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Itinerários, circulação e sociabilidades intelectuais

5.1 Uma cartografia intelectual do movimento florestal

Neste item, visamos mapear os intelectuais associados à revista com base em algumas características gerais. São elas: gênero, faixa etária, nacionalidade, formação educacional e ocupação, bem como familiarização dos agentes. Em cada um destes pontos é possível identificar os traços que permitem diagnosticar as conexões que ligam esta rede de sociabilidade de proteção à natureza entre 1920 e 1940 e, ao mesmo tempo, caracterizam o periódico, enquanto um organismo impresso que representa essa geração intelectual e que tem participação ativa na construção das políticas florestais do país.

Apesar de pertinente, como a historiografia tem demonstrado em estudos recentes429, excetuamos deste trabalho a abordagem religiosa dos intelectuais envolvidos. Não nos furtamos, porém, a investigar alguns indícios acerca desta questão durante a pesquisa. Em linhas gerais, a maioria dos intelectuais professava o catolicismo, com poucas exceções como

428 A noção de que as revistas são “pontos de encontro de itinerários individuais sob um credo comum” está presente em PLUET-DESPATIN, Jacqueline, Op.cit, p. 126. Segundo a autora, entendendo a revista como um agrupamento do qual colaboram intelectuais, devemos observar a ação que promove a reunião destes itinerários. Esta atividade implica em movimento, transformações vividas pela revista. Tais publicações resgatam a memória de mortos, criam dissidentes e excluem determinados intelectuais. É necessário, para a historiadora, não reduzir o estudo das revistas ao sumário que nela se escreve, mas considerar aquilo que fica “por de baixo dos panos”, nos bastidores de sua produção (Ibidem, p.127).

429 Um dos trabalhos é o de Mark Stoll. O historiador assinala que os conservacionistas norte-americanos – em especial Gifford Pinchot – fiéis ao puritanismo, leram o oleiro protestante do século XVI Bernard Palissy. Relendo suas obras, Pinchot e os conservacionistas, dentre os quais Walter Mumford – leitor da

Revista Florestal – desejavam restaurar a comunidade rural idealizada pela teologia puritana de Palissy. Tal

comunidade que permeava o imaginário protestante conservava parques e espaços naturais para adoração divina. Cf. STOLL, Mark. O “sagaz” Palissy: Gifford Pinchot, George Perkins Marsh e as origens do conservacionismo norte-americano em Connecticut. In: FRANCO, José Luiz de Andrade; SILVA, Sandro Dutra e; DRUMMOND, José Augusto; TAVARES, Giovana Galvão. História ambiental: territórios, fronteiras e biodiversidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2016, p.87-127. (v.2)

154 espírita Leôncio Correa e o pastor evangélico Bolívar Bandeira. Entretanto, algumas trajetórias possuíram durante as fases iniciais de sua formação uma vinculação a escolas religiosas de orientação anglo-saxã. Isso ocorre, por exemplo, na caótica transição de escolas na infância de Francisco de Assis Iglésias e Luiz Simões Lopes.

Quanto ao primeiro, em suas memórias, alertava que poucas eram as instituições escolares que instruíam as crianças na cidade em que tinha nascido, Piracicaba. Um deles era o Colégio Piracicabano que seguia os preceitos da escola metodista pautado nas ideias de Judith Mac Knight e J.S. Kennedy, escritores que buscavam vincular ensino e Igreja Metodista para “converter as almas à Cristo”.430

Iglésias, cujo primeiro nome remetia ao santo medieval protetor da natureza e dos animais, manteve-se filiado ao tradicional Salve-Rainha da Igreja Católica na Escola do Mestre Justino.

Simões Lopes, por sua vez, assentou-se nas cadeiras do Colégio Aldridge com cerca de 9 anos de idade. Em entrevista fornecida ao CPDoc/FGV, afirmava que os professores do Colégio Niteroiense, embora fossem protestantes, “orientavam nos bons modelos da moral e religião católica”.431

Apesar de ratificar o catolicismo, é presente em suas textualidades a vinculação à ideia puritana da natureza como Criação divina432 e da vida no campo como lugar da harmonia e da regeneração espiritual. A Estância da Graça, lugar onde residia, por exemplo, é representado em sua narrativa como um recanto de refúgio do espírito e encontro com a alma.

