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1 VITIMOLOGIA

2.5 A VÍTIMA E O SISTEMA PENAL

Como já fora abordado neste trabalho, na Antiguidade, era a vítima quem comandava as decisões sobre as penalidades que viria a sofrer seu agressor. Passado tempo, o Estado decidiu interferir a fim de evitar penas desproporcionais e desumanas, as chamadas vinganças privadas. Desde então, "o Estado se incumbe

30 A esse processo de vitimização, a doutrina denomina "vitimidiação", ou seja, a vitimização

da punição daquele que quebrar a harmonia, tal como guardião dos valores sociais mais relevantes" (JORGE, 2005, p. 38).

A partir do momento em que o Direito Penal se tornou questão de ordem pública, o Estado chamou para si o direito de punir, vedando a vingança privada. Dessa forma, é como se o Estado sempre fosse atingido com a violação da norma penal, por ser o titular desta norma, representando a violação do preceito incriminador uma afronta aos seus interesses na preservação da ordem, na garantia da paz pública e na proteção da sociedade e de seus membros (JORGE, 2005, p. 39).

Ou seja, apesar da vítima ter sido diretamente atingida com a prática do delito, o sujeito passivo do crime no aspecto formal é o Estado.

Assim sendo, a vítima encontra-se à mercê da atuação do Estado, podendo atuar como substituto processual apenas nos casos em que o interesse de sancionar o ofensor é única e exclusivamente seu, casos em que a ação penal é privada (JORGE, 2005).

O que precisa ser questionado, porém, é se os interesses do Estado na sanção do ofensor vai ao encontro do interesse da vítima. E a resposta, segundo Raquel Campos Cristóbal, é que, em muitos casos, os interesses não coincidem (informação verbal)31.

Segundo estudos científicos confirmam, o que a maciça maioria das vítimas busca é justiça e essa justiça não se dá, necessariamente, através de uma compensação em pecúnia (MOLINA; GOMES, 2000).

Aliás, segundo a experiência de Louk Houlsman no Tribunal de Paris, o maior interesse das vítimas está em receber atenção por parte dos órgãos responsáveis, sendo ouvidas ao falar de seus prejuízos, buscando, por esse meio, acalmar o que lhe aflige, a fim de encontrar uma maneira de voltar a viver em tranquilidade (HULSMAN; CELIS, 1997, apud JORGE, 2005).

Os interesses das vítimas nem sempre correspondem com o que o Estado entende como ideal. Há situações em que a vítima nem mesmo busca uma punição de seu agressor - e quanto a isso, não nos cabe julgar, independente do que a motive a tomar essa decisão.

A verdade é que quando o problema cai no aparelho judicial, deixa de pertencer àqueles que o protagonizaram, etiquetados como delinquente e

31 Conferência realizada por Raquel Campos Cristóbal, na Universitat de València - Campus dels

vítima, para ser uma questão de ordem pública. A partir de então, o destino dos envolvidos na relação pertence ao Estado, através de seu sistema penal (JORGE, 2005, p 43).

A vítima nem sempre possui interesse em sustentar uma acusação. Isso foi confirmado através de uma pesquisa realizada pelo Instituto Vera, em Nova Iorque. Apesar de terem recebido suporte para comparecimento em juízo, as vítimas não demonstravam interesse na repressão penal. Em razão disso, decidiu-se por uma atividade de conciliação, inclusive para os casos considerados de alta gravidade. O que se comprovou, na maioria dos casos, é que a vítima se satisfez com a transação, não acionando o judiciário para dar início ao procedimento criminal (HULSMAN; CELIS, 1997, apud, JORGE, 2005).

No nosso atual sistema, os anseios da vítima não são escutados. Muito embora, costumeiramente, seus desejos sejam de que o acusado seja punido com pena privativa de liberdade, há casos em que as vítimas sentir-se-iam satisfeitas fazendo acordos com o agressor. Como defende Cristóbal, a mediação penal é uma ferramenta que humaniza o sistema (informação verbal)32.

É claro que a vítima não pode ter o condão de definir a pena de seu algoz sem qualquer critério, até porque isso nos levaria de volta aos tempos da vingança privada e a luta para alcançarmos o respeito aos Direitos Humanos dos apenados foi longa (embora, nunca é demais ressaltar, infelizmente ainda falte muito para que essa luta seja, de fato, entendida e defendida pela sociedade).

Porém, quando superamos a Antiguidade, acabamos também por deixar para trás a atenção que deveria ser dada à vítima.

Quando da transição de um sistema para o outro, o sistema criminal atual surgiu na intenção de coibir a vingança privada, exercida pelo ofendido ou por seu representante. Por isso é que hoje não se valoriza a participação da vítima na instrução criminal, nem muito menos se considera sua opinião (JORGE, 2005, p. 46).

Com a intenção de tomar as rédeas da justiça, o Estado acabou tomando, também, a voz da vítima.

