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TRUNCAMENTO COMO MODELO EPISTEMOLÓGICO DE REFERÊNCIA

De acordo com Gascón (2011), no contexto da TAD, para que nosso problema didático seja formulado, faz-se necessário tomar um modelo epistemológico de referência (MER), pois é a partir dele que são descritos e interpretados os conhecimentos matemáticos envolvidos no estudo dos sólidos arquimedianos, bem como compreensões do que justifica, em tal estudo, determinados objetos matemáticos serem evidenciados e não outros. Nesse sentido, utilizamos como MER, para o estudo dos arquimedianos o truncamento, modelo renascentista de obtenção de cortes não aleatórios realizados por planos determinados por pontos específicos nas arestas de sólidos platônicos.

Com o intuito de melhor situar esse modelo, recorremos ao estudo de Almeida (2010) que discorre em detalhes esse procedimento matemático renascentista. De acordo com a autora, o primeiro estudo matemático de sólidos arquimedianos, pós-Arquimedes, é realizado com Pappus de Alexandria (290-350 d. C.) comentador do início do século IV, que define e atribui a Arquimedes a descoberta dos treze sólidos no quinto livro de sua obra Coleção Matemática.

Embora muitos sólidos possam ser concebidos tendo todos os tipos de faces, aqueles que parecem ser formados regularmente são mais merecedores de atenção. Estes incluem não apenas os cinco sólidos encontrados por Platão [...] mas também os sólidos, em número treze, que foram descobertos por Arquimedes e que contém polígonos equilaterais e equiangulares, mas não similares. (PAPPUS, 1876, p. 33 apud ALMEIDA, 2010, p. 83)

No entanto, Almeida (2010) ressalta que Pappus em sua obra, embora também descreva os treze arquimedianos a partir do número total de faces, não traz qualquer ilustração e nomeação correspondente aos arquimedianos citados. Tal nomeação27 parece só ter sido feita por Kepler no século XV que, interessado

em tal estudo, apresenta uma sistematização, não só reencontrando o conjunto completo dos sólidos de Arquimedes, como demonstrando que só existem treze.

27 Tetraedro truncado, cubo truncado, icosaedro truncado, dodecaedro truncado, octaedro

truncado, cuboctaedro, icosidodecaedro, rombicuboctaedro, cuboctaedro truncado, rombicosidodecaedro, icosidodecaedro truncado, cubo achatado e dodecaedro achatado.

Mas é no período do Renascimento que o estudo e representações de arquimedianos ganha destaque. A autora aponta que o interesse maior dos renascentistas28, que deu origem a essa redescoberta, estava relacionado a

investigação de sólidos, além de platônicos, inscritíveis em uma esfera. Dessa forma, ainda que a regularidade combinatória de tais sólidos fosse evidente, não era o motivo primeiro de tal interesse. Sem ter acesso aos escritos de Pappus, a autora assinala que onze dos treze sólidos arquimedianos foram obtidos por meio de truncaturas realizadas em platônicos. Piero della Francesca (1412-1492) foi o primeiro renascentista a utilizar o truncamento, talvez por isso seja atribuída a ele a invenção do uso da truncatura como procedimento matemático.

Com base em dois tratados, Trattato d’Abaco (1450) e Libellus de Quinque corporibus regularibus (1480), elaborados por Piero della Francesca, a autora estuda seis arquimedianos redescobertos por ele, tetraedro truncado, octaedro truncado, icosaedro truncado, cubo truncado, cuboctaedro e dodecaedro truncado. Ainda, segundo a autora, a partir de faces triangulares do sólido platônico de partida (tetraedro, octaedro e icosaedro), como mostra a Figura 16, Piero della Francesca constrói faces hexagonais ao dividir as arestas em três partes iguais. O resultado desse procedimento (Figura 17) gera os três primeiros arquimedianos citados, tetraedro truncado, octaedro truncado e icosaedro truncado.

Figura 16. Hexágono regular a partir de um triângulo equilátero

Fonte: Almeida, 2010, p. 89.

Figura 17. Tetraedro truncado, octaedro truncado e icosaedro truncado

Fonte: Almeida, 2010, p. 89.