5.1.1 Os homens de letras da Revista

Conforme verificamos no mapeamento prosopográfico da comunidade Florestal, o periódico foi composto, majoritariamente, por um público masculino. Representavam, aproximadamente, 97,30% de todos os sujeitos analisados. Identificamos apenas 5 mulheres que participaram diretamente da revista, quer seja como escritora ou leitora. São elas: Arlettte Cosendey da Rocha, Sara de Souza, Anna Amélia Carneiro de Mendonça, Beatriz Vieira e Ynés Mexia.

430 IGLÉSIAS, Francisco de Assis. Memórias de um agrônomo: à noiva de Piracicaba. Piracicaba: Agronômica, 2003, p.50

431 SILVA, Suely Braga da (Org.). Op.cit, p.47.

432 Analisando o imaginário de natureza na Inglaterra de 1500 a 1800, Keith afirmava que o século XVII foi um marco de inflexão no pensamento teológico sobre a natureza. Nesse século, posterior à Reforma, enfatizou não somente o fato da Criação divina da natureza, mas o estado miserável a qual o mundo natural estava submetido. O próprio culto às árvores, em especial, trazia um sentimento de devoção ao sagrado. Ver THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.25

155 Seus perfis demonstram o lugar da mulher dentro desta rede de proteção à natureza. A primeira era professora primária, a segunda estudante, a terceira e quarta escritoras e a última, por sua vez, era cientista do campo da botânica. Certamente, estas não eram as únicas mulheres que participaram deste movimento, porém, ilustram os espaços das militantes florestais naquele microcosmo. Através daquele quadro, denota-se que as mulheres ocupavam, predominantemente, os postos de professoras, estudantes, escritoras e cientistas.

Apesar desse número muito reduzido no quadro editorial, elas eram concebidas pelo seu valor estratégico para o movimento. Ao falar do protagonismo feminino que emergia nos anos de 1920, Alberto José de Sampaio reivindicava em artigos publicados no periódico que surgissem entidades feministas brasileiras similares à The Mount Vernon Ladies Association.433 O botânico alertava em diversas obras que a mulher era “capaz de compreender bem os detalhes sutis da Proteção à Natureza, falando às crianças de modo a impressionar os cérebros juvenis”.434

No discurso da revista, por vezes, a natureza era associado às categorias femininas. À mulher e a natureza.435 Esta última era narrada em diversos momentos em associação ao sujeito feminino “terra” considerada mãe dadivosa, graciosa, com presença de um “ventre prodigioso” e fartura em seus seios. Nesse sentido, a natureza é concebida pela sua fecundidade e capacidade de prover recursos, gerar frutos e forças produtivas à pátria. Assemelha, portanto, a alegoria imaculada de Maria, mãe do filho de Deus.

No movimento florestal a inserção das mulheres foram, prioritariamente, as educacionais, representadas no quadro da revista pela presença de Cosendey da Rocha.436 Da mesma forma que a professora, a estudante que declamava poemas de enaltecimento à árvore representado na figura de Sara de Souza é exemplar de mais uma parcela de mulheres que tomaram parte do movimento florestal. Alunas de diversos colégios de formação das elites políticas, tais como o Sion, em Petrópolis, aspiravam a proteção à natureza.437

433 SAMPAIO, Alberto José de. Ecologia e genética em reflorestação. Revista Florestal, Rio de Janeiro, ano II, n.1, p.41, jul-ago.1930.

434 Ibidem, p.50

435 OSTOS, Natascha Stefania Carvalho. Terra adorada, mãe gentil: representações do feminino e da natureza no Brasil da Era Vargas (1930-1945). 222f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

436 Entre outras professoras e diretoras de colégios de ensino primário que participaram deste movimento florestal, embora não participassem diretamente do periódico, constavam: Alda Pereira da Fonseca, Ada Guimarães Pimentel, Inácia Ferreira Guimarães, Maria Amélia Saraiva. A primeira, inclusive, participou da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza ocorrida em 1934, representando a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

437 De acordo com Needell, o Colégio Sion este era um ambiente que desde 1888, quando a escola é criada, formaram-se personagens femininas expoentes da elites políticas do país. Ver NEEDELL, Jeffrey. Belle

