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Uma proposta de análise para abordagem, navegação e interação

4 ANALISANDO O GÊNERO SOB NOVA LENTE

4.1 Uma proposta de análise para abordagem, navegação e interação

Procede-se a um exercício de inferências, por meio da aplicação exploratória descritiva dos conceitos das autoras Penafria (2013) e Gaudenzi (2013), com o intuito de verificar uma categorização conjunta, ou seja, se é viável a distinção de produções segundo uma só lente e se esta categorização ocorre de forma não conflitante. Parte-se de alguns exemplos anteriormente citados, como os documentários interativos no modo hipertextual Journey to the End of Coal e Forgotten Flags, apontados por Gaudenzi (2013) e (re) analisados a seguir.

Journey to the End of Coal, um webdocumentário estudado por Penafria (2013), trata sobre a realidade vivida pelos trabalhadores em minas de carvão da China, descritas como as mais perigosas do mundo, em meio à corrida do país pelo crescimento econômico e a um contínuo desrespeito aos direitos humanos, ao lado de poluição dos rios, desaparecimento de vales e destruição de cidades inteiras, numa época em que a China passou a ser considerada a terceira maior força econômica mundial, conforme informações visualizadas no próprio projeto.

Portanto, traz um tema claramente definido no espaço e delimitado no tempo. Sua documentação, a partir de imagens e textos com dados factuais, remete à época em que as exportações da China cresciam a um ritmo de 25% entre 2001 e 2007, tornando-o maior país exportador ao final de 2008192. Quanto ao tema, é permitido ao usuário “investigá-lo” em maior ou menor grau de profundidade, a depender do seu interesse em conhecer a realidade que cercou a extração de carvão na China naquele período. Em sua interface, predomina o uso de pequenos menus (figura 57) com opções de percursos, aos quais vão sendo integrados textos sobre imagens e novas escolhas para acessar textos informativos, com dados factuais, à medida que ocorre a navegação.

192 Fonte: EFE/UOL. Disponível em:

Figura 57 – Navegação direcionada por meio de menus, em Journey to the End of Coal

Fonte: http://www.honkytonk.fr/webdocs/journey/.

O projeto apresenta uma estrutura de navegação em rede direcionada (ou fluxograma) - similar à demonstrada em The Big Issue - como uma árvore em camadas, caracterizando Journey to the End of Coal como um documentário interativo hipertextual com lógica de ligação (subgênero) reativa na interface, sendo a sua abordagem centrada com uma navegação disseminada.

Forgotten Flags – assim como The Love Story Project - é um documentário interativo baseado na ferramenta Korsakow193. A partir de uma base de dados fechada, o usuário navega de forma intuitiva por meio de hiperlinks de vídeos organizados na interface, compondo um menu de unidades narrativas com tamanhos diferenciados (figura 58). À esquerda, uma janela principal faz a reprodução do vídeo introdutório e dos demais que passarem a ser selecionados. À direita, um conjunto de hiperlinks com imagens (ou frames), cada um correspondendo a um vídeo, apresentam tamanhos distintos entre si. Ao apontar o cursor do mouse sobre cada uma dessas imagens ou frames, surge em texto um título específico.

193 Ferramenta de código aberto para produção de webdocumentários. Site: http://korsakow.com. Acesso em: 17

Figura 58 – Forgotten Flags: modo hipertextual com lógica de ligação reativa na interface

Fonte: http://view.korsakow.tv/vffree/.

À medida que o usuário seleciona um dos vídeos, outro conjunto diferente de 6 vídeos é disponibilizado, ao mesmo tempo que se dá a reprodução do vídeo escolhido na janela principal. Esta programação algorítmica (como já detalhado em The Love Story Project) leva a uma geração flutuante de novos hiperlinks, caracterizando o projeto como documentário interativo hipertextual com lógica de ligação (subgênero) interativa na interface. Como informado no site que hospeda o documentário interativo, Forgotten Flags compreende um filme, um webdocumentário, um DVD e uma instalação, tendo sido exibido pela primeira vez no site do Goethe Institute, em 2007 e, posteriormente, em Amsterdã e Bonn. O contexto do tema logo fica claro com o enunciado na página principal do site oficial:

Tem sido um relacionamento difícil por um longo tempo. A história da Alemanha tornou difícil para os alemães dizerem “Eu tenho orgulho em ser alemão”. Tudo mudou durante o verão de 2006, quando a copa do mundo de futebol, hospedada na Alemanha, fez os alemães agitarem suas bandeiras despreocupadamente194. (ALEMANHA, 2007).

