• Nenhum resultado encontrado

4.2 Mundos Impossíveis

4.2.1 Uma proposta modesta

Talvez a ideia mais natural - no sentido de que propõe algo que se desvia pouco do caminho apontado por Stalnaker e Lewis - é a extensão da semântica pela inclusão de mundos impossí- veis. Essa ideia é sugerida pelo próprio Lewis em seu livro, como alternativa àqueles que não estivessem convencidos por seus argumentos favoráveis ao vacuísmo:

3Essa ideia se deve à (KRAKAUER, 2012, p.52). O exemplo original dizia respeito a uma propriedade do número de estrelas.

4Há diversas tentativas de modelar alguns fenômenos desse tipo com análise semântica. O quanto eles são ou não bem sucedidos não é assunto que cabe no escopo desta dissertação, no entanto.

If you do insist on making discriminations of truth value among counterfactuals with impossible antecedents, you might try to do this by extending the comparative similarity orderings of possible worlds to encompass also certain impossible worlds where not-too-blatantly impossible antecedents come true (LEWIS, 1973b, p. 73)

Ele próprio, no entanto, não julgava essa uma boa solução, tanto por estar convencido pelos próprios argumentos a favor do vacuismo, quanto por não aceitar a inclusão de mundos impossíveis. Essa segunda razão foi desenvolvida sobretudo em (LEWIS, 1986), onde Lewis desenvolve sua teoria idiossincrática e polêmica acerca dos mundos possíveis, que ficou conhecida por realismo modal.

O realismo modal de Lewis é a tese de que mundos possíveis existem concretamente: não são construções teóricas abstratas nem tampouco propriedades do mundo atual. Além disso, o que diferencia nosso mundo, o mundo atual, dos demais, não é nenhuma forma especial de existência. O predicado “atual” teria um caráter indexical - isto é, seu conteúdo semântico não seria resolvido inteiramente pelo conteúdo literalmente expresso, mas também por uma suplementação contextual de lugar, tempo etc. (LEWIS, 1970). Portanto, o que distingue o mundo atual dos demais é o fato dele ser atual para nós. Para habitantes de outros mundos, isso não é o caso.

Esse caráter permite encarar diversas formas quantificacionais da linguagem como quanti- ficações restritas. Em geral, quando falamos que unicórnios não existem, não queremos dizer que unicórnios não existem em nenhum mundo possível, mas que unicórnios não existem preci- samente no nosso mundo. Isto é, restringimos o escopo da quantificação que, tomada de forma irrestrita, percorreria todos os possibilia - i.e. os objetos possíveis - ao invés limitar sua busca ao subconjunto dos objetos atuais.

Mas isso também torna a existência de mundos impossíveis potencialmente perigosa. Como podemos falar de existência em outros mundos, Lewis argumenta que a existência de mundos impossíveis tornaria nosso próprio mundo, e todos os demais, impossíveis. Suponhamos que haja um objeto inconsistente, o, em um mundo impossível i, tal que, para um determinado predicado P , i P (o) e i ¬P (o). Como mundos funcionam quantificacionalmente como lugares

- i.e. como restrições -, podemos falar, do nosso ponto de vista que: (P) “em i, P (o)”. E também podemos falar que (P*) “em i, ¬P (o)”. Porém, dada a classicalidade do nosso mundo, traduzimos essa segunda proposição por: “em i, não é o caso que P (o)”, ou (¬P). Mas se isso é o caso teríamos uma contradição instanciada no mundo atual, e isso não é possível!

Há duas maneiras de escapar da aporia colocada por esse argumento. Em primeiro lugar, podemos simplesmente recusar a teoria pouco palatável do realismo modal. Mundos possíveis não existem exatamente como o nosso, em suma. Talvez o termo “mundo possível” nos leve a concluir mais do que podemos ou devemos, instigando a imaginação, quando, na verdade, nos modelos de Kripke, tudo o que interessa é um conjunto não vazio com uma relação binária

definida sobre ele. Há uma série de alternativas para interpretação filosófica dos mundos possí- veis que divergem do realismo modal: essas entidades podem ser encaradas como conjuntos de proposições (ou conjuntos de sentenças em uma determinada linguagem), o que Lewis chamou de mundos ersatz; também é possível vê-los como propriedades do mundo, como potencialida- des, na linha sugerida por (STALNAKER, 2003); ou mesmo abordá-los como objetos abstratos com certas propriedades, e cuja existência concreta sequer se põe. Adotar qualquer uma dessas alternativas não nos livra, num passe de mágica, de todos os problemas relacionados a mundos impossíveis, mas tira a força do argumento utilizado por Lewis.

Por outro lado, é possível contra-atacar Lewis em seu próprio campo, como fez (YAGISAWA, 1988). Yagisawa elabora um argumento condicional acerca da existência de mundos impossíveis no realismo modal: o que ele defende é que se o realismo modal estiver certo, então mundos

impossíveis devem existir, mantendo-se agnóstico acerca do realismo modal em si. Entre as

razões que ele elenca, há a preservação das virtudes da proposta de Lewis e uma versão alterada do argumento extensional do mesmo autor.