156 Em relação às escritoras sobressalta-se Ana Amélia Carneiro de Mendonça e Beatriz Vieira na revista. A sua participação era voltada a textos em poesia que contemplavam a beleza da natureza, criticavam o machado destruidor e, a partir disso, justificava-se a sua proteção. Carneiro de Mendonça representa outras escritoras que lançaram mão de sua pena para condenar o uso indiscriminado das matas. Embora não tenhamos identificado seus nomes diretamente à revista, constamos na mesma condição de escritora Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Maria Eugênia Celso (1886-1963).

Almeida desfrutou de prestígio literário durante a Belle époque. De acordo com Jeffrey Needell, ela legitimava a posição conservadora da mulher subordinada ao ofício doméstico.438 É com base nessa linha de pensamento que alegava a importância do cuidado que a mulher deveria ter ao regar o jardim ou podar as árvores do lar. Em cada verso, traduzia a necessidade do cuidado e proteção feminina ao lar, à pátria e à humanidade. As florestas, uma vez que eram patrimônios da pretensa família brasileira, deveriam tornar-se, nesse imaginário, tesouros a serem protegidos pelas mulheres.

Há pesquisadores, como Érica Schlude Ribeiro, que identificam em Almeida, através de suas obras “A árvore”, “Jardim florido” e “Correio da Roça”, o papel de uma precursora da consciência ecológica e da reforma agrária. “A árvore”, em especial, atribuiria a natureza “um manancial de bondade” e o homem como o seu predador.439

Esta, para Ribeiro, seria a obra mais ecológica da autora que teria uma consciência crítica avançada ao seu próprio tempo.440 No entanto, como se pode ver, antes de precursora, a escritora estava articulada no emaranhado de uma rede de sociabilidade de proteção à natureza.

Com mesmo verniz mantenedor do status quo estava Maria Eugênia Celso.441 Filha do escritor Afonso Celso, Maria permaneceu com as linhas matrizes de seu pai a edenizar as

São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 82. 438 NEEDELL, Op.cit., p.165.

439 O livro composto pelo casal Almeida é composto por prosas e poesias a respeito estimulando o amor às árvores e o combate às derrubadas predatórias destes objetos de contemplação estética e de benefícios econômicos e sociais. Não é somente à prosperidade material que cativa os intelectuais a proporem o combate à devastação, mas o caráter simbólico que possuem, visto que o próprio nome do país deriva de uma árvore. Indicam o caráter cívico da Festa das Árvores e postulam D. João VI como um marco no plantio de árvores no Brasil devido a aclimatação de espécies no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ver ALMEIDA, Júlia Lopes de; ALMEIDA, Afonso Lopes de Almeida. A Árvore. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916.

440 RIBEIRO, Érica Schlude. O olhar visionário e o olhar conservador: a crítica social nos romances de Júlia Lopes de Almeida. 115f. Dissertação (Mestrado em Literatura brasileira). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 1999. p.100.

441 Cabe ressaltar que Azevedo considera que na literatura de Maria Eugênia houve espaço para a valorização do espaço privado, mas também para o debate público mais amplo. Para maiores detalhes sobre a escritora, cf. AZEVEDO, Carla Bispo. Maria Eugênia Celso: entre o impresso feminino, a casa e o espaço público (1920-1941). 152f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015, p.140.

157 matas, porém incutindo-lhe a precaução com a destruição das ordens da natureza. Tal como Ana Amélia Carneiro de Mendonça, a filha do conde que defendia o ufanismo era vinculada à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e voltada à proteção das florestas.

Para além de professoras, estudantes e escritoras, outra inserção das mulheres nesta rede era como cientista. Na Revista Florestal, as cientistas são representadas por Ynés Mexia. Trata-se de um grupo de mulheres voltadas às ciências, sobretudo às naturais. Mexia na posição de botânica exprime bem a comunidade dos leitores do periódico. Embora não tenhamos encontrado vestígios concretos de colaboração nesse fazer redatorial da Revista Florestal, pode-se dizer que Bertha Lutz (1894-1976)442, Heloísa Alberto Torres (1895-1977), Jacinta Iglésias e Maria do Carmo Vaughan Bandeira (1902-1992)443 engajaram-se neste movimento de proteção à natureza e muito provavelmente foram leitoras da Florestal. Não a incluímos devido a ausência de fontes que asseverassem a sua participação mais concreta.

