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2 A CENTRALIDADE DO TERRITÓRIO NA POLÍTICA NACIONAL DE

2.2 Usuários da Assistência Social: incluídos pela exclusão

Relativamente à definição de quem são os sujeitos de direitos ― público usuário ― definidos pela PNAS/2004, pode-se afirmar que, comparativamente à definição de usuários constantes na versão da LOAS/1993, ocorreu um alargamento “qualitativo” a partir da inclusão de novos segmentos sociais. Por certo, a “identidade” dos usuários da Política de Assistência Social acontece, essencialmente, pela sua condição social na forma de “inclusão perversa” nos parâmetros da sociedade do capital, sendo definidos como

[...] cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social (BRASIL, 2005b, p. 33).

Se, por um lado, se avalia positivamente o alargamento da abrangência de seus usuários pela PNAS, por outro lado, revela-se o agravamento da questão social através das múltiplas expressões sociais de seres desumanizados, expropriados em sua maioria de direitos humanos elementares, que passam a compor, em escala crescente, a sociabilidade sob a ordem do capital. Nesse sentido, a V Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2005, em Brasília, aprovou, enquanto resolução, o Decálogo dos Direitos Socioassistenciais38 a

38 A descrição do conteúdo dos 10 direitos socioassistenciais, segundo resolução da V Conferência Nacional de

Assistência Social, realizada em 2005, é a que segue:

“1. Todos os direitos de proteção social de assistência social consagrados em Lei para todos: Direito, de todos e todas, de usufruírem dos direitos assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro à proteção social não contributiva de assistência social efetiva com dignidade e respeito.

2. Direito de eqüidade rural-urbana na proteção social não contributiva: Direito, do cidadão e cidadã, de acesso às proteções básica e especial da política de assistência social, operadas de modo articulado para garantir completude de atenção, nos meios rural e urbano.

3. Direito de eqüidade social e de manifestação pública: Direito, do cidadão e da cidadã, de manifestar-se, exercer protagonismo e controle social na política de assistência social, sem sofrer discriminações, restrições ou atitudes vexatórias derivadas do nível pessoal de instrução formal, etnia, raça, cultura, credo, idade, gênero, limitações pessoais.

4. Direito à igualdade do cidadão e cidadã de acesso à rede socioassistencial: Direito à igualdade e completude de acesso nas atenções da rede socioassistencial, direta e conveniada, sem discriminação ou tutela, com oportunidades para a construção da autonomia pessoal dentro das possibilidades e limites de cada um. 5. Direito do usuário à acessibilidade, qualidade e continuidade: Direito, do usuário e usuária, da rede socioassistencial, à escuta, ao acolhimento e de ser protagonista na construção de respostas dignas, claras e elucidativas, ofertadas por serviços de ação continuada, localizados próximos à sua moradia, operados por profissionais qualificados, capacitados e permanentes, em espaços com infra-estrutura adequada e acessibilidade,

serem assegurados pela Política de Assistência Social. O desafio posto refere-se certamente à sua efetivação em qualidade, quantidade e acessibilidade a todos que deles necessitarem, na perspectiva do direito. Portanto, não é possível realizar uma análise crítica acerca da ampliação dos usuários da Assistência sem estabelecer sua íntima vinculação com o agravamento da questão social decorrente das transformações societárias situadas no processo de reprodução das relações sociais capitalistas. Nesse enfoque, pensar as particularidades com que a “questão social” se apresenta no atual contexto sócio-histórico requer considerar a dinâmica societária que se mostra cada vez mais urbanizada, globalizada e profundamente desigual. Nessa percepção, as particularidades da questão social são indissociáveis da predominância da lógica do capital e da mercadoria sobre o ser humano, agregando-se a configuração do Estado mínimo para o social. Nessa mesma direção, estudos chamam atenção para o processo de agravamento das condições de reprodução da classe trabalhadora, sendo as condições de vulnerabilidade e risco social apontadas pela PNAS indicadores da condição de classe no processo produtivo, nos marcos da sociedade do capital. Nas palavras de Couto et alii (2010b, p.40),

Evidenciam-se condições de pobreza e vulnerabilidade associadas a um quadro de necessidades objetivas e subjetivas, onde somam dificuldades materiais, relacionais, culturais que interferem na reprodução social dos trabalhadores e de suas famílias. Trata-se de uma concepção multidimensional de pobreza, que não se reduz às privações materiais, alçando diferentes planos e dimensões da vida do cidadão. A ausência nesse conjunto de necessidades apontadas pela PNAS é condição de classe que está na gênese da experiência da pobreza, da exclusão e subalternidade que marca a vida dos usuários da Assistência Social. Ou seja, é preciso situar os risco e vulnerabilidades como indicadores que ocultam/revelam o lugar social que ocupam na teia constitutiva das relações sociais que caracterizam a sociedade capitalista contemporânea.

