• Nenhum resultado encontrado

UMA REALIDADE INCÔMODA E UMA POSSIBILIDADE DE GERIR APRENDIZAGEM

No documento Actas do I Encontro Internacional (páginas 154-161)

O processo de leitura com crianças em defasagem idade-série

UMA REALIDADE INCÔMODA E UMA POSSIBILIDADE DE GERIR APRENDIZAGEM

A execução de uma política social básica, promotora de igualdade, que tem como desafio maior receber e reter toda a população em idade escolar, além de oferecer oportunidades de atualização, reciclagem e complementação de escolaridade para os jovens e adultos que foram expulsos ou abandonaram os estudos prematuramente, deve pensar sempre o currículo presente no processo de formação do sujeito, como um verdadeiro “documento de identidade” (Silva, 1999), devendo ser considerado na sua elaboração, o respeito às diferenças de etnia, classe social, sexo e cultura. A não consideração de tais diferenças revela o descompasso entre o currículo proposto e o efetivamente aprendido pelos alunos. Essa desconsideração leva-nos a crer que a escola tenha participado mais como fomentadora da reprodução de desigualdades e privilégios, que como fomentadora de instrumentos de transformação, ajudando a “manter a ordem social” (Carnoy, 1974), fundamentando sua organização curricular em diversas teorias curriculares estrangeiras.

Embora haja influência de algumas teorias curriculares estrangeiras para a elaboração do currículo, em nosso país, segundo Moreira (1999), esta não é meramente uma transferência mecânica, fazendo-se necessária à adequação das mesmas à realidade experimentada e vivida pelo aluno no seu cotidiano, a fim de atender suas necessidades, marcadas pelas da própria existência da humanidade,

2

através de mais uma invenção social – o currículo (Young, 1971), embutindo nesta elaboração curricular os saberes trazidos pelos alunos.

Nesse sentido, considerando-se as diferenças, é que talvez possamos minimizar ou quem sabe superar o caráter excludente implícito no currículo e explícito na história de fracasso dos alunos do Programa de Aceleração de Aprendizagem na construção e consolidação do processo de leitura e escrita, a fim de desenvolver práticas curriculares que auxiliem a esses alunos e aos demais criticarem as desigualdades existentes em nossa sociedade de classes, onde questões como metodologia, relação professor-aluno e avaliação estejam articuladas nas análises realizadas, sem separar questões culturais de questões de poder, pois é neste contexto que a escola está inserida com seu currículo, e é nessa relação social, nesse processo de significação, que se produz essa diferença, em que regras de exclusão e de inclusão acabam por selecionar os sujeitos. Essa seleção implica exclusão, o que consideramos injusto, por acreditar como Silva (1999), que “não haverá ‘justiça curricular’, se o cânon curricular não for modificado

para refletir as formas pelas quais a diferença é produzida por relações sociais de assimetria” (p.90).

Para elaborar, então, um currículo, há que considerá-lo carregado, implícita ou explicitamente, das características de um mundo social e cultural cada vez mais complexo, onde as questões culturais e de poder expressas nas diferenças dos indivíduos devem ser respeitadas, bem como suas habilidades, competências e a pluralidade cultural do contexto sócio-educacional, de modo a contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, em que, analisando-se os processos pelos quais essas diferenças são produzidas, criticamente, se tente garantir a qualidade, aqui tomada não com o caráter de propriedade que não é universalizável, mas sim como um atributo inerente ao direito à educação (Gentilli, 1999), que segundo a legislação vigente, é um direito público subjetivo.

A formação de uma identidade pautada por tal direito e buscada pelo Programa de Aceleração deve ser perseguida a partir da construção de uma nova ordem social mais solidária e democrática que, segundo Morin (1999), significa confrontar-se com os paradoxos da ordem/desordem, da parte/todo, do singular/geral, considerando as ambivalências onde o acaso e o particular possam compor a análise científica como a idéia do caos organizador. A noção de ordem está ligada às idéias de interações e de organização que precisam recorrer à idéia de desordem, pois apesar dela se opor à ordem, é necessária para criar a organização.

Para Morin (1999): um mundo completamente determinado é pobre e mutilado e um aleatório é incapaz de nascer e evoluir. No caso dos sujeitos pesquisados, entendemos essa idéia de desordem naquilo que trouxeram como motivos para o fracasso, e que apesar dele se opor ao sucesso, que seria a ordem, foi necessário o resgate de tais fatores para que se compreendesse e se organizasse parte da trajetória de vida desses alunos em distorção idade-série, utilizando o olhar da complexidade a que se refere Morin.

