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3 Contexto e método

3.1 Um contexto educativo, um projeto e a planificação da ação educativa

Durante uma sessão teórico-prática foi proposto aos estudantes que, em grupo e com base na apresentação de uma situação real na qual um grupo de crianças desenvolvia um projeto de educação financeira por meio da metodologia de trabalho de projeto, desenhassem uma pos- sível planificação de uma sessão com o objetivo de promover o desenvolvimento da literacia estatística das crianças.

O Grupo A sugeriu que as crianças fossem desafiadas a recolher dados sobre a energia que a sua mãe precisaria para um dia. Quando foram questionados sobre a possibilidade de o con- ceito de energia poder ser abstrato e qual a possibilidade de crianças com idade de 3, 4 e 5 anos o compreenderem, os elementos do grupo referiram: “Dizemos que nós somos como tele- móveis. Eles têm baterias que precisam de ser carregadas para o telemóvel funcionar, como nós. Neste caso, a bateria seria representada por um frasco e as crianças colocavam lá dentro corações, que representavam a energia que a mãe iria consumir ao longo do dia”. Questiona- dos sobre a recolha e organização de dados, o Grupo A sugeriu que os corações seriam o ca- rinho dado pelas crianças e que estas deveriam dizer quantos carinhos davam às suas mães diariamente. Relativamente à organização e representação dos dados, o Grupo A sugeriu a utilização de potes reais onde as crianças colocariam corações de papel e posterior desenho desses potes onde as crianças colariam os corações, como forma de representação. Depois de algum momento de reflexão e discussão, o Grupo A apresentou uma planificação envolvendo as caraterísticas das mães, dando como exemplo a mãe “Querida, dá-me mimos (beijinhos)”, mantendo como proposta de recolha e representação a utilização de potes, nos quais se colo- cariam corações de papel, como evidente na Figura 1.

O Grupo B decidiu apresentar uma planificação, intitulada “vestir a mãe”, que envolvia a recolha de informações sobre o vestuário a oferecer às mães das crianças, tendo em conside- ração o que os elementos do Grupo B intitularam por emoções. Os elementos referiram que

cada peça de vestuário teria o mesmo sinal que uma emoção (Figura 1): “As crianças dizem como é a sua mãe. Por exemplo, a diversão corresponde ao vestido e o amor corresponde à mala. No final, decidimos que prenda comprar de acordo com a peça de vestuário que mais vezes surge. Faltam aqui emoções, mas é esta a ideia”.

Figura 1: a) Proposta do Grupo A; b) Proposta do Grupo B

Os grupos C e D apresentaram proposta de recolha de dados acerca do presente que as crianças gostariam de oferecer às suas mães. Como podemos verificar na Figura 2, a proposta do Grupo C apresenta-se incompleta, nomeadamente ao nível da representação dos dados que se apresenta sem título e de difícil leitura. Durante a apresentação, o Grupo C referiu que este seria o ponto de partida para uma outra forma de representação, não tendo, no entanto, referido qual. Já o Grupo D apresentou a proposta de representar os dados num pictograma (Figura 2) com o título “Qual a prenda ideal para a mãe?” a representação de dados sugerida pelo grupo.

Figura 2: a) Proposta do Grupo C; b) Construção do pictograma proposto pelo Grupo D

O Grupo E apresentou uma proposta de recolha de dados sobre as caraterísticas das mães, intitulada “a minha mãe é:” (Figura 3). O grupo, durante a apresentação e discussão da sua proposta, assumiu que esta estava incompleta e que, dada a multiplicidade de dados que propu- nham recolher, poderia tornar-se confusa para as crianças. Quando questionados sobre como poderia ser feita a representação dos dados, os estudantes concluíram que deviam alterar a sua proposta de modo a centrar a recolha em apenas uma caraterística. Apresentaram, então, a proposta de construção de um gráfico (Figura 3), representando a cor dos olhos das mães.