Na mesma página é explicado que, antes da realização da copa do mundo de futebol da Alemanha, em junho de 2006, dificilmente exibia-se uma bandeira “preta- vermelha-dourada” em espaços públicos do país. A partir do evento, ocorreu drástica mudança no relacionamento dos alemães com suas bandeiras, “mergulhando” o país nessas cores, como se a bandeira representasse o próprio futebol. Passado o evento, a maioria das pessoas recolheu novamente essas bandeiras, mas algumas permaneceram hasteadas. Seis

194 Tradução nossa. Texto original: “It has been a difficult relationship for a long time. German history made it

difficult for Germans to say: ‘I am proud to be German’. Everything changed, during the summer of 2006, when the soccer world cup, hosted in Germany, made Germans wave their flags unconcernedly”.

meses após o jogo final da copa, o cineasta Florian Thalhofer, junto com a fotógrafa Juliane Henrich, viajou pelo país conversando com as pessoas que não haviam ainda baixado suas bandeiras. É informado que as bandeiras que são visíveis nos dias de hoje não são as mesmas que renasceram a partir da copa - por não terem resistido ao tempo - e foram substituídas.

Trata-se um projeto cujo tema está delimitado no tempo (após a copa do mundo da Alemanha) e definido em termos de espaço (cidades alemãs), não sendo prevista a possibilidade de se deixar testemunhos. Sob esse aspecto, distancia-se de The Love Story Project, cuja abrangência da abordagem quanto ao tema não se define no espaço e não se delimita no tempo, ao tratar de tema que diz respeito a todas e a cada uma das pessoas, em todos os lugares.

A navegação em Forgotten Flags se dá de forma disseminada, em que cada escolha pode corresponder a uma navegação ora com narração do próprio cineasta, ora com testemunhos ou em espaços públicos, na qual o usuário define o seu percurso e segundo o quanto o apelo da obra motiva sua participação. É necessário destacar uma condição pré- existente: a de que uma escolha produz mais de um resultado (lógica de ligação interativa), relacionada mais a um fator de tecnologia do que ao tema em si. Trata-se da mesma dinâmica algorítmica percebida em The Love Story Project, porém a abordagem quanto ao tema é diferenciada entre os dois projetos. Quanto mais se navega neste último, mais e mais testemunhos sobre os mesmos aspectos emocionais e afetivos comuns a todas as pessoas do mundo, em maior ou menor grau, são absorvidos, de forma idêntica e aparentemente infinita. Em Forgotten Flags, este “acúmulo” está, claramente, restrito a muitos e muitos alemães e a um determinado estado emocional e afetivo atribuído somente a eles e a locais em que as bandeiras tremulam, entre outros registros que cercam o tema, feitos pelo cineasta.

Por outro lado, a possibilidade de entrevistar muitos outros cidadãos alemãos que adotaram o mesmo comportamento, gerando mais e mais depoimentos a serem acrescidos e experimentados em uma estrutura de navegação que passaria à condição de idêntica e infinita, não remeteria o projeto a uma abordagem global com navegação cumulativa? Como avaliar, então?

Primeiro, é preciso destacar que não se trata de um tema de abordagem global, mas sim restrita. Parte de uma condição única vivida por pessoas de um certo país (a questão do orgulho ferido, por causa da própria história da nação... e como a copa do mundo alterou a percepção que eles tinham do próprio país) e não a qualquer pessoa e nem a todas as pessoas e não a todos e a cada um dos países. Em seguida, deve-se considerar que o artefato não permite deixar testemunhos e nem tende, tecnologicamente, para essa previsão. Como o seu tema está

delimitado, uma concessão possível, como propõe Penafria (2013), seria considerá-lo como documentário com abordagem tendencialmente global – sob um ponto de vista “localmente global”, ou seja, restrito ao universo da Alemanha e ao de todos os seus habitantes, correspondente a “todos os usuários alemãos”. Portanto, numa análise exclusiva entre documentários interativos alemãos, a título de exemplo, poder-se-ia considerar que a abordagem do projeto, quanto ao tema, é global. Já caracterizado como documentário no modo hipertextual com lógica de ligação (subgênero) interativa em sua interface, pode-se atribuir a Forgotten Flags, em um contexto geral, uma abordagem centrada com dinâmica de navegação disseminada.

