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Capítulo 2- Método Biográfico: caminho para uma Investigação

2.1 Uma contextualização histórica da abordagem biográfica

Por mais que nas últimas décadas tenha sido notável o crescimento de estudos com a abordagem biográfica, Bueno (2002) aponta que essa perspectiva metodológica foi amplamente empregada nos anos 1920 e 1930, por sociólogos da Escola de Chicago. Nas décadas seguintes, em razão da predominância da pesquisa pautada pela objetividade e hegemonia da intencionalidade nomotética, a abordagem biográfica sofreu um colapso. Assim sendo, foi necessário um movimento que reconhecesse a legitimidade e o estatuto científico da abordagem biográfica enquanto método de investigação. Para compreender esse reconhecimento do método biográfico nas ciências sociais, recorremos à obra de um dos autores que teve grande parcela de contribuição nessa retomada: Franco Ferrarotti. A partir de seus escritos presentes na obra “História e histórias de vida: o método biográfico nas Ciências Sociais” (2014) tecemos a próxima sessão, que evocará a trajetória dessa retomada e do reconhecimento da autonomia do método biográfico.

2.1.1 O uso de biografias no contexto de uma historicidade historicista

O paradigma científico da modernidade trouxe implicações epistemológicas e metodológicas também às Ciências Sociais. De acordo Georges Balandier (2014), tal

48 efeito ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e evidenciava os princípios da objetividade- marcada pela separação sujeito-objeto e relegação da subjetividade- e da intencionalidade nomotética, que prevê a formulação de leis gerais para construção do conhecimento. Os instrumentos metodológicos enalteciam sondagens quantitativas, processamentos numéricos e formalizações por meio de técnicas caracterizadas por “específicas, mecanicamente intercambiáveis de instrumentalidade pura a ser aplicada ao mundo humano.” (FERRAROTTI, 2014, p. 50).

Ferrarotti (2014) reconhece que as realidades sociais em estudos realizados sob essa abordagem são empobrecidas e “ossificadas”, uma vez que neles o mundo humano é reduzido à condição de objeto de pesquisa e, portanto, insignificante porque é sentenciado a servir. Tal serviço se dá pela confirmação ou invalidação das hipóteses do pesquisador, que é interpretado como o único sujeito ativo na pesquisa. O autor reconhece essa relação como um processo assimétrico.

Nessas condições de instrumentalização da pesquisa, mas também de uma política de uma pesquisa que tende à autopromoção consciente do pesquisador, a única história possível não é a história de vida de cada um, mas, antes, a história do historicista. (FERRAROTTI, 2014, p. 50, grifos do autor).

Ferrarotti (2014) indica que também há um empobrecimento em pesquisas sociológicas que fazem o uso de biografias como um conjunto de materiais biográficos justapostos dos quais, a partir de uma série de biografias, seriam extraídos elementos, problemas, hipóteses e informações. Então, desses materiais seriam selecionadas informações fragmentadas e parciais. Com isso, há o rompimento da unidade sintética de uma biografia e esse protocolo de conhecimento sociológico que a encara como fonte de dados úteis só a utilizará caso a análise permita inseri-la no âmbito de uma interpretação mais geral. Esse autor aponta, ainda, um empobrecimento quando há uma redução e utilização da biografia como um caso particular- só interessará se for “exemplo significativo de certos aspectos do social que uma análise estrutural terá estudado previamente e de maneira completa” (p.104)- ou como ilustração- se ela tiver elementos sociologicamente comuns a outras biografias semelhantes.

Em todas essas possibilidades compromete-se o aspecto idiográfico que, como veremos a seguir, é próprio do método biográfico.

A especificidade de uma história individual que opõe a qualquer outra que a torne única, converte-se então em um obstáculo epistemológico,

49 num “resíduo” que não tem interesse para a ciência e remete a uma lógica do “caso”. O apelo a uma leitura idiográfica, que emana de qualquer biografia, foi sempre excluído do método biográfico, ou melhor, foi relegado à esfera da psicologia. (FERRAROTTI, 2014, p.105)

Com isso, é notável o esforço em ajustar a biografia, como critica Ferrarotti (2014), no “aprisco epistemológico” das ciências da natureza ou quadro epistemológico e metodológico tradicional da sociologia em virtude do destaque à “objetividade, pesquisa indutiva de correlações constantes (atitude nomotética), tradução quantitativa das informações coletadas etc.” (p. 105). Ainda no contexto desse empenho, o autor afirma.