Figura 3: Proposta do Grupo E

No final, todos os grupos analisaram a rede de conhecimentos construída durante a sessão e foi realizada uma discussão em torno dos resultados obtidos por cada Grupo, das suas difi- culdades, expetativas e necessidades sentidas pelos(as) estudantes. De um modo geral, todos

concordaram ter sentido necessidade de aprofundar os seus conhecimentos sobre estatística e sobre as metodologias ativas, como a metodologia de trabalho de projeto, referindo, nome- adamente, que: (i) “tivemos uma ideia de como tudo se ligou”, (ii) “precisamos de perceber como adequar as práticas às crianças”, e (iii) “não foi fácil pensar no que as crianças desta idade sabem. É mais fácil pensar em tarefas para o 1.º Ciclo. Ainda precisamos de aprofundar os nossos conhecimentos estatísticos e sobre as crianças na EPE”.

Na Figura 4 está resumida a análise dos conhecimentos dos estudantes dos Grupos C, D e E necessários para ensinar estatística, mobilizados durante a tarefa proposta. De um modo geral, podemos compreender que os grupos evidenciaram lacunas em algumas dimensões do conhecimento em relação a várias componentes do pensamento estatístico. No entanto, com a sinalização/não sinalização das células não se pretende afirmar se os alunos possuem, ou não, todos os aspetos do conhecimento inerentes a cada célula, mas sim inferir sobre os co- nhecimentos relativos às componentes do pensamento estatístico evidenciados de forma es- pontânea no decorrer da sessão.

Figura 4: Análise do conhecimento dos grupos para ensinar estatística durante a tarefa (Adaptado de Burgess, 2009, p. 4)

Os elementos dos Grupos A e B evidenciaram ausência relativamente a vários conceitos em diferentes áreas, apresentando dificuldades, nomeadamente, ao nível do conhecimento do conteúdo no subdomínio CKC em relação à necessidade dos dados, o que compromete a proposta à partida. A análise à proposta do Grupo C permite-nos compreender que esta pode indicar a dificuldade dos estudantes ao nível dos diferentes subdomínios do conhecimento do conteúdo, nomeadamente relativa ao SKC ao nível do raciocínio com modelos. O Grupo C limitou-se a propor o desenvolvimento de uma tarefa envolvendo a necessidade dos dados e a transnumeração, sugerindo uma estratégia de organização e contagem dos dados, mas eviden- ciado alguma dificuldade em integrar a representação desses dados. Muito embora o Grupo D tenha sido o que mais se aproximou de uma proposta de recolha e representação de dados, de um modo geral, os seus elementos demonstraram necessidade em aprofundar os seus co- nhecimentos nos subdomínios SKC e KCT, nomeadamente relacionados com a construção de um pictograma, ao nível do raciocínio com modelos. Este grupo apresenta a imagem de um presente como tendo o valor de dois “votos”. Quando apenas uma criança “vota” num deter- minado presente surge representado com metade da imagem do presente. Ainda analisando o pictograma proposto pelo Grupo D, verificamos que os presentes não se encontram posicio- nados com rigor, que permita a progressão desta tarefa, inviabilizando uma rápida e correta leitura dos dados. A complexidade da tarefa proposta pelo grupo E inicialmente e a sequente proposta de construção do gráfico apresentada para crianças de 3, 4 e 5 anos demonstra que os(as) estudantes deste grupo, de um modo geral, evidenciam dificuldades, nomeadamente,

nos subdomínios KCS e KCT, ao nível, por exemplo, do ciclo investigativo, da transnumeração e do raciocínio com modelos.

