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Capítulo II- DEBATES POLÍTICOS E OPÇÕES EDITORIAIS NA PRIMEIRA

3- Uma nova presença africana na modernidade europeia

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Os protocolos de leitura e dos códigos que envolviam a publicação de sujeitos coloniais na metrópole no entreguerras são, ao longo da década de 1950, desestabilizados por novas alianças e posicionamentos. As novas posturas visíveis na estrutura, decisões administrativas e artigos da Présence Africaine demonstram a formação de novos repertórios do pós-Segunda Guerra Mundial e, ao mesmo tempo, como essas reestruturações após 1945 não são automáticas. Essas formas de agir do intelectual negro são construídas junto com novas associações, como é o caso das relações estabelecidas com políticos e administradores africanos durante a viagem feita por Alioune Diop no final da década de 1940 e descrita no número 6, de 1949.

Nota-se como a nova organização política das colônias e o lugar administrativo e jurídico de membro da União francesa promoviam possibilidades, ainda que restritas, relativamente maiores para a produção e a ação intelectual negras no cenário francês. Ou seja, a maneira como Alioune Diop é capaz de transitar entre a Europa e o continente africano e mobilizar interesses na colônia que incidem diretamente no espaço metropolitano demonstra que a maior autonomia política das instituições e da elite política da AOF no pós-Segunda Guerra Mundial promovia mudanças diretas no campo intelectual e editorial metropolitano.

Nesse capítulo, procurou-se compreender o modo como a Présence Africaine insere o intelectual negro em uma narrativa que o transforma no agente por direito e no interventor por excelência da história africana. Os elementos dessa construção, como o repertório político e cultural negritudiano, bem como abordagens do lugar das especificidades e das origens africanas na formação de relatos de representativadade e de imagens modelares para o futuro africano apontam para um objetivo central: de inserção das populações africanas na modernidade ocidental. A formação educacional oeste- africana de muitos dos intelectuais que povoavam as páginas da Présence Africaine, inclusive de seu diretor, e sua proclamada dupla filiação a Paris e a Dakar são visíveis na abordagem do moderno como uma representação das instituições políticas, sociais e educacionais europeias.

Os prefácios de Alioune Diop e seu constante retorno na imagem de uma África sub-equipada, na qual a técnica europeia seria o elemento que desencadearia o crescimento moral e a tomada de iniciativa por parte de suas populações, assumem que as formas da tecnologia e do jogo político europeu não são, em si, o problema, mas sim sua divisão desigual no mundo. Havia uma presença africana identificável naquele momento no mundo em diálogo, mas essa seria uma existência muda, intermediada pelo

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discurso da vanguarda artística ou da etnologia. O projeto de alçar o intelectual africano ao lugar de responsável histórico pela entrada real do continente africano na modernidade era uma agenda de eliminação desses intermédios e formação de uma elite africana voltada para seu povo.

A criação de uma editora sob o selo da Présence Africaine, bem como a criação de novos protocolos de publicação, nos quais o intelectual africano não mais se submetia à avaliação europeia, era parte do processo de criação de protagonismo histórico para uma elite africana. Como visto, nas páginas da Présence Africaine, era o homem de cultura negro que passava a credenciar ou não o intelectual europeu para falar sobre a África ou sobre sua diáspora. Essas novas estratégias editoriais eram criadas de forma paralela às temáticas e bandeiras do grupo mobilizado em torno da revista e, muitas vezes, concretizavam a ideia de autonomia, responsabilidade e diálogo desenvolvidas por seu diretor, Alioune Diop. Esses códigos que se constituíram ao longo do processo de ruptura interna à Présence Africiane que se concretizou ao longo da década de 1950 foram um trampolim para a formação de novas alianças.

No interior desse delineamento, o sentido do prefácio do número 1-2 da nova série fica ainda mais direto no texto introdutório ao número 3, de 1955. Nesse “Liminaire”, a condenação do colonialismo enquanto sistema é registrada como um ponto central do posicionamento coletivo da Présence Africaine. Novamente, a ideia de preservação de uma dimensão primordial e original africana aparece como uma questão do colonizador e em contradição com os interesses das populações africanas contemporâneas e seu desejo de progresso econômico e autonomia.