O paradigma do pensamento complexo de Morin (2000) traz a noção de que elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo, onde a “complexidade é

a união entre a unidade e a mutiplicidade” (p.38), ratificando a necessidade da

educação através de currículos multidimensionais, que atendam ao homem que é biológico, mas dispõe de cultura, sendo esta que o realiza como ser humano, independente do mesmo estar numa situação de distorção idade-série. Nesse processo de reflexão/ação acerca da complexidade presente na construção de um currículo comprometido com a história de cada um e de todos, devemos pensar e cuidar para que a idéia de unidade do sujeito não acabe com a idéia da diversidade e vice-versa.

A idéia da diversidade, questão central que perpassa as teorias do currículo, obriga-nos a refletir e saber qual conhecimento deve ser ensinado, por quê, para quê e a quem ele se dirige (Saviani, 1994 e Silva, 1999). Em resposta a essas questões, as diferentes teorias recorrem a discussões sobre a natureza humana, a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade. Assim, a organização do saber escolar manifestada nos currículos é determinada por condições e finalidades sociais, envolvendo aspectos ligados ao sujeito que aprende, ao objeto a ser ensinado e aprendido, bem como ao trabalho pedagógico necessário para que se efetive a aprendizagem. Entretanto, faz-se necessário, mesmo reconhecendo que há uma seleção de conhecimentos, saberes, valores que vão constituir o currículo, que os profissionais da educação pensem sobre alguns aspectos que perpassam o processo pedagógico, dentre eles, suas raízes históricas e matrizes teóricas, a fim de que esses profissionais possam tomar decisões mais conscientes, diminuindo as desigualdades de condições nas negociações relativas à produção, à organização e à divulgação do conhecimento produzido historicamente, convertendo-o em saber escolar, num enfoque que permita socializá-lo, ao interferir na elaboração de currículos e programas, como o da Aceleração de Aprendizagem. Embora esse programa traga em sua organização curricular a perspectiva de atender o aluno nas dificuldades desenvolvidas, principalmente leitura e escrita, não sanadas durante vários anos de repetência, traz

como objetivo principal corrigir o fluxo de todo um sistema de ensino que precisa atender à enorme demanda que procura uma vaga na escola.

A questão do poder, então, que está embutida na seleção e organização do currículo centrado em disciplinas, pode ser um fator de impedimento para que quaisquer alunos, dentre os quais aqueles em defasagem idade-série, se construam como sujeitos de uma escola geradora de cultura que os inclua como sujeitos desenvolvendo neles competências e habilidades para atuar no mundo atual através de uma atitude globalizadora como forma de sabedoria, pois a “globalização

influencia a vida cotidiana tanto quanto eventos que ocorrem numa escala global”

(Giddens, 2000, p.15) ainda que, como afirma esse autor, saibamos que “nunca

seremos capazes de nos tornar os senhores de nossa própria história, mas podemos e devemos encontrar meios de tomar as rédeas do nosso mundo em descontrole” (p.16).

Essa forma de sabedoria, que se constrói através da instrumentalização para a leitura e escrita, segundo Gardner (1995) inclui várias capacidades mentais que permitem ao sujeito resolver problemas que ocorrem, sendo a inteligência “a

capacidade para resolver problemas ou de elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários” (p.14), onde todos os sujeitos

sejam considerados e não determinados ou rotulados, devido às diferentes formas de pensamento, ajudando-os a descobrir e a estimular competências individuais que permitam resolver os problemas diante dos quais nos encontramos, conforme Merieu (1998) ao afirmar que:

“a partir de uma competência dominada e de capacidades já possuídas, haverá desenvolvimento e complexificação de uma estratégia por sobreposição que levará a uma capacidade nova, ela mesma capaz de fecundar novas estratégias e assim sucessivamente” (p.133).

Essas diferentes formas de pensar e de ser necessitam de intermediação de estímulos às competências e capacidades a serem desenvolvidas considerando que ambas não existem isoladas e que, conforme Meirieu (1998):

“só há situação de aprendizagem quando nos apoiamos em uma capacidade para permitir a aquisição de uma competência ou, em uma competência, para permitir a aquisição de uma capacidade. Pode-se, então, chamar de “estratégia” a atividade original que o sujeito desenvolve para realizar essa aquisição” (p.134).

A instituição escolar, através de seus professores ou do próprio cotidiano, pode oferecer importantes insumos para o desenvolvimento da criatividade, da inteligência, do sucesso e da consciência crítica em seus alunos, nesse caso, os sujeitos da pesquisa, alunos em defasagem idade-série que necessitam da

apropriação e consolidação do processo da leitura e da escrita para prosseguir a sua vida acadêmica.