Em suma, podemos compreender que os estudantes, de um modo geral, centram as suas lacunas de conhecimentos nos subdomínios SKC, KCS e KCT. A reflexão conjunta entre os ele- mentos de cada grupo, durante a realização da tarefa, e a discussão entre todos os estudantes em torno das propostas apresentadas e durante a análise da rede de conhecimentos, permi- tiu, nomeadamente, que os estudantes compreendessem a necessidade de aprofundar os seus conhecimentos ao nível dos subdomínios do SKT, nomeadamente sobre as representações es- tatísticas, sobre quais as mais indicadas para iniciar a abordagem à estatística em EPE. Essa consciencialização tornou-se evidente, não apenas no debate de ideias em torno da rede de co- nhecimentos, mas também durante a realização da tarefa e sua discussão em grupo, quando, por exemplo, alguns grupos propuseram alterações às próprias planificações, no sentido de melhor as adequar ao nível educativo.

4 Conclusões

De um modo geral, a análise das propostas didáticas apresentadas permite compreender que alguns estudantes demonstraram dificuldade na adequação da planificação ao público- alvo, quer ao nível da linguagem e conceitos a abordar, nomeadamente estatísticos, como ao nível da adequação das tarefas, propriamente ditas, à faixa etária em questão. À exceção dos grupos A e B, cujos elementos demonstraram dificuldades ao nível CKC, a análise dos conhe- cimentos mobilizados pelos estudantes por meio da matriz de Burgess (2009) permite-nos compreender que estes, de um modo geral, possuem um conhecimento comum dos conteúdos ao nível diferentes tipos de pensamento. No entanto, a lacuna no conhecimento dos estudantes necessário para ensinar estatística influenciou a forma como estes pensaram as planificações, que, se colocadas em prática numa situação real, poderiam comprometer o desenvolvimento da literacia estatística das crianças. Todavia, a tarefa proposta e sequente discussão de resul- tados proporcionou momentos de reflexão que permitiram a alguns estudantes repensar a sua planificação, compreender a necessidade de adequar as tarefas propostas às crianças e refle- tir acerca da importância da opção por metodologias ativas no desenvolvimento da literacia estatística, embora o foco nesta altura da formação inicial seja a compreensão da importância do conhecimento especializado do conteúdo.

Nesse sentido, pode considerar-se que a sessão em análise pode ter promovido nos estudan- tes a consciencialização da necessidade de aprofundarem os seus conhecimentos. A preocupa- ção demonstrada pelos estudantes durante a sessão e, principalmente, quando confrontados com as suas dificuldades permitiu que os estudantes compreendessem que não basta serem detentores do CKC. Não basta conhecer o contexto educativo, não basta conhecer as crian- ças, não basta conhecer o currículo, assim como não basta ser detentor de conhecimentos dos conteúdos na ótica do utilizador. É necessário conhecer o currículo, as crianças, o contexto educativo, as estratégias mais propícias ao contexto educativo e às crianças e os conteúdos que se pretendem ver desenvolvidos. Assim, evidenciou-se que o seu conhecimento especiali- zado dos conteúdos é necessário para saberem como inter-relacionar estes conhecimentos na prática educativa, o que foi evidenciado na rede de conhecimentos (Jesus, Cyrino & Oliveira, 2014). Como referem Brunheira e Ponte (2015, p. 196), “os futuros professores devem apren- der segundo os mesmos métodos que se preconiza que venham a utilizar nas suas práticas”.

Situações de confronto com a realidade, de experiência com base em situações reais, quando desenvolvidas e analisadas em contexto de formação que permitam aos estudantes compre- ender as suas lacunas de conhecimento, por meio de reflexão, podem possibilitar a conscien- cialização da necessidade de aprofundarem esses conhecimentos. São momentos como este que podem incentivar o ato reflexivo sobre o próprio conhecimento e ação, enquanto processo de autoformação. Numa prática transdisciplinar, a formação inicial pode assim influenciar o que os estudantes aprendem e a forma como o fazem, permitindo-lhes sentir necessidade de aprofundarem os seus conhecimentos e, simultaneamente, atribuindo-lhes significado.

5 Agradecimentos

Este estudo foi realizado no âmbito do R&D Unit 50008, financiado pelo UID/50008/2013.

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