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5. O ANTES DA ENTREGA: A DECISÃO

5.1 O Lugar da Infância e o Abandono Infantil: Breve Percurso Histórico

5.1.1. Uma Distinção Necessária: Maternidade e Maternagem

É importante para nosso estudo trazer a distinção entre maternidade e maternagem. A maternagem “seria de natureza social, enquanto maternidade estaria inscrita no âmbito biológico e diria respeito à procriação” (Maux, 2008). Ou seja, a maternidade está relacionada ao ato de gerar, e a maternagem, aos cuidados desprendidos ao filho, que pode ser exercido tanto pela mãe biológica quanto por terceiros (Maux, 2008; Motta, 2001; Moura e Araújo, 2004; Peretto & Valente, 2013). Compreende-se, portanto, que, ainda que a maternidade seja condição inerente ao ser mulher, devido ao aparelho reprodutor, a maternagem é cultural e socialmente construída, não sendo, portanto, necessariamente característica do ser mulher. É fato que a maternagem é ensinada às mulheres desde a mais tenra idade, através de brincadeiras e costumes que lhe são introduzidos, já que as meninas são incentivadas a reproduzir tais papéis femininos através de brincadeiras de casinha ou de boneca, onde exercem o papel de dona-de-casa e de mãe (Maux, 2008).

Logo, as genitoras que optam por entregar o filho em adoção, são mães pelo fato de gerarem, mas não desejam, ou não podem devido às condições nas quais estão inseridas,

97 exercer tal papel ou maternar seus filhos, será objeto de nosso diálogo com Pagu, Frida Kahlo e Simone de Beauvoir.

O tabu que recai sobre as genitoras pode estar ligado ao fato histórico de que quem responde pela gestação e pelos filhos é a mulher, assim como está ligado ao ideal de infância que se criou historicamente, onde a criança deve ser alvo incontestável de proteção e deve permanecer no seio familiar. Por ser um tema que abala um pilar da sociedade, que é a família, e por ir de encontro ao que se espera da mulher dentro desta sociedade e desta família, a entrega do filho torna-se, assim, algo que choca e causa estranheza (Valentim & Cortez, 2014).

Como foi descrito anteriormente, o abandono de um filho era permitido e existiu, de forma informal, até a Idade Média, quando se instituiu as Rodas dos Expostos. Ao longo desse período, avançando para a Idade Moderna, com a concepção de infância formada, o abandono tornou-se um ato condenável e a mãe passou a ser, além de responsável pelo filho, também culpada (Badinter, 1985; Menezes, 2007; Motta, 2006; Soejima & Weber, 2008; Trindade, 1999) tanto pelas coisas ruins que acontecem com os filhos, quanto pelo abandono, pois se instaurou o Mito do Amor Materno (Badinter, 1985; Costa, 2006; Freitas, 2014; Moura & Araújo, 2004; Rebouças, 2010; Soeijima & Weber, 2008; Weber, 2000). Isso levou, e leva, ao entendimento de que, além de função feminina natural de ser mãe (devido ao seu aparelho fisiológico), a mulher-mãe também tem o instinto natural de maternar, de cuidar e ser dedicada ao filho (Peretto & Valente, 2013).

À mulher desde cedo é atribuído características de passividade, maior afetividade, carência, sendo ensinado à menina, através do brincar, o cuidado com os filhos e a casa, com brincadeiras de casinha e boneca; enquanto ao menino é atribuído características de racionalidade, posicionamento ativo e independência (Maux, 2008;

98 Nogueira da Silva, 2013; Peretto & Valente, 2013). Ambos os papéis são ensinados desde a mais tenra idade para meninos e meninas, sendo-lhes instituída a dicotomia entre homem e mulher, feminino e masculino, tão logo é possível (Negreiros & Féres- Carneiro, 2004).