A partir desses exemplos, pode-se distinguir a existência de documentário interativo, quanto ao seu tema e tipo de interação, com abordagem centrada e navegação disseminada no modo hipertextual, podendo apresentar lógica de ligação reativa ou interativa na interface. Utilizando, a seguir, os documentários interativos no modo conversarcional The Aspen Movie Map e Sim City, procede-se a uma segunda análise por meio da aplicação dos conceitos de abordagem e dinâmica de navegação.

O modo conversacional, de Gaudenzi (2013), é inspirado em um tipo de interatividade que intenciona reproduzir a interação entre dois seres humanos, ou de um humano em um espaço físico. Para ela, a visão de Lippman (1987) de uma conversação ilimitada com o computador é ainda tecnicamente impossível, mas sua simulação se torna mais convincente à medida que velocidade e memória do computador se expandem. Esse caminho, entretanto, passou a ser trilhado por meio do uso da Inteligência Artifical nos jogos (interação artificial em ambientes 3D) e a extensão do ambiente da interação da tela para um espaço físico (projetos locativos). Assume-se, desta forma, que a interação com o mundo se parece com o “conversar” com esse mundo: ele está aberto a infinitas possibilidades (impressão de um banco de dados infinito) e tanto o usuário quanto o ambiente reagem em tempo real um com o outro (previsão limitada).

Em The Aspen Movie Map (1980), o computador foi utilizado como um simulador da realidade – a de dirigir de forma virtual e interativa pelas ruas da cidade de Aspen -, projeto no qual o autor decidiu o que poderia ser feito com essa realidade (virar numa rua, parar, tocar na parede, etc.), mas sem executar interferências durante a narrativa. Esta é vivenciada e criada em tempo real, tanto pela máquina quanto pelo usuário, sem que a interação entre eles gere algum novo conteúdo. A ação/seleção empreendida se materializa em uma próxima tela - uma nova tela, com uma nova rua -, caracterizando um nível baixo de interação, como indicado por Gaudenzi (2013). Tem-se por definido o espaço, em razão de

estar a abordagem do tema centrada na cidade de Aspen, mais especificamente em seu espaço físico. O tempo é delimitado, no mínimo, em função de uma documentação de ruas realizada em determinada época, não havendo previsão tecnológica para que essa documentação vá se atualizando ou se complementando posteriormente, agregando novas e diferentes ruas ao artefato. A navegação ocorre por meio de um menu de comandos com ações possíveis ao ato de “dirigir”, de se movimentar dirigindo pelas ruas da cidade. Pode-se assumir, portanto, The Aspen Movie Map como um exemplo de documentário interativo no modo conversacional com abordagem centrada e navegação disseminada.

Segundo Gaudenzi (2013), no documentário interativo Sim City, outro exemplo no modo conversacional, ao contrário de The Aspen Movie Map, a ação alimenta um algoritmo que, em retorno, gera uma cidade que inexistia antes da interação com o sistema – um efeito de retorno gerado que foi possibilitado pelo uso da inteligência artificial. A autora relata que Sim City vem a ser a primeira narrativa interativa que foi reconhecida como mais do que um jogo: um jogo de simulação que cria narrativa em progresso, gerando eventos variados conforme as decisões tomadas pelo usuário durante a construção e gestão de uma cidade virtual. Explica que o projeto coincide com a emergência de outras formas híbridas de “docu- games”, então denominados “Games for Change” ou “Serious Games”195, desvanecendo os

limites entre entretenimento e documentarismo.

Durante a navegação, além de vários tutoriais, é disponibilizado ao usuário diversos menus com múltiplas opções para construir uma cidade e administrá-la como prefeito: instalar áreas residenciais, comerciais ou industriais; erguer edifícios e também destruí-los, construir estradas e torres de energia; ajustar taxa de imposto; fazer negócios, entre outras. A depender da gestão realizado pelo jogador para desenvolver a cidade, as pessoas entram ou saem, existindo recompensas (em algumas versões) no caso de aumento da população, mas com um preço: para mantê-las na cidade, é preciso acomodá-las e atender às suas necessidades. Outro desafio são os desastres (variam entre as versões), que podem ocorrer de forma espontânea ou provocados pelo jogador, tais como: terremoto, inundação, incêndio, acidente aéreo, explosão nuclear, entre outros.