Querer salvar a integridade de nossas civilizações tradicionais pode parecer uma tarefa nobre no discurso colonizador. Mas não parece que esse objetivo seja realizável, pois as formas anêmicas de uma civilização não podem ser reanimadas do exterior por uma iniciativa estrangeira a esta civilização. E manter o domínio colonial é condenar à impotência estéril a única iniciativa que poderia ultrapassar, sem as trair, essas formas de civilização africanas. A colonização é, por essência, mortal a toda cultura; ela nega a iniciativa política que é a base de toda prosperidade cultural e da autenticidade espiritual174 [Présence,

3, 1955: 3].

174 Vouloir sauver l’intégrité de nos civilisations traditionnelles peut paraître une tâche noble à l’actif du

colonisateur. Mais on ne voit pas que ce salut soit réalisable car les formes anémiées d’une civilisation ne peuvent être ranimées de l’extérieur par une initiative étrangère à cette civilisation. Et maintenir le joug colonial c’est condamner à l’impuissance stérile la seule initiative qui puisse dépasser, sans les trahir, ces formes de civilisations africaines. La colonisation est par essence mortelle à toute culture; elle nie l’iniciative politique qui est à la base de toute prospérité culturelle et de l’authenticité spirituelle.

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No conjunto dos textos apresentados nesse tópico, de 1949 a 1955, nota-se a modificação de posturas programáticas da revista diante do colonialismo, agora pensado como problema central a ser resolvido no cenário das populações africanas. Delineia-se também um caminho para o intelectual negro e/ou africano, cuja responsabilidade de promover a entrada das populações africanas no diálogo formador da modernidade destaca-se como o maior objetivo.

Por fim, como base em questões retiradas da experiência da Présence Africaine no mercado editorial francês, mas também pela vivência do contexto político e cultural da década de 1950 pensado de maneira a abarcar debates parlamentares, políticas coloniais e a ascensão de uma elite política na AOF, o intelectual oeste-africano se torna um ator mais claramente delimitado, assim como seu papel histórico. De forma sugestiva, o “Liminaire” do número 3 traça também um novo lugar para o intelectual europeu, que fica visível na crítica apresentada abaixo:

O mundo se faz todos os dias e por todos. A cultura sendo, inicialmente, ‘consciência e alargamento das dimensões da iniciativa humana’, é difícil admitir que na África essa consciência seja prisioneira das trevas e esse alargamento, paralisado. No mesmo momento que, na Europa, os homens de cultura sentem sua liberdade ameaçada pela extraordinária potência de dois gigantes, é imcompreensível que, com grande alegria, essa mesma Europa ache normal condenar a iniciativa, a livre inspiração e a expansão de nossas culturas originais. Não se fabrica um escritor, não se fabrica um cristão, porque não se fabrica um povo175

[Présence, 3, 1955: 3-4].

Entre 1949 e 1955 foram introduzidos elementos e temáticas desse discurso que seria desenvolvido por Alioune Diop e outros intelectuais na segunda metade da década de 1950 e na década de 1960. Nesse sentido, um dos pontos que completa o argumento no qual Alioune Diop insistiu ao longo dos prefácios trabalhados até aqui, a saber de que o intelectual e o artista negros eram os responsáveis por inserir as sociedades e as culturas negras e africanas no diálogo mundial, é o da necessidade da técnica, do equipamento dos países colonizados ou ex-colonizados. A ideia de equipar a África ao invés de educá-la,

175 Le monde se fait tous les jours et avec tous. La culture étant d’abord ‘conscience et croissance des

dimensions de l’iniciative humaine’, il est difficile d’admettre qu’en Afrique cette conscience soit prisonnière des ténèbres et cette croissance paralysée. À l’heure où les hommes de culture en Europe sentient leur liberté menacée par l’extraordinaire puissance des deux géants, on comprend mal que de gaieté de coeur cette même Europe trouve normal de condamner l’iniciative, la libre inspiration, l’expansion de nos cultures originales. On ne fabrique pas un écrivain, on ne fabrique pas un chrétien parce qu’on ne fabrique pas un peuple.

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contrapondo políticas coloniais a um projeto de futuro baseado na autonomia para o continente, é ligada a uma leitura do que seria a modernidade ocidental.

