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O Estado brasileiro resistiu durante anos para reconhecer a existência das uniões afetivas, não oriundas do matrimônio, embora há muito existam faticamente. Consoante Oliveira (2002, p. 143):

Essa forma de união sempre foi realidade em nossa sociedade. Todavia, marcados pelo conservadorismo e disciplinados por uma legislação (CC) editada no início do século XX, mas sob os influxos valorativos do século XIX, que só reconhecia como única forma de constituição familiar o casamento, o repúdio expresso ou velado pelas uniões estáveis marcou uma luta de muitas décadas por aqueles que sofriam as conseqüências discriminatórias da opção por esta espécie de família.

Desempenhou papel de crucial importância nesta batalha a figura da mulher, vista com reservas e discriminada como verdadeira pecadora. Pura hipocrisia: a história demonstrou que grande parcela do povo unia-se estavelmente, optando – ainda que veladamente – por esta forma alternativa de união.

Com o advento da Constituição de 1988, como visto, houve o reconhecimento das uniões formadas por um homem e uma mulher, sem vínculo de casamento e que tenham por intenção formar uma convivência duradoura, contínua, com aspecto público: a união estável.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

[...]

(BRASIL, 1988)

Assim, afirma Diniz (2004, p. 336) que a união estável perdeu o status de sociedade de fato e ganhou o de entidade familiar, não podendo ser confundida com uma união livre, pois nesse caso duas pessoas de sexos diferentes, além de não optarem pelo casamento, não têm a intenção de constituir família.

Em 2002, o novo Código Civil disciplinou o instituto da união estável, seguindo o que já determinara a Magna Carta, conforme se depreende dos artigos 1723 e seguintes. O artigo 1723, caput, dispõe que “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002).

Ensina Silva (2004, p. 1580-1588 apud MONTEIRO, 2007, p. 31) que é necessária a constituição de família para a configuração da união estável, não sendo, portanto, suficiente o simples “objetivo de constituição de família”. Se outro fosse o entendimento, o mero namoro ou noivado, no qual há apenas uma pretensão de formação familiar, seria equiparado à união estável, “o que, evidentemente, não foi a intenção do legislador”.

Ainda a respeito dos requisitos, mesmo sem expressa previsão legal, em regra, a coabitação é necessária para caracterizar a união estável. Monteiro (2007, p. 31-33) defende que atribuir a natureza de união estável a uma relação entre duas pessoas que vivam sob tetos diferentes, sem justificativa plausível para isso, acarretaria insegurança e chegaria a impedir que as pessoas se relacionassem afetivamente. Por seu turno, Dias (2010, p. 177-178) entende que para a configuração da união estável, a coabitação, ou seja, a vida sob o mesmo teto, não é elemento essencial. Entretanto, reconhece que “apesar da ausência de reclamação legal de moradia única, a jurisprudência resiste em reconhecer o relacionamento quando o par não vive em um único lar”.

Da mesma forma, para a caracterização da união estável, a convivência deve ser pública ou notória, ou seja, não pode conservar-se em sigilo, uma vez que o segredo acarreta o desconhecimento do fato e, por consequência, a dificuldade de sua comprovação em juízo. Além disso, a relação deve ter uma permanência estável, sem interrupções, pois, embora a lei não estabeleça prazo determinado de duração, é necessária a convivência contínua e duradoura (MONTEIRO, 2007, p. 33).

Para que configure união estável, também é necessária a ausência de matrimônio civil válido, bem como a ausência de impedimento matrimonial entre os conviventes, de acordo com o §1º do artigo 1723 do Código Civil: “§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.” (BRASIL, 2002). Nesse diapasão, não podem constituir união estável:

Art. 1.521. [...]

I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta;

III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas;

VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. (BRASIL, 2002).

Nesses casos, quando há relação entre homem e mulher, com os mesmos requisitos da união estável, mas impedidos de casar, trata-se de concubinato, nos moldes do artigo 1727 do Código Civil: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” (BRASIL, 2002). Para Venosa (2006, p. 433), abre-se exceção apenas para as pessoas casadas, mas separadas de fato ou judicialmente, situação em que poderá configurar união estável.

Diferentemente da união estável, o concubinato não recebeu proteção como entidade familiar pelo Código Civil de 2002, haja vista o princípio da monogamia, consagrado no direito brasileiro (WALD, 2005, p. 340).