6. Direito em ter garantida a convivência familiar, comunitária e social: Direito, do usuário e usuária, em todas as etapas do ciclo da vida a ter valorizada a possibilidade de se manter sob convívio familiar, quer seja na família biológica ou construída, e à precedência do convívio social e comunitário às soluções institucionalizadas. 7. Direito à proteção social por meio da intersetorialidade das políticas públicas: Direito, do cidadão e cidadã, à melhor qualidade de vida garantida pela articulação, intersetorial da política de assistência social com outras políticas públicas, para que alcancem moradia digna, trabalho, cuidados de saúde, acesso à educação, à cultura, ao esporte e lazer, à segurança alimentar, à segurança pública, à preservação do meio ambiente, à infraestrutura urbana e rural, ao crédito bancário, à documentação civil e ao desenvolvimento sustentável. 8. Direito à renda: Direito, do cidadão e cidadã e do povo indígena, à renda individual e familiar, assegurada através de programas e projetos intersetoriais de inclusão produtiva, associativismo e cooperativismo, que assegurem a inserção ou reinserção no mercado de trabalho, nos meios urbano e rural.

9. Direito ao co-financiamento da proteção social não contributiva: Direito, do usuário e usuária, da rede socioassistencial a ter garantido o cofinanciamento estatal ― federal, estadual, municipal e Distrito Federal ― para operação integral, profissional, contínua e sistêmica da rede socioassistencial nos meios urbano e rural. 10. Direito ao controle social e defesa dos direitos socioassistenciais: Direito, do cidadão e cidadã, a ser informado de forma pública, individual e coletiva sobre as ofertas da rede socioassistencial, seu modo de gestão e financiamento; e sobre os direitos socioassistenciais, os modos e instâncias para defendê-los e exercer o controle social, respeitados os aspectos da individualidade humana, como a intimidade e a privacidade” (COUTO, 2007).

É notório que a lógica do capital se contrapõe frontalmente à defesa da universalização de direitos sociais de cidadania, da igualdade e da justiça social, afetando, de forma crescente, as várias dimensões da sociabilidade humana. No lastro dessa análise, reapresenta-se a reprodução das relações de produção enquanto um conceito central que, segundo Lefebvre (1973), incide sobre a totalidade da sociedade, em todas suas dimensões. Nesses parâmetros, tomando-se por referência que, no atual estágio de desenvolvimento, a dinâmica da acumulação capitalista ocupa a totalidade do espaço, significa dizer que se aprofundam, na mesma proporção, as contradições entre a ordem próxima (do cotidiano, da vizinhança) e a ordem distante (das relações de produção e do Estado, da sociedade inteira). Nas palavras de Lefebvre (1973, p. 24),

A ordem longínqua permanece abstrata enquanto não se incorporar na ordem próxima, absorvendo as suas variações e variantes. A contradição torna-se mais precisa quando a ordem longínqua, a ordem das relações sociais, das relações de produção à escala global e, portanto, da sua reprodução, invade brutalmente as relações próximas (a vizinhança, a natureza em redor da cidade, da região, das “comunidades locais”, etc.). [...] Esta sociedade, em que a reprodução (das relações) constitui o processo central e escondido, rejeita toda espécie de grupos constituintes de vida social: a juventude (crianças, adolescentes, “jovens”), as mulheres, os “estrangeiros”, “os dos arredores”, os periféricos. De onde as dificuldades crescentes (e que crescem com o próprio crescimento) da “socialização dos indivíduos” ― isto vem desnudar uma contradição específica desta sociedade: a contradição entre a expulsão (para as periferias espaciais, mentais, sociais, de grupos inteiros) e a “integração” (que permanece simbólica, abstrata, “cultural”). Esta contradição não se lê imediatamente, decifra-se).

