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II – UMA ANÁLISE DOS DETERMINANTES DO SUPERÁVIT PRIMÁRIO A PARTIR DE UM MODELO MULTISETORIAL

No documento FISCAL E O AJUSTE FISCAL NO BRASIL (páginas 48-52)

1. Introdução

Este ensaio – correspondente à parte II da Tese de Doutorado – busca analisar a qualidade e a sustentabilidade do ajuste fiscal brasileiro, sobretudo a partir da adoção formal de metas de superávit primário, em 1999, em decorrência de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao contrário do senso comum que tem pautado as conclusões de muitos analistas econômicos, o aumento da carga tributária não é o único fator – muitos menos o determinante – para o aumento recente do superávit primário, mas sim as rendas geradas pelas estatais e a redução dos investimentos. Na prática, a maior parcela de aumento da receita extraída da sociedade durante o primeiro mandato do presidente Lula foi canalizada para o aumento das transferências fiscais à própria sociedade, de modo que a carga tributária líquida manteve-se relativamente estabilizada.

Em parte, esse padrão de ajustamento fiscal – baseado no corte de investimentos e nas rendas das estatais – se impôs por impossibilidade política de reduzir alguns gastos correntes, notadamente aqueles relacionados ao sistema de seguridade social. Por outro lado, principalmente a partir da segunda metade do primeiro mandato do presidente Lula, isso ocorreu por uma opção, também política, de fortalecer a estrutura de welfare state brasileira e de ceder às reivindicações por aumento do salário mínimo, ao qual estão indexadas as despesas da Previdência e da Assistência Social.

Para uma boa parte dos economistas, entretanto, há indícios de que o espaço para sustentar a atual política fiscal – “ortodoxa” pela opção de manter um elevado superávit primário às custas do investimento público e “heterodoxa” na sua vertente distributiva do gasto público – poderia estar próxima de um limite. Por outro lado, a falta de alternativas concretas e viáveis politicamente no sentido de superar os dilemas da política fiscal parece manter esse debate em um nível meramente retórico e usualmente simplificado.

Nosso objetivo neste ensaio é, em primeiro lugar, apresentar uma crítica ao atual padrão de ajuste fiscal, questionando algumas de suas premissas teóricas e discutindo suas implicações práticas, com ênfase na dinâmica da despesa pública. Do ponto de vista teórico, nossas críticas se inspiram tanto em concepções de autores heterodoxos e pós-keynesianos, como Kregel (1985) e Smithin (1989, 1994), quanto em outros economistas mais ortodoxos (ou menos heterodoxos), como Blanchard e Giavazzi (2003) e Tanzi (2000).

Em segundo lugar, nosso objetivo é “desnudar” a evolução do superávit primário do setor público por meio de um modelo de análise que chamamos de multisetorial, por captar as inter-relações entre as esferas de governos e entre governo e estatais, de modo a mensurar a contribuição efetiva de cada componente do setor público. Esse modelo também permite analisar o superávit primário pela sua decomposição entre receitas e despesas, o que exige um procedimento de compatibilização entre as metodologias acima e abaixo da linha no caso dos estados e municípios.

O terceiro objetivo do ensaio é, constatando o dilema fiscal no qual nos encontramos, sintetizado pela pressão social por menor carga tributária por um lado, pela expansão no volume de despesas previdenciárias e assistenciais e necessidade de aumentar o investimento público por outro, tentar projetar cenários futuros que testem a sustentabilidade da atual política fiscal e, ao mesmo tempo, discutir possíveis alternativas para melhorar a composição da despesa pública entre gastos correntes e de capital. As projeções são feitas a partir de algumas regras fiscais básicas para a evolução das despesas de pessoal e para as despesas com benefícios previdenciários e assistenciais.

Em termos de estrutura, o ensaio está dividido em cinco sessões, incluindo esta introdução. Na segunda seção, discutimos o contexto histórico e os aspectos conceituais que envolveram a adoção do superávit primário como parâmetro relevante da política fiscal, apresentando considerações sobre aspectos críticos do regime de metas para a política econômica em geral e para a composição do gasto público, em particular.

A terceira seção é dedicada ao diagnóstico quantitativo e qualitativo do superávit primário e à apresentação do modelo e metodologias de análise, resultando em algumas conclusões empíricas importantes. Baseados nessas evidências, testamos na quarta seção a adoção de algumas regras fiscais e seus efeitos sobre a dinâmica das despesas, apresentando também reflexões teóricas sobre os dilemas da política fiscal e propondo a adoção de um orçamento de capital separado do orçamento corrente. Por fim, na quinta e última parte, são apresentadas as conclusões mais práticas do que teóricas, a partir das análises e projeções realizadas.

2. O superávit primário como instrumento de equilíbrio orçamentário 2.1. Aspectos conceituais e teóricos

A busca de equilíbrio orçamentário por meio de superávit primário nas contas públicas tornou-se um paradigma dominante na configuração das políticas econômicas e fiscais de países em desenvolvimento como o Brasil, que apresentam déficit orçamentário e elevado grau de endividamento. Como bem salienta Biasoto Jr. (2006, p.197), “a escolha de um indicador que sintetize a política fiscal não constitui uma tarefa fácil, (pois) os indicadores guardam relação estreita com as concepções sobre a atuação estatal e as noções quanto ao impacto macroeconômico das contas públicas”.

No caso da economia brasileira, a definição do tipo de ajuste fiscal e de variável-chave a ser monitorada foi amadurecida ao longo dos anos 80 e 90 a partir de um diagnóstico teórico que atribuía ao componente fiscal um peso determinante para a persistência do processo inflacionário.21 Além disso, foi influenciada por um conjunto de reformas indicadas pelo

Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, que tinham como objetivo reduzir o aparato intervencionista do Estado, seja por privatizações, seja por regras de disciplina fiscal.