Alline Pedra Jorge realizou, de abril a dezembro de 2001, um trabalho de campo na justiça estadual da cidade de Maceió, Alagoas. A intenção era

32 Conferência realizada por Raquel Campos Cristóbal, na Universitat de València - Campus dels

compreender se a vontade da vítima e a do Estado eram compatíveis, no que diz respeito à aplicação da pena aos ofensores. Além disso, buscava compreender o que as vítimas esperavam da tutela jurisdicional, quanto a sua participação ao decorrer do processo. Embora a intenção fosse de entrevistar ao menos 50 (cinquenta) pessoas, o número alcançado foi de 12 (doze), demonstrando, desde aí, a ausência das vítimas na participação do processo.33

Resumidamente, diversas situações foram notadas pela equipe, como por exemplo, uma situação em que a vítima estava dando sua declaração na presença do acusado. Esse cenário só mudou quando a própria advogada do acusado sugeriu ao juiz a possibilidade de a vítima não querer a presença do réu no local, conforme permitido pelo art. 217 do Código de Processo Penal. Jorge relata, ainda, que a vítima, quando entrevistada, estava tão abalada que informou que não pretendia mais acompanhar o processo e que essa declaração a fez lembrar de todo o acontecimento, que ela já estava conseguindo olvidar.

Quanto ao interesse na aplicação da pena, obtiveram diversos resultados, desde vítimas que ansiavam pela aplicação da pena máxima a vítimas que se contentariam com a imposição de prestação de serviços à comunidade. Algumas vítimas justificaram sua torcida pela pena mais alta possível em razão de seu medo de sair de casa; pelas ameaças sofridas pelo ofensor que respondia o processo em liberdade e houve, ainda, a justificativa da vítima que torcia pela pena privativa de liberdade porque, caso contrário, faria vingança ela mesma.

Além do exposto, os resultados da pesquisa também demonstraram desconhecimento sobre a necessidade de retornarem a juízo, sobre quando sairia a condenação do acusado e, ainda, duas vítimas que demonstraram sentir receio ao depor, com medo de que fosse imputado algum crime a elas.

Houve vítimas que relataram desinteresse em acompanhar o caso, porque buscavam esquecê-lo; vítimas que não entendiam a quantidade enorme de vezes que tiveram que se apresentar em juízo; vítimas que possuíam grande receio em cruzar com seu ofensor pelos corredores do fórum e vítimas que informaram não estar acompanhando o processo, mas que assim o fariam se tivessem o auxílio de um advogado.

33 As informações completas e detalhadas desse trabalho de campo podem ser encontradas na obra

"Em Busca da Satisfação dos Interesses da Vítima Penal", de Alline Pedra Jorge, da página 46 à 60, da 1ª edição da obra.

Então, quando indagadas sobre o interesse de possuir um advogado acompanhando o processo, seis das doze vítimas responderam que sim. Porém, das outras seis vítimas, três delas ou eram advogadas ou já estavam orientadas por um e as outras três informaram não possuir interesse porque temiam represálias ou porque o acusado já se encontrava preso.

O trabalho realizado por Alline Pedra Jorge é um exemplo dos sérios problemas sofridos pelas vítimas em razão da débil atenção que o atual sistema as fornece. Segundo Raquel Campos Cristóbal, a vítima necessita compreender como funciona o procedimento judicial; entender sobre o tempo do processo, que não coincide com os seus e que é mais lento do que se deseja; reconhecer a importância de um advogado que a auxilie; perceber que o problema não é necessariamente com ela, mas com o sistema - por exemplo, em caso de absolvição, é necessário que a vítima saiba que isso não significa que tudo o que ela relatou não seja verdade, mas que não foi possível provar, porque é difícil fazê-lo (informação verbal)34.

Resta evidente, portanto, a necessidade de que o Estado ofereça acompanhamento e assistência moral, social, psicológica e jurídica à vítima, desde o dia em que é feita a denúncia. Isso deve ser realizado, porém, sem dano ao dever estatal de salvaguardar os direitos dos réus, para que a atenção, proteção e amparo destinados à vítima não resultem em uma espécie de vingança privada. Por fim, imperiosa a compreensão de que "a vítima não reclama compaixão, senão respeito a seus direitos" (MOLINA; GOMES, 2000, p.92).

34Conferência realizada por Raquel Campos Cristóbal, na Universitat de València - Campus dels

3 ANÁLISE LEGISLATIVA

Neste capítulo do trabalho, faremos, inicialmente, uma compilação das principais leis brasileiras destinadas à proteção dos direitos da vítima, dedicando especial atenção às normas que buscam proteger a vítima da ocorrência da vitimização secundária - aquela cometida em razão do mau desempenho dos órgãos responsáveis pelo controle social - e que pode, por meio de uma atuação mais atenciosa, ser evitada. Para isto, serão abordadas três leis, quais sejam: Lei dos Juizados Especiais (Lei nº. 9.099/95), Lei de Proteção as Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (Lei nº 9.807/99) e Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/06).

Em seguida, comentaremos uma lei do ordenamento espanhol intitulada "Estatuto da Vítima de Delito". Trata-se de um compilado de direitos que busca amenizar o dano sofrido por uma pessoa ao ser vítima de um delito na Espanha, bem como minimizar os efeitos traumáticos que essa condição pode gerar.

Por fim, far-se-á uma análise da legislação brasileira quando comparada com a legislação espanhola, seguida de uma sugestão daquilo que poderia ser adotado no nosso ordenamento jurídico, visando torná-lo mais acessível e abrangente, incluindo, na sua proteção, um maior número de vítimas.

Optou-se pelo corte temático de análise das referidas leis pelo fato de se dedicarem, em parte ou no todo, a oferecer iniciativas que pretendam proteger as vítimas ou poupá-las, de alguma forma, de determinados desgastes no decorrer do processo. Por outro lado, em função da exiguidade do período de pesquisa para desenvolvimento da monografia, a análise comparativa entre os documentos brasileiros e o espanhol escolhidos é suficiente para verificar as diferenças na forma com que a proteção à vítima é tratada em cada um dos países.

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