A premissa que rege o processo de acumulação capitalista é a extração do lucro e da mais-valia a um custo social, cultural, político e ambiental cada vez mais insustentável em todas as dimensões da vida humana. Nessa direção, infere-se que o autor busca revelar que, concomitantemente, a ordem do capital globalizado, que impõe a reestruturação produtiva, a “reforma” dos Estados, o ajuste urbano, etc., corresponde à produção do “caos social”, ou, em outros termos, ao agravamento da questão social. Nessa lógica, o que não se inclui no circuito de valorização do capital é excluído, para ser incluído novamente segundo a lógica do mercado (MARTINS, 1997). Portanto, o desafio aqui é apresentar novos elementos que possam contribuir com a análise acerca dos determinantes socioeconômicos e políticos das situações de vulnerabilidade e risco social, a exemplo da exclusão pela pobreza ou, no acesso às demais políticas públicas, da inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho, de trabalho formal ou informal, estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social. Trata-se, certamente, de dar visibilidade às tramas do capital que (re)produzem, cotidianamente, a complexificação da questão social.

Nesses parâmetros, o que se percebe é o crescimento das desigualdades e da degradação da vida humana, especialmente nas grandes concentrações urbanas. Avalia-se que a nova onda de urbanização revelada no último Censo do IBGE (2010) acaba por agravar as contradições e desigualdades socioterritoriais decorrentes do acesso restrito e precário a bens e serviços públicos por amplos setores de trabalhadores que migram, constantemente, em busca de melhores condições de vida, bem como daqueles que já se encontram há muito tempo ocupando as favelas, cortiços e periferias urbanas, além da população que está em situação de rua. Em análise sobre o urbanismo brasileiro, afirma-se que “[...] a exclusão urbanística, representada pela gigantesca ocupação ilegal do solo urbano, é ignorada na representação da „cidade oficial‟” (MARICATO, 2000, p. 122). Nessa mesma perspectiva, agrega-se a avaliação de que “[...] os conflitos urbanos, em suas diferentes manifestações no espaço público e privado, ganham expressões diversas na vida dos diferentes grupos sociais e provocam efeitos desestruturadores nas suas relações com a cidade” (RAICHELIS, 2006, p. 33). Diante desse contexto, a cidade vai sendo redesenhada pelo agravamento da questão social, onde as camadas mais empobrecidas vivenciam a destituição do direito social e político da cidade. Daí decorre a importância do aprofundamento de estudos sobre a relação dialética que se estabelece entre o social, o econômico e o espaço. Em estudo sobre o processo de urbanização brasileira, Santos (2008e, p. 10) conclui que

A cidade em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico, de que é o suporte, como por sua estrutura física, que faz dos habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo socioeconômico vigente, mas, também, do modelo de espaço.

A partir do exposto, é possível afirmar que o atual modelo de espaço se encontra subordinado ao domínio da lógica do capital, produzindo a segregação socioespacial generalizada. Nesse contexto, à classe trabalhadora submetida à política do espaço, empreendida pelos “promotores imobiliários”, resta a ocupação crescente da “cidade informal”. Nas palavras de Martins (1997), esse processo denuncia que estamos em face da produção de uma sub-humanidade ou, ainda, de um cidadão de segunda. Portanto, infere-se que os espaços reservados aos cidadãos de segunda se caracterizam pelo acesso restrito, precário e informal, ou seja, trabalho/mercado informal, atividades ilegais, ocupações irregulares, loteamentos clandestinos, em fim, a cidade informal. Segundo Lefebvre (2008b), é dessa realidade urbana profundamente desigual e segregadora que surge uma nova contradição, a contradição do espaço. É preciso, pois, estar atendo ao fato de que, através do mesmo processo de apropriações precárias do espaço socialmente construído, do acesso

restrito a bens e serviços públicos que a cidade oferece, o espaço usado poderá servir como apoio e referência central para o desenvolvimento de estratégias de resistência e luta sociais contestadoras da ordem posta. O espaço usado poderá servir como apoio e referência central para o desenvolvimento de estratégias de resistência e luta sociais contestadoras da ordem posta.