Diniz (2004, p. 345-346) define a união estável como espécie do gênero concubinato. E este, por sua vez, poderá ser puro ou impuro. Tratar-se-á de concubinato puro ou união estável quando houver uma união duradoura, sem casamento civil entre homem e mulher não comprometidos por deveres matrimoniais ou outra ligação concubinária. Ter-se-á concubinato impuro ou simplesmente concubinato quando houver relação não eventual entre um homem e uma mulher quando um ou ambos estiverem comprometidos ou impedidos legalmente de se casar.

Ainda, segundo Diniz (2004, p. 352), ao ser reconhecida a união estável como entidade familiar, não se pretendeu estimular o concubinato puro e sim fortalecer o casamento por ter havido incentivo à sua conversão em matrimônio:

Isto é assim, porque a família é o gênero de que a entidade familiar é a espécie. Realmente, em sentido estrito a família funda-se no casamento civil e no religioso

com efeito civil (CF/88, art. 226, §§1º e 2º), e a entidade familiar é a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, independentemente da existência de vínculo conjugal que a tenha originado (CF/88, art. 226, §§3º e 4º; JB, 166: 277 e 324).

Aos companheiros, consoante artigo 1724 do Código Civil, são estabelecidos deveres de “lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos” (BRASIL, 2002).

No tocante ao regime de bens, ensina Dias (2010, p. 180) que no casamento, os cônjuges podem escolher o regime de bens (artigos 1658 a 1688 do Código Civil). Desde que não contrarie a lei (artigo 1655), por meio do pacto antenupcial, os noivos podem optar por um dos regimes previamente definidos na lei ou estabelecer o que melhor lhes aprouver. Na união estável, conforme previsto no artigo 1725, os conviventes têm a faculdade de firmar contrato de convivência. Não optando por um regime específico, tanto os noivos (artigo 1640) como os conviventes (artigo 1725), incidirá o regime da comunhão parcial de bens (artigos 1658 a 1666).

No regime da comunhão parcial, segundo Monteiro (2007, p. 49), comunicam-se:

[...] os bens adquiridos na constância da união estável por título oneroso, ainda que só em nome de um dos companheiros; por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior; por doação, herança ou legado, em favor de ambos os companheiros; as benfeitorias em bens particulares de cada um dos companheiros; os frutos de bens comuns, ou dos particulares de cada companheiro, percebidos na constância da união estável, ou pendentes ao tempo da sua cessação (art. 1.660). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Monteiro (2007, p. 49-50) lembra que se excluem da comunhão:

[...] os bens que cada um dos companheiros possuir ao constituir a união estável, os que lhe sobrevierem por doação ou sucessão, os sub-rogados em seu lugar, os bens adquiridos com valores pertencentes exclusivamente a um dos companheiros em sub-rogação de bens particulares, as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal, os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge, as pensões, os meios- soldos, os montepios e outras rendas semelhantes (art. 1.659).

Salienta-se a regra do artigo 1661 do Código Civil, segundo a qual são incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título causa anterior à união estável, bem como a precisão do artigo 1662 de que se presumem adquiridos na constância da união estável os bens móveis, quando não ficar provado que o foram em data anterior.

A dissolução da união estável poderá ocorrer por acordo entre as partes ou por decisão judicial que declarará o seu término. Inexistindo acordo entre as partes, qualquer delas poderá ajuizar ação ordinária, reivindicando direitos, caso em que o juiz decidirá acerca das questões controvertidas, fixando guarda, partilha de bens, alimentos para quem deles

necessitar, na forma do artigo 1694 do Código Civil (MONTEIRO, 2007, p. 50-51). Ainda, segundo Dias (2010, p. 190), poderão ser reivindicados direitos sucessórios se o vínculo findou pela morte do parceiro.

Como visto, o reconhecimento do Estado à união estável é a prova de que a constituição da entidade familiar não está mais presa aos formalismos matrimoniais, parecendo atribuir-se primazia à afetividade humana. A Constituição Federal, ao reconhecer outras formas de entidade familiar, conforme já exposto, pretendeu ampliar a definição de família. Todavia, observa-se que não há previsão constitucional expressa para abranger todos os arranjos familiares atualmente existentes.

O vínculo afetivo, presente nas entidades familiares previstas expressamente pela Magna Carta e aceitas na sociedade, também está presente nas relações homoafetivas. Ressalta-se que a união estável também demorou a ser reconhecida e passou por um período de preconceito e marginalidade semelhante ao que hoje se encontra a união homoafetiva.

Segundo Dias (2001, p. 63), “As relações familiares impregnaram-se de maior autenticidade, com base no amor e na compreensão, deixando de lado a falsidade institucionalizada e a submissão à legalidade estrita.” A família atual vem assumindo novos contornos, fazendo-se necessário a adequação do Direito à realidade histórico-cultural.

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