A institucionalização do monitoramento de déficit como instrumento de política macroeconômica ocorreu nas primeiras negociações com o FMI, baseada em uma metodologia de aferição do déficit denominada Public Sector Borrowing Requirements (PSBR). Conforme Biasoto Jr. (2006, p.201), o PSBR é uma proxy do déficit anual medida por meio da variação das dívidas do setor público entre dois pontos no tempo: “Como todo excesso de despesas sobre receitas deve ser financiado por endividamento junto aos agentes econômicos, e as informações de execução orçamentária e das empresas são de lenta consolidação, a medida do déficit pelo seu financiamento (abaixo da linha) é uma forma mais rápida de aferição das contas públicas.”

A abrangência do setor público definida pelo FMI na aferição do déficit inclui todas as esferas de governo e entidades públicas, inclusive as sociedades de economia mista em que o poder público tenha maioria do capital votante, exceto as do setor financeiro. Essa é uma

21 O fracasso dos planos heterodoxos de combate à inflação, nos anos 80, fez crescer – mesmo entre economistas

não ortodoxos – o apoio às teses fiscalistas. De acordo com Guardia (1992) e Bacha (1994), por exemplo, a inflação teria se tornado um instrumento fundamental para manter o déficit público abaixo do seu nível potencial, via repressão das despesas e indexação das receitas. Dessa forma, a eliminação da inflação exigiria como pré-condição uma mudança profunda no regime fiscal.

característica distintiva da metodologia do Fundo e das classificações usuais das Nações Unidas, em que as contas do setor público abrangem apenas a administração direta e indireta, em todas as esferas de governo. A particularidade do capitalismo dos países em desenvolvimento, em que as estatais têm um papel proeminente, levou o FMI a incorporá-las no indicador com o objetivo de controlá-las e submetê-las às orientações do Consenso de Washington. No Brasil, em particular, a inclusão das estatais também justificava-se na década de 80 pelos déficits e dependência dessas empresas em relação aos recursos do Tesouro, situação bastante distinta da atual, como veremos adiante.

A metodologia do PSBR foi traduzida no Brasil para o conceito de Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP) e utilizada a partir da primeira Carta de Intenções assinada com o FMI, em janeiro de 1983, na qual o governo do general João Batista Figueiredo “se compromete a baixar a inflação, eliminar o déficit público e diminuir o número de empresas estatais, entre uma copiosa lista de promessas” (Benayon e Rezende, 2006).

A exemplo de outros países monitorados pelo FMI, a necessidade de financiamento começou a ser medida pelo valor nominal, o que logo se demonstrou “inviável como parâmetro de avaliação da política macroeconômica”, pois as metas eram fixadas “com base em taxas de inflação muito aquém das que acabavam por se efetivar” (Biasoto Jr., 2006, p. 203).22 A fórmula encontrada para tornar a NFSP aplicável ao Brasil foi, então, a eliminação dos valores de correção monetária e cambial, embutidos na evolução dos estoques das dívidas, originando o conceito de resultado operacional.23

Foi apenas num terceiro momento, em 1989, que o atual conceito de resultado primário passou a ser adotado, expressando uma opção política e, sobretudo pragmática, do governo de José Sarney – após o fracasso dos Planos Cruzado e Bresser – de tentar equilibrar apenas o orçamento não-financeiro, ou seja, o orçamento excluindo todas as despesas decorrentes de juros e receitas provenientes de aplicações financeiras. Desde 1986, também, o governo brasileiro mensura a necessidade de financiamento a partir de dados de receita e despesa, ou seja, pela metodologia acima da linha, mais propícia para o gerenciamento da política fiscal, como veremos na próxima seção.

22 Em vários momentos, o déficit nominal, inflado pela correção das dívidas, chegou a significar quase o triplo

da carga tributária bruta, dado que os estoques eram registrados em fim de período, enquanto as receitas eram somadas em valores históricos mensais.

23

Simonsen (1989, p.7): “Na ausência de ilusão monetária, o conceito relevante é o de déficit operacional. Com efeito, os financiadores do governo não confundirão a correção monetária dos seus créditos contra o governo com rendimento real.”

2.2. O ajuste fiscal em perspectiva histórica

Apesar de o monitoramento do FMI sobre o déficit fiscal brasileiro remontar à primeira carta de intenções assinada com o Fundo, em 1983, a implementação do ajuste fiscal seguiu uma trajetória instável nos 16 anos que antecederam a introdução formal das metas de superávit primário, em 1999, alternando-se períodos de arrocho fiscal com outros de relaxamento fiscal, como podemos observar no Gráfico 1. Entre 1981 e 1984, por exemplo, o déficit operacional do setor público foi reduzido de 6,31% do PIB para 2,88% do PIB, mas a partir de 1985 – com a Nova República – voltou a crescer, em conseqüência do atendimento das demandas sociais represadas no período da ditadura militar e das mudanças constitucionais.

Entre 1987 e 1989, o setor público chegou a registrar déficits primários da ordem de 1% do PIB e déficits operacionais de até 7% do PIB. Com o Plano Collor, em 1990, essa situação foi parcialmente revertida, mas o superávit primário passou a decrescer nos anos seguintes. No final de 1993, no governo Itamar Franco, um grupo influente de economistas ligados ao então ministro Fernando Henrique Cardoso retomou o debate sobre a necessidade de um ajuste estrutural nas contas do setor público, argumentando que a mudança do regime fiscal seria uma condição indispensável para o sucesso do plano de estabilização que estava em gestação. -10,00 -8,00 -6,00 -4,00 -2,00 0,00 2,00 4,00 6,00 8,00

Gráfico 1 - Evolução da Necessidade de Financiamento do

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