Apesar da complexidade que permeia todo esse processo de aprendizagens, mas sem o que não teríamos condições de entendê-los fez com que troxéssemos para este trabalho o tema da questão das relações humanas numa abordagem do pensamento complexo, o que significou percebê-lo como necessário para que compreendêssemos os sujeitos da pesquisa em suas totalidades e singularidades considerando todas as suas contradições, como condição para a garantia da legitimação dos alunos/sujeitos, percebidas e respeitadas como um outro sujeito com o qual nos identificamos, ao considerar a multidimensionalidade da realidade estudada na visão de alguns alunos em situação de distorção idade-série, onde o professor teve um papel importante e fundamental nesse processo complexo, nas relações estabelecidas com os alunos, segundo depoimentos dos mesmos.

A não ou pouca representação dos grupos das classes populares no currículo que desemboca nos procedimentos de avaliação parece contribuir para que alunos, dentre os quais aqueles em defasagem idade-série, construam auto- imagens negativas, não crendo eles próprios e também seus professores, algumas vezes, na possibilidade real de cada um vir a ser, de se constituir como sujeito (indivíduo-cidadão) pautado na certeza da “inconclusão”, do “inacabamento” do ser humano.

Isso se deve a um conjunto de fatores: grande número de repetência, baixos salários, infra-estrutura insuficiente, tensões existentes entre o mercado e as propostas de universalização da educação, que desembocam em processos de construção de políticas de “inserção” que, segundo Castell (2000), “obedecem a

uma lógica de discriminação positiva: definem com precisão a clientela e as zonas singulares do espaço social e desenvolvem estratégias específicas para elas” (p.

538). Essas políticas seriam um conjunto de empreendimentos com a função de reequilibrar, de recuperar a distância com relação a uma completa integração, como, por exemplo, integrar os alunos que se encontram em defasagem idade-série.

Para Meirieu (1998), “é pelo fato de que a consciência do outro

inevitavelmente me escapa que meu desejo de controle e minha vontade de poder tentam aniquilar o seu corpo ou, de maneira mais simples, mais trivial, mantê-lo fora de meu campo de visão” (pp. 34 e 35). Deste modo, entende-se que a única

aprendizagem que significa para o indivíduo é aquela que ele descobre por si mesmo, se apropriando dela.

Aprender seria compreender, trazendo para si partes do mundo externo, integrando-as ao próprio universo, construindo sistemas de representações que permitam a ação sobre esse mundo, pois não temos como resolver nossos problemas se não nos compreendermos nele inseridos. Mas como estar inseridos se: “anuncia-se respeitar a liberdade de outrem, mas priva-se-a, na verdade, dos

meios de se exercer; proclama-se dar o poder aos interessados, ao passo que a ignorância os mantém na dependência” (id. P. 37). Sob este enfoque estaremos

considerando as estratégias utilizadas pelos alunos em defasagem idade-série que participaram do Programa de Aceleração de Estudos, a fim de atribuir importância a eles que são normalmente ignorados no espaço escolar em que são produzidos, fazendo-os entrar no “beco sem saída” da multirrepetência, que se instaurou há anos e lá ainda permanece, tentando compreender a situação dos mesmos, considerando o modo como entendem ter aprendido durante a passagem pelo Programa de Aceleração.

Esse respeito ao aluno real, com limites e possibilidades, não significa acomodação. Ele justifica e favorece a promoção do desenvolvimento do aluno globalmente, a partir de verdadeiras situações de aprendizagem, pautadas em relações interpessoais em que realmente se dê a aceitação do outro como legítimo na convivência, em objetivos rigorosamente formulados, em estratégias pessoais de aprendizagem. Um ensino que ignorasse essas situações (Meirieu, 1998) em que os indivíduos são mais visuais, auditivos, motores, musicais, lingüísticos que outros

“teria todas as chances de só ser eficaz de maneira totalmente fortuita" (p. 83).

Mesmo sendo ainda pouco divulgadas no âmbito escolar, as pesquisas sobre estratégias individuais de aprendizagem e os estilos cognitivos (Meirieu, 1998; Gardner, 1995; Vygotsky, 1999), podem permitir ao professor refletir sobre a necessidade em se preocupar com aquilo que o aluno quer, procura, ou pensa, para alcançar o saber como desejável para si, sacrificando por ele desejos mais imediatos, por encontrarem um significado desse saber em seus projetos de vida, através de atividades mediadas.

