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A produção do espaço das cidades brasileiras se insere no processo de urbanização contemporânea, marcada pela tendência de crescimento e expansão territorial num ritmo acelerado, na medida em que se acirra a disputa pela propriedade privada da terra e a acumulação capitalista. A tendência da urbanização no Brasil, ao longo do século XX, acentua-se a partir da década de 1980 com as transformações introduzidas pelo processo de internacionalização da economia, que alterou a hierarquia urbana marcada pelo surgimento de novas cidades.

O desenvolvimento do sistema capitalista revela na cidade uma sobreposição e articulação de tempos rápidos e tempos lentos, que em sua estratégia de utilização do espaço para superar crises de sobreacumulação, alterou a própria concepção deste último para manter as relações sociais de sua existência. De acordo com Ferreira (2007, p.4) a apropriação, refuncionalização e criação de “novos espaços” leva a percepção do espaço de consumo para o consumo do espaço. Mas, o que interessa pormenorizar é que são estas estratégias de produção espacial que se desenvolvem de forma desigual.

Além disso, o capitalismo encontrou no espaço e em sua produção a estratégia de reprodução do capital e das relações sociais de produção – aquelas constitutivas do capitalismo, a partir da mercantilização da terra e de sua repartição e venda em "pedaços35", que não somente o insere no circuito da economia, mas é o responsável pela reorganização da lógica de organização espacial, intensificando ainda mais a diferenciação entre as áreas e a divisão do trabalho (BOTELHO, 2007).

É neste contexto que as dimensões espaço - tempo, sucessão - diacronia e compasso – descompasso dinamizam o processo de produção dos espaços e ao mesmo tempo são mecanismos que permitem identificar as contradições, as mudanças e principalmente os

35De acordo com Sposito (2011, p.134) a cidade passa a não ser mais vista como uma unidade espacial, pois a

ação sobre o espaço e sua apropriação sempre se dá a partir de sua repartição em parcelas.

E

47 ajustes (HARVEY, 2005) que são estruturais no capitalismo, sendo precisamente o plano espacial o que demonstra as contradições internas da cidade.

Sendo o “espaço” entendido como produto social na perspectiva analítica de Lefebvre, é preciso dimensioná-lo como condicionante de sua própria produção, ou seja, não somente produzido, mas produtor das relações que o dinamizam nas dimensões espaço e tempo. Segundo Lefebvre (2005, p.5) “o espaço não pode mais ser concebido como passivo, vazio ou então, como os “produtos”, não tendo outro sentido senão o de ser trocado, o de ser consumido, o de desaparecer”. Desta forma, o espaço não apenas é um nível do processo produtivo, mas está contido nele quando se forma e intervém ora a alguns níveis, por exemplo, do trabalho, ora a outros nas relações de dominação (nas relações de produção e nas forças produtivas), sendo a produção do espaço, portanto, materializada na prática. Dá-se, portanto, “desigualmente, mas por toda parte” num contexto histórico, e num espaço tempo preciso (LEFEBVRE, 2005, p.6).

Nesta mudança na própria gênese do espaço, tendo em vista que o capitalismo só se realiza em formações sociais precisas, em uma realidade e um contexto histórico e geográfico, segundo Carlos (2007, p.50) a dimensão espacial ou a realidade urbana passa a ser uma condição, meio e produto da reprodução da sociedade e a produção do espaço passa a ser definida como processo/movimento em constante transformação, tal como a sociedade. (CARLOS, 2012, p.62). O espaço a partir destas denominações, ainda segundo Carlos (2007), solidifica a indissociabilidade entre a ação humana enquanto prática socioespacial36 e a produção do espaço, uma vez que, na dimensão espaço-tempo a relação sociedade e natureza se transformam hibridamente, tal como adverte Lefebvre (2005) ao dimensionar o conceito de espaço, dizendo que:

Se o espaço (social) intervém no modo de produção, ao mesmo tempo efeito, causa e razão, ele muda com esse modo de produção! Fácil de compreender: ele muda com “as sociedades”, se se quiser exprimir assim. Portanto, há uma história do espaço (p.6).

36 Reconheço que o conceito de práticas espaciais ainda está em formação, com visões diferentes de Lefebvre,

Roberto Lobato Corrêa, Marcelo Lopes de Souza, entretanto aqui ele está se referindo apenas ao que a autora expõe, pois o debate sobre o tema não será abordado. Ao utilizar este conceito o objetivo é ilustra que as práticas espaciais também mudam, porque o processo de produção do espaço urbano condiciona sempre novas práticas.