Segundo Almeida (2010), Piero della Francesca constrói o arquimediano cuboctaedro, mostrado na Figura 18, ao remover os “cantos”29 de um cubo (ou de

um octaedro regular) de forma simétrica, estes delimitados pelos pontos médios de suas arestas.

Figura 18. Escrito de Piero della Francesca de um cuboctaedro

Fonte: Almeida, 2010 apud Field, 1997, p. 249.

Quanto aos dois arquimedianos restantes construídos por Piero della Francesca, cubo truncado e dodecaedro truncado, mostrados na Figura 19, foram obtidos por meio de cortes não arbitrários nas arestas do cubo e do dodecaedro regular, respectivamente, de modo que faces octogonais e decagonais fossem obtidas como resultado.

29 Os cantos, termo utilizado por Field (1997) para explicar as construções de Francesca, que são

na verdade tetraedros com um de seus vértices coincidente com um dos vértice do cubo ou do octaedro regular.

Figura 19. Cubo truncado e dodecaedro truncado

Fonte: Almeida, 2010, p. 90.

Luca Pacioli (1445-1517), como sinaliza Almeida (2010), além de trazer em sua obra De Divina Proportioni quatro dos seis arquimedianos obtidos por Piero della Francesca, apresenta também por truncamento a obtenção de outros dois: icosidodecaedro e rombicuboctaedro, mostrados na Figura 20. O icosidodecaedro é construído da mesma maneira que o cuboctaedro, pela eliminação de “cantos” do icosaedro regular (ou dodecaedro regular), delimitados pelos pontos médios de suas arestas. Já o rombicuboctaedro, embora resulte de truncaturas no cuboctaedro, a autora pontua que Pacioli não fornece qualquer informação que aponte caminhos de como tal construção se realiza.

Figura 20. Icosidodecaedro e rombicuboctaedro

Fonte: Almeida, 2010, p. 92.

O cuboctaedro truncado, mostrado na Figura 21, que resulta também de truncaturas no cuboctaedro, parece ter sido o nono arquimediano a ser redescoberto. Segundo Almeida (2010), embora Albert Dürer, em sua obra Unterweysung der Messung MIT dem Zirkel um Richtscheyt in Linien Ebnen unnd Gantzen Corporen, não tenha apontado um procedimento matemático que

evidenciasse como tal arquimediano tenha sido obtido, deve-se a ele essa redescoberta.

Figura 21. Cuboctaedro truncado

Fonte: Almeida, 2010, p. 93.

Os dois últimos arquimedianos, que completam o conjunto de arquimedianos, obtidos por truncaturas em sólidos platônicos, segundo a autora, foram redescobertos por Danielle Barbaro (1513-1570), rombicosidodecaedro e icosidodecaedro truncado, ilustrados na Figura 22. O rombicosidodecaedro é redescoberto ao truncar as arestas do icosidodecaedro em seus pontos médios. Contudo, a autora nos informa que na obra de Barbaro, Pratica della Perspectiva, não há qualquer informação do caminho utilizado para a obtenção do icosidodecaedro truncado.

Figura 22. Rombicosidodecaedro e icosidodecaedro truncado

Fonte: Almeida, 2010, p. 95.

Com base no exposto, a Figura 23 ilustra o conjunto dos onze arquimedianos obtidos por uma sucessão de cortes, chamados de truncaturas. Os demais, cubo achatado e dodecaedro achatado, também redescobertos no

renascimento, mas não retratados aqui, são obtidos por um procedimento denominado de snubificação30 de sólidos platônicos. Ante o exposto, podemos

perceber que a denominação dada para cada sólido arquimediano nos aponta o sólido platônico que o originou.

Figura 23. Sólidos arquimedianos obtidos por truncaturas

Fonte: Almeida, 2010, p. 127.

A partir do MER considerado, entendemos ser necessário o estudo de uma Organização Matemática para sólidos arquimedianos com a pretensão de apontar tipos de tarefa, bem como as técnicas que podem ser manipuladas na resolução de cada um dos tipos de tarefa apontados. Tal estudo é apresentado na seção seguinte.

30 A operação consiste em afastar todas as faces de um poliedro platônico, girá-las a 45º e

4.2 UMA ORGANIZAÇÃO MATEMÁTICA PARA SÓLIDOS