Dessa forma, ao instaurar a naturalidade do ato de maternar, cria-se uma cultura de laço de sangue, que valoriza o vínculo biológico (Maux & Dutra, 2010), atribuindo a este um status superior ao vínculo relacional que caracteriza toda relação: um convívio estabelecido e construído, de onde o sentimento afetivo surge. Essa cultura tem, ainda, implicações nos processos de destituição do poder familiar e adoção, já que é perceptível o quanto, em alguns casos, o poder judiciário insiste no vínculo biológico pela consideração histórica que ele tem de ser superior. Mas, assim como todo vínculo, aquele entre mãe e filho também é relacional, e surge a partir e durante a convivência e dos cuidados dispensados ao filho, ou seja, a maternagem (Badinter, 1985; Ferreira, 2014; Maux, 2008; Menezes, 2007).

O julgamento que essas mulheres sofrem por querer entregar o filho e a cultura dos laços sanguíneos, assim como a pressão da tradição da maternidade que recai sobre as mulheres, pode fazer com que a mulher se anule e desista da entrega, podendo, esse fato, ter consequências futuras, como possível dificuldade de vinculação e violência/negligência para com a criança, incutidas, também, pelo contexto em que a mulher está inserida, fazendo com que o filho seja, possivelmente, afastado do convívio familiar no futuro, como medida protetiva prevista pelo ECA e sendo colocado para adoção após destituição do poder familiar, se for o caso (Wille & Maffei, 2014).

Corroboramos com os autores que defendem que a decisão, ou não, da entrega deve ser algo trabalhado e discutido com a mulher, com suporte e acompanhamento de

99 profissionais envolvidos nessas temáticas, e isso é também um direito garantido em lei (Brasil, 1990; Motta, 2001; Wille & Maffei, 2014).

A partir da construção histórica da categoria infância e família, a infância foi se tornando, principalmente na Idade Moderna, alvo de proteção social. Iniciou-se uma preocupação com a saúde da criança, de forma a garantir sua sobrevivência, mas também maior interferência pública dentro do seio familiar, que garantisse a disciplina e o desenvolvimento moral infantil (Ariès, 1981; Fonseca, 2009; Frota, 2007).

A psicologia infantil, por exemplo, “teve tremenda influência sobre as concepções de infância e de educação das crianças nos tempos contemporâneos” (Corsaro, 2011, p. 78). A psicologia também teve papel na construção de regras que deveriam ser seguidas na busca de um padrão familiar (não somente restrito às crianças) dentro da normatividade (Moura & Araújo, 2004). É preciso ressaltar que, muitas vezes, como forma de disciplinar, o uso da violência era bastante comum, até considerado normal, um artifício importante para a educação rígida (Morais, 2011). Atualmente, isso tem sido repensado e vemos o quanto a infância tem se tornado alvo de proteção jurídica, através de instituições próprias que se debruçam para o amparo dessa população, como a UNICEF, o CONANDA, e leis, como a de nº 13.010/2014, de 26 de Junho de 2014, também conhecida como a Lei do Menino Bernardo, que proíbe, em seu Art. 18-A, castigos físicos, sofrimento físicos, lesão, tratamento cruel ou degradante, humilhação, ameaças e/ou ridicularizações a crianças e adolescentes.

A família, também, tornou-se instituição de proteção. No Brasil, por exemplo, a Constituição Federal, de 1988, a considera a base da sociedade e, portanto, alvo de proteção especial do Estado, sendo referida (entre seus direitos e deveres) em leis e planos nacionais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito

100 de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) (Ferreira, 2012).

Assim como a psicologia teve um papel fundamental no controle moral das crianças, a partir da construção histórica, ela também teve influência na “idealização e reforço do papel materno, na medida em que enfocaram a relação mãe-bebê como decisiva no desenvolvimento da criança” (Moura & Araújo, 2004, p. 50). É necessário, então, pensar a maternidade, e o lugar da mulher, mãe, na Contemporaneidade.