48 Urbanização e cidade possuem lógicas que se sobrepõem, sendo a primeira sua dimensão histórica de contínua transformação dos papéis desempenhados pelas cidades (divisão do trabalho) em diferentes momentos, e a cidade enquanto a expressão material da dinâmica social, econômica, política e cultural, sendo cada corte no tempo da urbanização a somatória desigual de todos os tempos materializados na cidade37.

De acordo com Lefebvre (2001, p.43), estas contradições não são mais as mesmas da cidade medieval, que rompe com o seu sistema corporativo e o transforma a partir da abertura do sistema urbano no plano econômico - a indústria, no plano social com a propriedade imobiliária (a propriedade da terra é à base da dinâmica de produção dos espaços no contexto atual) e no plano político.

Ainda, segundo o autor a partir do capitalismo concorrencial e o aparecimento da grande indústria pautado na dominação da então recente burguesia industrial, a cidade retoma uma centralidade perdida no sistema corporativo da cidade medieval. A industrialização que caracteriza a sociedade moderna acaba por gerar o urbano, e a cidade, enquanto expressão máxima do urbano, passaria a comandar as funções do campo e também passa a desenvolver trabalho produtivo, o que acirra as contradições cidade-campo constituindo uma primeira divisão social e econômica do trabalho (LEFEBVRE, 2001).

A produção social do espaço urbano no bojo do capitalismo tem na divisão social do trabalho comandada pelo mercado a substituição de uma sociedade simples por uma sociedade complexa, em que a separação das funções de comando e produtivas começa a sustentar a diferenciação socioespacial, não sem conflitos e contradições as quais é a base para análise da sociedade (LEFEBVRE, 2001, p.51). Nos dias atuais os agentes sociais do mercado imobiliário é que ditam as transformações espaciais, assim como os agentes econômicos e políticos se articulam de acordo com Sposito (2011, p.131), de forma mais ou menos intensa e redefinindo as possibilidades de atividades e construindo os espaços que cada segmento utilizará para a reprodução da vida, de forma mais ou menos complexa.

Nesta separação de funções, dividiu-se também a população em segmentos sociais no plano político e econômico, cujas bases se assentam na propriedade privada do solo e da renda. Transpondo este contexto para o espaço urbano atual, observa-se que existindo

37 Notas de aula ministrada pela Profª Drª. Maria Encarnação B. Sposito, na disciplina "Urbanização e Produção

49 diferentes segmentos sociais a reprodução da vida cotidiana de cada um destes sujeitos também se distingue, sendo socialmente construída e determinada pela apropriação desigual e contraditória do espaço, aliás, não somente é possível verificar essas desigualdades, como é inevitável.

1.1. As contradições na lógica de reprodução do espaço e a diferenciação socioespacial enquanto condição de diferentes suscetibilidades urbanas

Segundo Brunet (1986, p.300) produzir o espaço é ao mesmo tempo "diferenciar e organizar” em termos de funcionamento, de organização e diferenciação dos espaços (apud CARLOS, 2007, p.46), entretanto, esses resultantes se materializam de diferentes formas na cidade. O mais significativo é salientar que ocorreram mudanças no processo de urbanização, e dentre estas se destaca a diferenciação do espaço e da sociedade. Estas mudanças alteram o papel das cidades na rede urbana, reestruturando/reconfigurando também o espaço intraurbano, dando novas características a estrutura das cidades, sobretudo de acordo com os diferentes agentes e segmentos sociais no âmbito da produção do espaço urbano.

De acordo com Sposito (2011) em termos de aprofundamento das desigualdades socioespaciais que reforçam a segregação no espaço e o distanciamento entre os desiguais (sujeitos) na produção da cidade, destacam-se ações vinculadas à produção imobiliária de áreas residenciais fechadas que se dão a partir de múltiplos agentes, privados individuais ou coletivos mediados pelo Estado. O Estado, por sua vez, na economia capitalista, atua na política de desenvolvimento econômico e urbano como um agente determinante pela definição de políticas urbanas de apropriação da cidade.