A subjetividade imanente a qualquer narrativa ou documento autobiográfico- porque, não o esqueçamos, os materiais utilizados são, em sua maioria, autobiográficos- é escamoteada por uma hermenêutica da biografia que só utiliza seus aspectos objetivos. A leitura dos materiais biográficos torna-se uma busca sistemática de informações mais gerais, dados, descrições, “histórias de vida” sociais- em suma, “de fatos” (...) O qualitativo apaga-se na presença do quantificável. A subjetividade ativa da autobiografia atenua-se na vida objetiva da crônica biográfica. (p.106)

Outra consequência decorrente desse empenho em confinar as biografias às técnicas objetivas é a busca por uma postura de exterioridade e afastamento do pesquisador, no intuito de uma neutralização de um papel ativo nos materiais biográficos. 2.1.2 O método biográfico proposto por Ferrarotti (2014): por uma

historicidade não historicista

Nos anos 1950, Ferrarotti investigava as consequências humanas do desenvolvimento técnico e econômico-industrial no contexto italiano. Para isso, começou a recolher histórias de vida e documentos autobiográficos em algumas comunidades. A partir disso percebeu seu desconforto com as pesquisas sociológicas por considerá-las insuficientes.

Somente através de uma longa série de experiências intelectuais e de verificações práticas foi que eu cheguei, na minha fase de desenvolvimento intelectual, a me defrontar com o problema da autonomia do método biográfico e de seu caráter decisivo para o futuro da pesquisa das Ciências Sociais. (FERRAROTTI, 2014, p.59)

50 Para respeitar epistemologicamente a biografia, o autor admite a história de vida como um método autônomo, o que implica necessariamente uma “historicidade não historicista” (p. 50). Também assume a importância da validação da subjetividade na produção de conhecimento e um corte radical à intencionalidade nomotética com vistas a uma intencionalidade idiográfica.

A negação da especificidade da biografia por meio de uma metodologia nomotética e de técnicas reificantes desvirtua seu caráter essencial, isto é, sua historicidade profunda, sua unicidade. Trata-se, pelo contrário, de explicitar até o fim as implicações dessa especificidade e de fundamentar a originalidade epistemológica, metodológica e técnica do método biográfico (FERRAROTTI, 2014, p. 109)

Esses incômodos de Ferrarotti coincidem com as percepções críticas que evidenciavam um colapso epistemológico e metodológico da sociologia clássica e que apontavam para a necessidade de uma renovação. Tal crise justificou a retomada de “velhos procedimentos” como as biografias. Nesse cenário, Ferrarotti (2014) afirma que o método biográfico foi colocado como um “desafio científico escandaloso” por diversos motivos. O primeiro é atribuir à subjetividade um valor de conhecimento e entender que material biográfico é subjetivo.

Uma biografia é subjetiva em vários níveis: lê a realidade social do ponto de vista de um indivíduo historicamente especificado; fundamenta-se em elementos e materiais que são, em sua maioria, autobiográficos, portanto expostos a inúmeras deformações de um sujeito-objeto que se observa e vai ao encontro de si mesmo; situa-se quase sempre no âmbito de uma interação pessoal (entrevista). (p. 102) A relação entre pesquisador e participante é outro fator de relevância. Esse autor concebe uma inversão epistemológica das posturas tradicionais da pesquisa, pois pesquisador e participante se relacionam a partir de uma igualdade substancial, que permite conceber um “conhecimento a dois”. Ferrarotti (2014) os considera como parceiros, visto que “cada um deles é portador de um saber, saber autóctone de ação, num caso; saber sociológico, no outro. E cada um desses dois saberes é legitimado pela experiência, pela primazia do campo” (p. 35) Desse modo, esse pressuposto rompe com a objetividade, pois o participante não mais é delineado como objeto da pesquisa.

Além disso, o método biográfico dificilmente se atém a elementos quantitativos, pois, em geral, são poucos e marginais. A biografia ressalta inteiramente elementos

51 qualitativos. Então é caracteristicamente subjetiva, qualitativa e alheia a qualquer esquema de hipótese-verificação (FERRAROTTI, 2014).

Ainda no intuito de contextualização, nos dois próximos tópicos traremos contribuições para compreender o objeto e as características do método biográfico.

2.2 O campo de conhecimento, a intersubjetividade e o objeto da