Lewis defendia a tese de que nosso discurso pressupõe maneiras pelas quais o mundo po- deria ter sido e que nos referimos a essas maneiras da mesma forma com que o fazemos para com objetos concretos, como mesas e cadeiras. Isso, aliado ao critério de compromisso on- tológico de Quine5 - i.e. que deveríamos nos comprometer com as entidades sobre as quais

quantificamos6 -, nos faria incorporar essas maneiras pelas quais o mundo poderia ter sido à

nossa ontologia. A perplexidade estaria mais no batismo: chamar essas maneiras de mundos

possíveis. Para Yagisawa, da mesma forma que há maneiras pelas quais o mundo poderia ter sido, também há maneiras pelas quais o mundo não poderia ter sido. Essas formas também

estão em nosso discurso e também são necessárias para nossa comunicação - devem estar no domínio quantificacional, portanto.

Adotar mundos impossíveis, portanto, preservaria as virtudes da teoria de Lewis: poder explicativo, teoria semântica extensional e economia ontológica. Além disso, possibilitaria explicar casos que desafiam o realismo modal clássico, como a diferenciação de propriedades impossíveis. Por outro lado, como o argumento é condicional, se válido, ele pode servir também para rejeição do realismo modal em si, mesmo em sua variedade lewisiana, que não aceita mundos impossíveis. A ideia é que, se uma teoria leva a conclusões tão patentemente absurdas, ela deveria ser rejeitada. Nesse caso, a defesa do realismo modal estendido vira do avesso e o argumento se torna um modus tollens: se mundos impossíveis não podem ser incluídos, então o realismo modal é falso.

5Desenvolvido em uma série de escritos, pode ser sumarizado grosseiramente como a prescrição de com- prometimento ontológico com as entidades pressupostas pelos domínios das formalizações de nossas melhores teorias científicas. Ver, sobretudo, (QUINE, 1948).

6O argumento de Quine é bem mais restrito, mas a motivação geral é a mesma: o compromisso ontológico vem dos domínios de quantificação de uma determinada linguagem.

De todo modo, se há algum consenso sobre o que são mundos impossíveis, ele se encontra nesta descrição: que são maneiras pelas quais o mundo não poderia ter sido7. Isso coloca uma

questão: para todas as maneiras pelas quais o mundo não poderia ter sido, há um mundo impossível correspondente? De acordo com um entendimento, sim. Mundos impossíveis são exatamente maneiras pelas quais o mundo não poderia ter sido e isso implica que qualquer uma dessas maneiras é correlata/idêntica a um mundo impossível. Isso implica aceitar objetos muito diferentes. Há, por exemplo, mundos impossíveis dedutivamente fechados segundo a lógica clássica: o mundo explosivo, λ.8 Também há mundos em que valem certas lógicas não

clássicas, como as lógicas paraconsistentes. Mas também há mundos sem nenhuma estrutura lógica: um mundo idêntico ao atual, com a diferença de que, além de uma certa proposição P , que vale no atual, vale também sua negação, ¬P . Um mundo com apenas uma contradição localizada.

Por outro lado, alguns autores defenderam que a ocorrência de mundos impossíveis está condicionada a alguma ordem lógica - um mundo impossível é apenas um mundo que está de- dutivamente fechado sobre uma lógica L diferente da lógica clássica (ou qualquer outra tomada como atual). Mundos impossíveis dessa natureza foram chamados de “mundos australianos”, em contraposição aos outros, mais liberais em sua instanciação de impossibilidades, chamados “mundos impossíveis americanos” (BERTO, 2013). A segunda opção, defendida sobretudo em (ZALTA, 1997) é mais promissora: se vamos falar de impossibilidades, não parece razoável nos limitar a uma classe restrita delas. Por outro lado, pode tornar a formalização mais difícil, na medida em que qualquer coisa passa a ser instanciada em pelo menos um mundo impossível.

Um último critério que deve ser destacado é a maximalidade. Uma maneira de encarar mundos possíveis é enxergá-los como situações maximais e consistentes (ZALTA, 1997). Uma situação S torna proposições verdadeiras ou falsas, mas não faz isso necessariamente para todas elas. Esse é o conceito informal, bastante intuitivo, de situação. O mundo possível é uma situação que torna toda proposição verdadeira ou falsa, mas não ambos (porque é consistente). Ou seja, é maximal; é uma história completa de tudo o que foi e virá a ser. Já mundos impossíveis devem ser, também, maximais. Violar essa propriedade tiraria o caráter dado pelo termo “mundo”: não haveria mais uma história completa, mas apenas de uma situação impossível e incompleta. Portanto, mundos impossíveis tornam toda proposição verdadeira ou falsa, ou ambos.

7Ver, por exemplo, (YAGISAWA, 1988) e (ZALTA, 1997).

8É interessante notar que o próprio Stalnaker (STALNAKER, 2016) incorpora esse objeto em sua semântica para que a função seletora modele corretamente casos vácuos.