Segundo a autora (2012, p.141), na maior parte destes empreendimentos imobiliários, que produzem a multiplicidade dos espaços das cidades, a diferença prevalece sobre a desigualdade enquanto valor agregado no produto imobiliário, anulando a convivência entre as diferenças. Enquanto as diferenças, ao mesmo tempo em que são intrínsecas à realidade urbana (CORRÊA, 2007, p.63), e até mesmo um impulso de transformações sociais, as desigualdades - que é a intensificação dos processos de diferenciação quando passam a ser percebidas enquanto negatividade - acentuam os

50 conflitos, a distinção em relação ao outro e desenha nos espaços da cidade os traços da distinção entre os que comandam, aqueles de status sócio-econômico com capacidade diferenciada de pagar e adquirir sua residência, tantos em termos de localização, quanto às características materiais e de conforto. Assim, segundo Sposito:

Diferentes pessoas movimentam-se e apropriam-se do espaço urbano de modos que lhes são peculiares, segundo condições, interesses e escolhas que são individuais, mas que são, também, determinados historicamente, segundo diversas formas de segmentação: idade, perfil cultural, condições socioeconômicas, segmentação profissional, preferências de consumo de bens e serviços etc (2011, p.134).

Além disso, tem papel relevante na determinação das formas de ação e apropriação do espaço urbano a diferenciação socioespacial, territorializando formas urbanas distintas nos diferentes setores geográficos da cidade. Desse ponto de vista, Carlos (2001, p.61) salienta que a reprodução espacial substanciada nas ações dos indivíduos constitui uma morfologia que se esfacela, e reitera (2011, p.69), desvendando uma contradição entre a produção social do espaço (espaço abundante) e sua apropriação privada (em sua condição atual de raridade, criando limites à sua reprodução), posto se trata de uma sociedade de classes38.

Indo além, de acordo com Corrêa (2007, p.65), a apropriação desigual do espaço configura uma divisão econômica (usos e conteúdos produtivos especializados) e social (indicadores de status sócio-econômico, infraestrutura) a partir de processos, funções e acúmulo de formas-conteúdo distintos ao longo do tempo. E "nesse sentido, a diferenciação socioespacial é, ao mesmo tempo, pressuposto e produto (contraditório e necessário) do processo histórico de produção do espaço, vivida concreta e praticamente a escala do lugar" (CARLOS, 2007, p.48). Advém daí, sua posição de contestar a redução do humano e da vida na cidade ao "mundo da mercadoria", que produz a “cidade como negócio” das estratégias de reprodução espacial, delimitando um lugar e função para cada um.

A seletividade na valorização dos lugares acaba por provocar o surgimento de áreas vulneráveis (não somente pela ausência de planejamento), que se reproduzem no ritmo da

38 O conceito de classes sociais neste caso é adotado segundo a perspectiva da autora (CARLOS, 2011, p.69).

Esta conceituação é abordada neste trabalho quando da definição da produção do espaço urbano no âmbito do capitalismo, que distingue de forma mais expressiva as classes dominantes, de trabalhadores, tal como identificadas por Marx (1984), por exemplo, no livro: O Capital: crítica da economia política – vol. I – livro primeiro – tomo 2. São Paulo: Abril. Cultural, p.99.

51 necessidade de sobrevivência dos segmentos sociais de baixa renda. Isso, por sua vez, permite considerar que a forma com que esses segmentos sociais se reproduzem, até por conta do papel que desempenham na divisão social do trabalho, se desenvolve de maneira pouco estável com as chamadas dinâmicas naturais. A reprodução destes processos no ambiente urbano, são historicamente produzidos, refletem-se notadamente nos espaços das cidades, tal qual se verifica em São Carlos e Marília e será analisado adiante.

Sendo assim, a diferenciação acaba produzindo diferentes susceptibilidades e/ou riscos e vulnerabilidades de acordo com as diferentes formas de reprodução social e os segmentos sociais com níveis distintos de poder aquisitivo.

Após ressaltar todos estes aspectos conceituais sobre a produção do espaço urbano, é possível inferir que a diferenciação socioespacial é sim produtora de diferentes suscetibilidades no espaço urbano, ao passo que, ao constituir diferentes segmentos da população, cada grupo irá se apropriar de áreas mais ou menos valorizadas, com moradias precárias dotadas ou não de equipamentos urbanos. Aliás, esta é uma realidade presente na maior parte das cidades contemporâneas brasileiras, notadamente das cidades médias e de porte médio.