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Mapa 4: Línguas com valor de identidade de formas na África – dados do WALS

2.1 A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL

2.1.3 Hipóteses para a formação do português brasileiro

2.1.3.3 A transmissão linguística irregular

Baxter (1992, 1995), Lucchesi (2000, 2003b) e Baxter e Lucchesi (1997, 2006) têm desenvolvido o conceito de transmissão linguística irregular (TLI) para dar conta de situações em que uma variedade histórica de uma língua se forma por força de contato multilinguístico, passando a apresentar estrutura próxima às estruturas de línguas crioulas, sem que se configure um caso típico de pidginização ou crioulização. Nas palavras de Lucchesi:

A transmissão linguística irregular é um conceito mais amplo do que o de pidginização/crioulização, pois engloba tanto os processos de mudança provenientes do contato entre línguas através dos quais uma determinada língua sofre alterações muito profundas na sua estrutura, do que resulta o surgimento de uma outra entidade linguística, quanto os processos nos quais uma língua sofre alterações decorrentes do contato com outras línguas, sem que essas alterações cheguem a configurar a emergência de uma nova entidade lingüística qualitativamente distinta (LUCCHESI, 2000, p. 7).

Conforme postulada, a TLI contribui para o entendimento da constituição histórica do PB uma vez que esse se constitui uma variedade histórica da língua portuguesa que apresenta mudanças induzidas pelo contato do português com outras línguas presentes no Brasil colonial. Os pidgins e crioulos configuram um caso extremo de TLI, enquanto uma variedade histórica de determinada língua alvo está em outro nível do processo. De acordo com Lucchesi “a TLI constitui um contínuo de níveis diferenciados de socialização/nativização de uma segunda língua, adquirida massivamente, de forma mais ou menos imperfeita, em contextos sócio-históricos específicos” (LUCCHESI, 2003, p. 274).

O acesso aos modelos da língua alvo é fundamental para o processo de TLI, visto que, com o prolongamento de uma situação de contato entre línguas pode haver uma condição sociolinguística de acesso restrito ou de maior acesso aos modelos da língua alvo, e cada uma dessas condições desencadeará um processo mais ou menos intenso. Havendo uma

continuidade da situação de contato e pouco acesso aos modelos da língua alvo “a expansão gramatical do código de comunicação emergencial ocorre principalmente através dos processos de reestruturação original da gramática e através da transferência de estruturas provenientes das outras línguas” (LUCCHESI, 2003, p. 273), o que é chamado de influências do substrato. Tal situação dá ensejo à formação de pidgins e crioulos.

Porém, se houver uma continuidade da situação de contato e mais acesso aos modelos da língua alvo, geralmente prestigiados na comunidade de fala, tais modelos “tendem a suplantar os processos de transferências de estruturas do substrato e/ou reestruturação original da gramática” (LUCCHESI, 2003, p. 274). Nesse caso, há a formação de uma variedade da língua alvo que, contudo, apresenta certas características resultantes de sua nativização entre os falantes de outras línguas e seus descendentes.

De acordo com Lucchesi (2003, p. 275), o processo de reestruturação gramatical caracteriza a TLI em todos os seus níveis. Contudo, antes desse processo, há uma simplificação dos dispositivos morfossintáticos nas fases iniciais da TLI. Tal simplificação, de acordo com o autor, justifica-se pelos seguintes fatores:

a. O difícil acesso dos falantes das outras línguas aos modelos da língua-alvo;

b. Os falantes dessas outras línguas, por serem em sua maioria adultos, não mais dispõem de acesso aos dispositivos mentais da faculdade da linguagem;

c. A ausência de ações normativizadoras.

A reestruturação gramatical ocorre nas fases seguintes e é feita com maior ou menor intensidade a depender do nível de acesso aos modelos da língua alvo, conforme foi dito acima. Lucchesi (2003, p. 274) salienta que entre as línguas crioulas também ocorrem graus variados de reestruturação gramatical. Em alguns casos, a reestruturação é mais profunda, como no Crioulo francês do Haiti e no Angolar (crioulo da Ilha de São Tomé); em outros, esse processo é menos profundo, como se deu no Crioulo francês da Ilha de Reunião e no Crioulo cabo-verdiano de base portuguesa.

Lucchesi (2003, p. 276) considera como características fundamentais do processo de TLI: (i) perda, ou variação no uso de morfologia flexional e palavras gramaticais; (ii) alteração dos valores dos parâmetros sintáticos em função de valores não marcados, que não implicam, entre outras coisas, movimentos aparentes na estruturação da sentença; e (iii) gramaticalização de itens lexicais para preencher as lacunas na estrutura linguística.