A necessidade de uma estrutura social enfatizando aspectos em que as competências individuais precisam ser encorajadas, através da criação de ambientes cooperativos e incentivadores ou da implementação de programas, como o de Aceleração, parecem contribuir positivamente para o sucesso dos alunos em suas realizações acadêmicas. Essas interações, como afirma Vygotsky (1999) são internalizadas com o passar do tempo, servindo como uma orientação para o comportamento do indivíduo. Essas estratégias de intervenção desenvolvidas podem conduzir a realizações mais elevadas fazendo com que as crianças através

do apoio e envolvimento nos relacionamentos efetivos, sejam portadoras de valores desejáveis, aumentando a expectativa por parte dos pais e professores e também deles próprios.

Para a efetivação dessas estratégias externas e internas que objetivam encorajar os alunos é necessário lidar com preconceitos e estereótipos, que há muito vêm sendo construídos, através das práticas discriminatórias e excludentes, na área educacional. Enxergar essa situação permitirá o reconhecimento de uma “educação

para o entendimento” (Gardner, 1995) em que os currículos e os ambientes seriam

fomentadores de uma aprendizagem significativa em que se avaliem os desempenhos de entendimento dos alunos, com diferentes abordagens de aprendizagem da leitura e da escrita para não mais ensinarmos de uma mesma forma para todos.

A importância dessa organização de trabalho com qualquer aluno e, principalmente, aqueles em desvantagem, como os em defasagem idade-série, se deve ao fato de se entender que o desenvolvimento intelectual dinâmico, no processo de ensinar e aprender, se dá numa relação de afetividade entre professor e aluno, como afirma Freire (1997), que “não me assusta, que não tenho medo de

expressá-la” (p.159) porque ela não estará excluindo a possibilidade do outro

conhecer, ao contrário, estará permitindo a ambos o crescimento, a reorientação, o melhoramento, mediante a própria possibilidade de transgredir o discurso ideológico de que a afetividade interferirá no cumprimento do dever do professor/a.

A aprendizagem da leitura e da escrita nessa relação estabelecida de afetividade, no sentido de querer bem, de estar disponível para, de interessar a alguém e de interessar-se por alguém, significa ter compromisso com o educando, zelando pelo processo pedagógico no espaço em que atua com os alunos.

Pensar a aprendizagem da leitura e da escrita dos alunos em defasagem idade-série, sujeitos dessa pesquisa, pressupõe que seus saberes, conhecimentos e representações - “competências” - e a atividade intelectual - “capacidades” - sejam compreendidas fundamentadas no conhecimento prévio, ponto de apoio, no qual o sujeito e, através dele, as competências e as capacidades são articuladas. A aprendizagem da leitura e da escrita apóia-se nas aquisições anteriores do sujeito, naquilo que é familiar à sua estrutura cognitiva, isto é, as suas estratégias de aprendizagem. Essa estratégia do sujeito é inevitável, porém deve ser superada. Entretanto, só poderá sê-lo caso tenha sido inicialmente respeitada. Esse respeito legitimará a possibilidade do aluno, contribuindo para que ele esteja permanentemente em atividade de elaboração, integrando novos dados à sua estrutura cognitiva.

Segundo Meirieu (1998), são três as variáveis a serem consideradas no que se refere à elaboração das estratégias de aprendizagem por um sujeito. A primeira seria os suportes cognitivos, aquilo que ele já sabe. A segunda compreenderia tudo aquilo ligado à história psico-afetiva do sujeito, visto que a sua vivência pessoal vai determinar escolhas ligadas a frustrações ou satisfações afetivas. E a terceira estaria vinculada aos determinantes sócio-culturais, visto que nenhuma estratégia é neutra socialmente, já que são utilizadas de diferentes formas de acordo com a origem social do sujeito.

A complexidade dessa elaboração de estratégias de aprendizagem pelos sujeitos sugere uma prática didática com estratégias de ensino variadas (Gardner, 1995; Meirieu, 1998) para que os sujeitos possam utilizar a sua estratégia de aprendizagem. Isso não é considerado pelo Programa de Aceleração de Aprendizagem na organização de sua metodologia de trabalho que é única e invariável para todos os alunos. Sabe-se também que para o professor que trabalha nesse Programa não é fácil atender a 30 alunos, cada um com diferentes estratégias. Contudo, cabe a ele descobrir o que pode modificar na sua forma de ensinar, adaptando a programação didática e negociando as situações oriundas dessa ação, a fim de ajustá-la para uma atitude didática que sirva para construção de uma “educação para o entendimento”.

No documento Actas do I Encontro Internacional (páginas 154-161)