Assim, verificamos que embora predominantemente masculino, o corpo editorial da revista comportava leitoras e articulistas femininas em sua composição. Isso demonstrava que as mulheres não se ocultaram dentro desse movimento florestal mais amplo. Entretanto, todas aquelas que foram citadas advinham da posição de elite quer seja inscrevendo-se no ensino, na literatura ou na ciência. Não participavam do grupo de composição editorial mulheres oriundas das camadas periféricas, mas sim dos círculos sociais abastados.

442 Em trabalho acerca da participação feminina nas ciências, Lia Gomes atesta que Bertha Lutz, a presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, instituição criada em 1922, era partícipe deste movimento florestal. Da mesma forma que reivindicava o voto feminino, Bertha em seus trabalhos de campo percebia a devastação da natureza. Segundo Gomes, a cientista integrou em 1940 do Estudo de Natureza Carioca para o Instituto Brasil-Estados Unidos, respondeu aos questionários da Sociedade dos Amigos das Árvores para a formação da Primeira Conferência de proteção à natureza em 1934 e foi membro correspondente do Office International pour la Protection de la Nature sediado na Bélgica em 1929. Ademais, Bertha tal como as companheiras de Federação, escreveram trabalhos defendendo a participação das mulheres na proteção das “riquezas naturais”. Lutz também incentivou trilhas e a construção de museus ao ar livre. É provável que tenha lido a Revista Florestal, uma vez que o seu chefe e amigo pessoal, o botânico Alberto José de Sampaio, era o principal articulista e incentivador da sua leitura e circulação entre os membros da seção de botânica – a qual Lutz estava lotada. Entretanto, não obtivemos fontes que pudessem afirmar isso. Na análise de sua documentação verificamos que, além do exposto, trabalhou no Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas e foi a única mulher conselheira na trajetória do Conselho Florestal Federal. Integrou a esta instituição entre os anos de 1956 e 1967, ou seja, durante toda a fase presidida pelo agrônomo Victor Abdennur Farah que se iniciou durante a gestão de Juscelino Kubitschek. Sobre a participação na proteção à natureza de Bertha Lutz e FBPF, cs. GOMES, Lia Osório.

Educação e profissionalização de mulheres: trajetória científica e feminista de Bertha Lutz no Museu

Nacional do Rio de Janeiro. 174f. Dissertação (Mestrado em História das ciências). Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009, p.121-144.

443 Bandeira era vinculada ao Jardim Botânico e realizava trabalhos de descrição botânica na Estação Biológica de Itatiaia juntamente com Paulo Campos Porto. Ver BEDIAGA, Begonha; PEIXOTO, Ariane Luna; FILGUEIRAS, Tarciso S. Maria Bandeira: uma botânica pioneira no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.3, p.799-822, jul-set.2016.

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5.1.2 Uma revista em três tempos

Já compreendemos a revista no tocante à questão de gênero. Passemos agora a refletir sobre a composição por faixas etárias. Em pese as lacunas de alguns membros durante a realização do mapa prosopográfico, denotamos que não pertenciam a mesma geração de nascimento. Ou seja, a percepção geracional clássica que identifica uma geração pela proximidade das datas em que veio ao mundo, não seria aplicável a este conjunto de intelectuais.

Com uma duração de duas décadas, a revista foi continuamente modificada e renovada. Adentram-se elementos mais jovens, falecem os sujeitos mais antigos e até mesmo intelectuais que não participavam na primeira fase podiam ganhar relevo na terceira. Ou seja, a revista é uma entidade viva que promove um encontro entre núcleos geracionais. Quando é criada em 1929, tem a presença de um jovem técnico de 24 anos, como é o caso de Fernando Milanez; de um experiente homem de ciência de 48 anos, tal como Alberto José de Sampaio; mas detinha os cabelos brancos de Augusto de Lima com 70 anos de idade.

Caso seguíssemos esta lógica de segmentação por idades poderíamos ter a seguinte