Diversas estruturas presentes atualmente no PB são atribuídas ao contato linguístico que marcou a história do Brasil colonial. Algumas delas são mais generalizantes que outras por conta dos fatores sócio-históricos atuantes em cada caso (LUCCHESI, 2003, p. 278-281). Dentre elas, estão:

a) Eliminação de certos dispositivos gramaticais mais abstratos e de uso restrito da língua alvo, como em (4). Em (4a) observa-se a eliminação da marca morfológica da 2º pessoa da flexão verbal, que ocorre na maioria das regiões brasileiras, e em (4b) a eliminação da marca do subjuntivo.

(4) a. Você foi ao médico ontem? b. Talvez Maria vai na feira.

b) Manutenção da variação no esquema presença/ausência do dispositivo gramatical da língua alvo, como a ausência da flexão de número, tanto no sintagma nominal, em que apenas o primeiro elemento é marcado, como no sintagma verbal, no exemplo em (5).

(5) Meus tio chega de viagem hoje.

c) Alteração na frequência de uso relativamente à marcação de determinados parâmetros sintáticos, a exemplo de (6), em que há uma mudança em relação ao parâmetro do sujeito nulo com a realização do sujeito pronominal.

(6) Eu cheguei e não o encontrei em casa.

d) Recomposição da estrutura gramatical da língua alvo, eliminando a variação ou reduzindo- a a uma pequena escala, como a variação na concordância de gênero em (7):

(7) Ana é casado com meu filho.

e) Manutenção da variação no uso do dispositivo gramatical dentro de um esquema de variável ternária, com a variante da língua alvo, (8a), uma variante oriunda de um processo original de reestruturação da gramática, (8b), e a variante zero, (8c):

b. João gostou do livro, mas terá que devolver ele amanhã. c. João gostou do livro, mas terá que devolver ø amanhã.

Pode-se acrescentar a esse rol de características, o fenômeno investigado neste trabalho: o uso do IV mais como coordenador de DPs, alternando com a conjunção aditiva e (João e/mais Maria saíram), e como subordinador em construções comitativas, alternando com a preposição com (João saiu com/mais Maria).

A hipótese da TLI, para explicar a constituição do PB, assim como a hipótese proposta por Guy, tem sido alvo de críticas, sobretudo pelos teóricos e pesquisadores Naro e Scherre (2007), que afirmam que a variação na concordância verbal e nominal, bem como outras estruturas que têm sido atribuídas ao contato da língua portuguesa com outras línguas, não são exclusivas do PB. Como já foi dito na seção 2.1.3.1, os autores fundamentam seu posicionamento apresentando exemplos de variação verbal e nominal no PA e no PE.

Não obstante, a TLI certamente amplia a discussão em torno das alterações observadas em línguas que passam pelo contexto sociolinguístico do contato. Postulada como um contínuo de níveis, a TLI abarca tanto casos em que há a formação de uma nova língua (pidgin/crioula) como os casos em que uma língua-alvo apresenta diversas alterações devido ao seu contato constante com outros sistemas. Além disso, tal hipótese se vale tanto de evidências linguísticas quanto de dados históricos, demográficos e sociais de modo geral estreitamente relacionados à formação de uma língua.

De modo geral, cada proposta teórica tem apresentado dados e análises relevantes que expõem as particularidades do PB em relação ao PE e abrem caminho para que novas interpretações entrem nesse debate. Nesse ponto, vale lembrar o posicionamento de Mattos e Silva, que não entra no debate crioulização vs. deriva, mas afirma que características inovadoras do PB, sobretudo das variedades populares, se devem à forma como a língua portuguesa foi aprendida nos primeiros séculos pela massa populacional: “como segunda língua; com modelos defectivos da língua-alvo, a do colonizador, mas não tão defectivos que propiciassem a formação de um crioulo estável e generalizado; na oralidade; sem o controle normativo da escolarização” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 107). A autora está de acordo, principalmente, com a TLI, pois defende a ideia do multilinguísmo generalizado e da ação normatizadora no final do século XIX, aspectos sócio-históricos também abordados por Lucchesi.

Como apresentado no início deste capítulo, a hipótese norteadora desta pesquisa situa o fenômeno investigado, o uso do IV mais como conector coordenativo e subordinativo, como

um reflexo do contato entre línguas ocorrido no Brasil (cf. seção 2.1.1), por esse motivo, selecionou-se um corpus com amostras de fala vernácula do português rural afrodescendente.

Na seção seguinte, apresentam-se teorias de formação e aquisição de línguas em situação de contato linguístico, uma vez que se verifica a existência de fenômenos semelhantes aos investigados neste trabalho em pidgins e crioulos (cf. seção 1.3).