas pelos construtores de fato e para que se consiga formar um objetivo comum. Ou seja, é o processo de transladar interesses por meio dos actantes.

Mas a análise dos processos de translações não é feita exclusivamente por meio de suas estratégias, Callon (1986) ainda apresenta os momentos de translação. Esses se referem a como se tornar indispensável por meio do problema levantado e objetivam também demonstrar como um conjunto de entidades dispersas torna-se um coletivo organizado. Isto é, como uma série de entidades diferenciadas – humanos e não-humanos - formam um todo heterogêneo.

Os passos que levam a composição desse coletivo são ilustrados por Callon (1986) e por Latour (2001). Em Latour (2001), o foco é a diferenciação entre a composição de coletivos modernos e antigos; enquanto, em Callon (1986) busca-se entender de forma pormenorizada como ocorre a translação – uma das etapas anunciadas por Latour (2001).

Para Latour (2001), os movimentos pelos quais um dado coletivo estende seu tecido social a outras entidades pode ser entendido por meio da translação, permuta, recrutamento, mobilização e deslocamento. Dentro desses movimentos, a translação é sintetizada por Latour (2001) como os meios pelos quais são articuladas/ relacionadas espécies variadas de elementos (humanos e não-humanos).

E após essa articulação tem-se uma troca de propriedades entre as diversas espécies alistadas na fase anterior. Seguindo o processo, o recrutamento consiste na sedução ou manipulação de um indivíduo a participar de determinado coletivo a qual vem acompanhada da chegada de não-humanos dentro do coletivo, trazendo assim novos recursos (mobilização) e resultando na configuração de novos tipos de híbridos. Por fim, tem-se o deslocamento que consiste na nova direção tomada pelo coletivo após o recrutamento e mobilização de novos agentes (LATOUR, 2001).

É por meio desses movimentos que Latour (2001) traça as diferenças entre um coletivo considerado antigo/ primitivo e um moderno/ avançado. Ao contrário do que se pode pensar, não é pelo grau de desenvolvimento técnico que essa diferença é estabelecida, mas pela quantidade de elementos que participam desses movimentos. Sendo assim, um coletivo moderno consegue transladar, permutar, recrutar e mobilizar uma maior quantidade de espécies do que os antigos (LATOUR, 2001).

Mas como entender de forma minuciosa as etapas da translação? Como é feita essa aproximação de entidades que a princípio parecem tão dispersas?

Callon (1986) sintetiza essa articulação ou aproximação entre elementos dispersos aos quais se aproximam formando um ator-rede por meio de quatro momentos que são a problematização, interessamento, inscrição e mobilização. Quando o coletivo passa por essas etapas forma-se a articulação anunciada em Latour (2001).

A princípio tem-se a problematização ou como tornar-se indispensável, onde determinados atores são estabilizados como ponto de passagem obrigatória (PPO)4. Na rede de relacionamentos construída por eles e na qual eles definem outros atores há a formação de uma aliança/ associação para definir uma identidade ou propósito comum.

Como segunda fase tem-se o interssement (que pode ser traduzido como interessamento) ao qual consiste num conjunto de ações diversas pelas quais uma entidade busca atrair outra entidade e assim agregar a maior quantidade possível de elementos.

Na terceira fase enrolment (inscrição ou envolvimento ou alistamento), tem-se a definição e atribuição de um conjunto de regras para atores que as aceitam formando uma aliança. Por fim, a quarta fase consiste na mobilização de todos os aliados para responder ao questionamento se o porta-voz de fato representa a todos. Caso haja contestação da representatividade do porta-voz tem-se a dissidência, mas se não houver o coletivo é temporariamente mantido. A Figura 4 sintetiza os principais momentos de translação que são apresentados por Callon (1986).

Figura 4 - Síntese dos Momentos de Translação

Fonte: Baseado em Callon (1986).

4 Para Callon (1986) consiste em algo que levará os atores a confluir suas demandas num único ponto para que todos os atores possam alcançar seus objetivos.

1o) PROBLEMATIZAÇÃO

(a) Seguir o movimento dos atores (b) Interdefinição parcial dos atores (c) Definição de PPO's

(d) Formação de alianças

2o) INTERESSAMENTO

(a) Grupos de ação para estabilizar identidades (b) Consolidação e (re)definição de identidades (c) Interrupção de associações competitivas (d) Construção de um sistema de alianças

3o) INSCRIÇÃO (a) Definição de estratégias (b) Definição de papéis

4o) MOBILIZAÇÃO

(a) Constituição de um porta-voz (b) Legitimidade do porta-voz

Depois da mobilização (CALLON, 1986) ou do deslocamento (LATOUR, 2001), o que será que acontece? Há um movimento constante de contestações, dissidências e chegada de novos actantes. Essa dinâmica leva Latour (2012) a afirmar que não há grupos, mas apenas formação de grupos. No entanto, quando se percebe certa estabilidade e a partir do momento em que as associações chegam em um ponto onde não há mais contestações ou dissidências, a caixa-preta é fechada (CALLON; LATOUR, 1981; LATOUR, 2000).

Contudo, não se pode afirmar que o conteúdo da caixa-preta5 é absoluto, isso porque os atores inscritos ao transmiti-lo acabam por intervir de certa forma no seu conteúdo. "[...] todos os atores estão fazendo alguma coisa com a caixa-preta. Mesmo na melhor das hipóteses, eles não a transmitem pura e simplesmente, mas acrescentam elementos seus ao modificarem o argumento, fortalecê-lo e incorporá-lo em novos contextos" (LATOUR, 2000, p. 171).

Devido ao transporte de conteúdo das caixas-pretas ocasionar modificações/ deformações algo que é característico da translação, Law (2006) entende que translação consiste num movimento de similaridade e mudança. Por isso acredita que translação é traição, no sentido de que não leva a uma fidedigna representação do objeto que é transportado. Law (2009a) apresenta o exemplo da transferência de tecnologia entre empresas, onde sempre consiste numa modificação, pequena ou não, de seu conteúdo.

A translação ao mostrar de que forma as associações são estabelecidas, tanto por meio das estratégias em Latour (2000), como pelos momentos em Callon (1986) e Latour (2001), permite ao pesquisador criar mecanismos para de fato seguir as associações em seu constante processo de formação.

Na década de 1990, por meio da ascensão de um movimento denominado de post-ANT (LAW; HASSARD, 1999), são desenvolvidos conceitos–chaves, aos quais buscam outros caminhos para TAR, a exemplo da noção de performatividade associada ao estudo da formação das realidades. Dessa forma, a performatividade será apresentada na subseção a seguir.

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