Nos textos trabalhados, o moderno é dado por um pertencimento intelectual humanista e racional, mas também e, principalmente, pela detenção e pelo domínio sobre a ciência e a técnica. Esses elementos são usados para demarcar a diferença entre as sociedades europeias e as sociedades africanas e destacam-se, mesmo antes da afirmação do colonialismo como um mal em si e para além do campo da revista, como o principal fator de impedimento de simetria e de troca cultural entre esses dois campos, a exemplo do alijamento das populações da AOF e da AEF da cidadania francesa em nome da preservação de seu pertencimento cultural. As configurações da modernidade europeia eram entendidas, a partir dessa lógica, como um modelo universal de desenvolvimento. Nesse cenário, não é por acaso que mesmo após a reivindicação por autonomia política e a condenação do colonialismo, do racismo e da postura europeia diante do restante da humanidade, percebida como silenciamento, a Présence Africaine mantinha a filiação a uma noção de progresso ocidental. A mudança a ser promovida era uma melhor repartição desses recursos, o que geraria maior equilíbrio de forças no cenário internacional e relações pacíficas entre os atores de diferentes culturas e sociedades.

Sobre o discurso do desenvolvimento econômico em movimentos anticolonialistas nas décadas de 1950 e 1960, Dipesh Chakrabarty comenta: “Ideias sobre descolonização eram dominadas por duas preocupações. Uma era desenvolvimento. A outra, eu chamarei de ‘diálogo’”176 [LEE, 2010: 46]. Ainda segundo o autor, a primeira

dimensão mantinha a modernidade ocidental como objetivo final. “Isso era o lado desenvolvimentista da descolonização, a partir do qual pensadores anticoloniais aceitaram diferentes versões da teoria da modernização que transformavam o Ocidente em um modelo para todos seguirem”177 [LEE, 2010: 46]. Era preciso, pois, no interior

desta lógica, que as elites responsáveis pelas independências instruíssem suas populações a se apropriarem das novas instituições e planificações que eram propostas por meio do discurso desenvolvimentista. Chakrabarty nomeia essa tendência como pedagógica, mas ela seria complementada por uma dimensão dialógica presente na maneira como os atores envolvidos no anticolonialismo se perguntavam “se ou como uma conversa global de toda

176 Ideas regarding decolonization were dominated by two concerns. One was development. The other I

will call “dialogue”.

177 This was the developmentalist side of decolonization whereby anticolonial thinkers came to accept

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a humanidade poderia, genuinamente, promover o reconhecimento da diversidade cultural sem sua classificação em uma escala hierárquica de civilização”178 [LEE, 2010:

46].

No caso aqui trabalhado, ambas as dimensões destacadas podem ser lidas e nos fazem lembrar, por um lado, do lugar social que os atores aqui trabalhados possuíam nas sociedades das quais faziam parte e da necessidade de complexificar a imagem de contra- hegemonia com sua participação em elites intelectuais, políticas e, posteriormente, dirigentes nos territórios oeste-africanos. Por outro lado, a contínua necessidade de promover formas igualitárias de inserir a cultura africana em um debate estabelecido no cenário intercontinental se liga ao momento histórico, no qual a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, ganhava força e o discurso e as formas políticas da diplomacia internacional possuíam legitimidade e premência. Sugestivamente, no citado artigo, ao investigar os dois lados do que seria a “linguagem da descolonização”, Dipesh Chakrabarty debruça-se sobre a Conferência Afro-Asiática realizada em Bandung, Indonésia, em 1955.

Esse evento chama atenção, mais uma vez, para que os desenvolvimentos e as rupturas no interior da Présence Africaine se inseriam em um contexto histórico. No período que se abre com as rupturas aqui analisadas, as temáticas da responsabilidade e do diálogo foram largamente trabalhadas. E, como parte dos interlocutores e um dos principais interventores nos processos em torno das independências, o intelectual negro foi amplamente mobilizado a partir de seu papel nos projetos de futuro pensados para o continente africano. Em 1955, a começar pelo novo comitê de patronos, agora chamado de Comité Présence Africaine e formado apenas por nomes antilhanos ou africanos, a revista Présence Africaine coroa uma nova postura. O processo histórico no qual se insere essa ruptura extrapolou as páginas da revista e mobilizou discussões muito além do fazer intelectual, mas com repercussões e trocas diretas nas atividades e caminhos trilhados pelo periódico.

178 […] whether or how a global conversation of humanity could genuinely acknowledge cultural diversity

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