195 Nota de Gaudenzi (2013): “In 2002 the movement ‘Serious Games’ was lauched after the vídeo game

Americas Army proved that games could go beyond their entertainment value. [...] Another movement, ‘Games for Change’ (G4C), tried to promote the use of digital games to envolve Young audiences in social issues (raising issues of race, environment, human rights, health, etc...). For more information see http://www.gamesforchange.org/. Recent examples might be Participatory Chinatown (2011), and One Ocean Interactive (2011)”.

Segundo a página de fãs SimCity Wiki196, foram incluídos cenários em Sim City, abrindo uma forma diferente de jogar que se caracteriza por definir um objetivo e um limite de tempo, até então inexistentes. Tais cenários replicavam uma cidade real e até mesmo um acontecimento real (também variando entre versões), entre eles: Berna, Capital, Suíça, 1965 – tráfego excessivo; Boston, Massachussets, EUA, 2010 – fusão nuclear; Detroit, Michigan, EUA, 1972 – altos índices de criminalidade; Hamburgo, Alemanha Nazista, 1944 – fogo ocasionado pelo bombardeamento dos aliados no fim da II Guerra Mundial; Las Vegas, Nevada, EUA – invasão alienígena; Rio de Janeiro, Capital, Brasil – inundações provocadas pela elevação do nível do mar (aquecimento global); Tóquio, Honshu, Japão, 1961 – ataque do Godzilla, entre outros.

As atividades (opções de jogo) voltadas à construção de uma cidade e à sua gestão como prefeito produzem resultados a partir da perspectiva individual quanto aos temas envolvidos (social, segurança e serviços públicos, ecologia, obras públicas, economia, entre outros). A cada jogador corresponde uma história particular, uma experiência única, à qual ele pode adicionar novas histórias, à medida que (re) faz a sua gestão ou continua construindo (ou destruindo) uma cidade. É possível interagir com outros “prefeitos”, por meio do Facebook. Pode-se argumentar que essa perspectiva seja aprofundada pelas diferenças entre as cidades erguidas ou pelo cenário que “documenta” (estadunidense, chinês, alemão, brasileiro, etc.). Os “usuários-prefeitos” podem apresentar distâncias em função das suas origens, em que os aspectos culturais, políticos, educativos, sociais e econômicos influenciam suas estratégias de jogo. A experiência (ou o testemunho) de um usuário asiático e de um europeu podem acontecer partindo de diferentes abordagens aos temas do jogo, enquanto que a experiência de usuários de um mesmo país tendem a abordagens mais centradas, limitadas – pois, no jogo, é o usuário-prefeito quem “constrói” essa abordagem. Uma questão ganha relevância em razão das modificações do jogo por meio de novas versões: com os cenários, a abordagem passa a ser impactada, pois, em parte – a depender das suas escolhas para participar, como a opção a partir dos cenários pré-definidos, por exemplo -, o jogador acede a um tema com tempo e espaço definidos para cumprir um determinado objetivo. Portanto, pode-se dizer que Sim City é um documentário interativo conversacional com abordagem global (ou parcialmente global, a depender da versão) e com navegação cumulativa.

Tal exercício de análise pode ser expandido para os variados exemplos de webdocumentários e documentários interativos detalhados no capítulo anterior, a partir dos

modos de interação e tipos de abordagem e dinâmica de navegação, ficando demonstrado que a aplicação conjunta destes conceitos é tanto viável quanto complementar para a diferenciação dos tipos de produções existentes.

A seguir, faz-se esta mesma análise exploratória descritiva de algumas produções brasileiras, cuja seleção buscou representatividade de temas e diferentes anos de lançamento como forma de traçar um possível cenário da presença do novo gênero documental interativo no país. Predominou, para esses exemplos, a utilização do termo webdocumentário para sua descrição, em razão de assim estarem autodenominados online e igualmente citados por outras fontes na Internet.