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CAPÍTULO 2 – ANÁLISE CRÍTICA DAS PARCELAS NÃO INTEGRANTES DA

2.2 Vale transporte

A contribuição previdenciária não incide sobre a parcela recebida a título de vale- transporte, na forma da legislação própria. O vale transporte consiste em benefício em favor do empregado, que implica a obrigação do empregador de antecipar ao empregado valor correspondente ao necessário para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência- trabalho e trabalho-residência, isto é, no dever de adquirir a quantidade de vales transporte

195 MENEZES, Adriana de Almeida. Direito Previdenciário. Salvador: Jus Podivm, 2012, p.187.

196 Art. 28, § 9º, “n” da Lei nº 8.212, de 1991: “ § 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei,

exclusivamente: (...) n) a importância paga ao empregado a título de complementação ao valor do auxílio-doença, desde que este direito seja extensivo à totalidade dos empregados da empresa; (Incluída pela Lei nº 9.528, de 10.12.97)”

197 CARF, 1ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção, Acórdão nº 2401-003.692, relator: conselheiro Kleber Ferreira de

necessários aos deslocamentos do trabalhador, no percurso residência-trabalho e vice-versa, no serviço de transporte que melhor se adequar. Sendo que, o empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico. 198199

Esta obrigação restringe-se ao sistema de transporte coletivo público, urbano ou intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes aos urbanos, geridos diretamente ou mediante concessão ou permissão de linhas regulares e com tarifas fixadas pela autoridade competente, excluídos os serviços seletivos e os especiais.

A concessão do vale transporte implica que a referida parcela:

a) não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos; b) não constitui base de incidência de contribuição previdenciária ou de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço; e

c) não se configura como rendimento tributável do trabalhador.

Os mesmos benefícios são assegurados ao empregador que proporcionar, por meios próprios ou contratados, em veículos adequados ao transporte coletivo, o deslocamento integral de seus trabalhadores.

Ocorre que, em sua regulamentação, passa a haver a previsão no sentido de que é vedado ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, exceto se se houver falta ou insuficiência de estoque de vale transporte (dos fornecedores), necessário ao atendimento da demanda e ao funcionamento do sistema, hipótese na qual o beneficiário será ressarcido pelo empregador, na folha de pagamento imediata, da parcela correspondente, quando tiver efetuado, por conta própria, a despesa para seu deslocamento. 200

Surge, então, a seguinte controvérsia: se a substituição desse montante em vales- transportes por montante de dinheiro teria o condão de conferir ao benefício caráter salarial, em razão do que esse mesmo montante passaria a constituir base de incidência de contribuição previdenciária. A princípio, era predominante o entendimento no sentido de que o pagamento

198 Art. 28, § 9º, “f” da Lei nº 8.212, de 1991: “ § 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei,

exclusivamente: (...) f) a parcela recebida a título de vale-transporte, na forma da legislação própria;”

199 Lei nº 7.418, de 1985.

em dinheiro do vale transporte ao empregado, o que seria vedado, configurava salário e compunha a remuneração, donde era exigível a contribuição previdenciária incidente sobre tal verba.

Entretanto, o Plenário do STF decidiu que não incide contribuição previdenciária sobre o vale-transporte pago em dinheiro:

EMENTA: RECURSO EXTRORDINÁRIO. CONTRIBUIÇÃO

PREVIDENCIÁRIA. INCIDÊNCIA. VALE-TRANSPORTE. MOEDA. CURSO LEGAL E CURSO FORÇADO. CARÁTER NÃO SALARIAL DO BENEFÍCIO. ARTIGO 150, I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CONSTITUIÇÃO COMO TOTALIDADE NORMATIVA.

1. Pago o benefício de que se cuida neste recurso extraordinário em vale- transporte ou em moeda, isso não afeta o caráter não salarial do benefício. 2. A admitirmos não possa esse benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional. 3. A funcionalidade do conceito de moeda revela-se em sua utilização no plano das relações jurídicas. O instrumento monetário válido é padrão de valor, enquanto instrumento de pagamento sendo dotado de poder liberatório: sua entrega ao credor libera o devedor. Poder liberatório é qualidade, da moeda enquanto instrumento de pagamento, que se manifesta exclusivamente no plano jurídico: somente ela permite essa liberação indiscriminada, a todo sujeito de direito, no que tange a débitos de caráter patrimonial.

4. A aptidão da moeda para o cumprimento dessas funções decorre da circunstância de ser ela tocada pelos atributos do curso legal e do curso forçado.

5. A exclusividade de circulação da moeda está relacionada ao curso legal, que respeita ao instrumento monetário enquanto em circulação; não decorre do curso forçado, dado que este atinge o instrumento monetário enquanto valor e a sua instituição [do curso forçado] importa apenas em que não possa ser exigida do poder emissor sua conversão em outro valor.

6. A cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade normativa.201

Ao nosso ver, a ratio decidendi, ou seja, a regra de direito posta como fundamento desta decisão do STF, pode ser assim sintetizada:

1ª Premissa: a parcela (o benefício) possui natureza não salarial (não remuneratória), no caso o vale-transporte. 202

201 STF, Tribunal Pleno, RE 478410, Relator: Ministro Eros Grau, DJe 14/05/2010.

202 As alíneas “a” e “b” do art. 2º da Lei nº 7.418, de 1985 estabelecem que o vale-transporte não possui natureza

salarial, não se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos e tampouco constitui base de incidência de contribuição previdenciária ou de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

2ª Premissa: admitir não possa o benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional.

Ratio decidendi: Possuindo a parcela natureza não remuneratória, o seu pagamento em

dinheiro não tem o condão de transmutar a sua natureza jurídica.

A tarefa de interpretar este precedente, para uma perfeita identificação da sua ratio

decidendi, possibilitará a sua aplicação em outras situações análogas, quais sejam, quando

determinada parcela possuir natureza não remuneratória e esta for paga em dinheiro, como ocorre, por exemplo, com o auxílio alimentação, que será abordado no tópico seguinte.

Ademais, não pode deixar de ser mencionado que, ainda no julgado em apreço, o Ministro Ayres Brito, de forma explícita considerou que somente podem sofre incidência de contribuições previdenciárias as parcelas que venham a gerar repercussão no benefício previdenciário:

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - E cobrar tributos sobre uma verba que não é salarial. Tem caráter indenizatório, tanto que não integra os benefícios do trabalhador quando da aposentadoria nem a pensão dos seus dependentes.

Ilustrativas são as conclusões a que o STF chegou ao apreciar os embargos de opostos pela Fazenda Nacional e por outros interessados:

(...) CARÁTER INFRINGENTE. EXPRESSA REJEIÇÃO DA POSSIBILIDADE DE INSTITUIÇÃO DA INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA PARA COMBATER A BURLA À “VERDADE SALARIAL”. INADMISSIBILIDADE DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO QUANTO À ANÁLISE DO ART. 4º DA LEI Nº 7.418/85. EXAME ESPECÍFICO PELO VOTO DO RELATOR. ANÁLISE DA CAUSA SOB O ÂNGULO DO DEVER INFRACONSTITUCIONAL DE PAGAMENTO DO BENEFÍCIO EM VALES. INOCORRÊNCIA DE VÍCIO NO PRONUNCIAMENTO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO QUANTO AO

DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL REPUTADO VIOLADO.

INOCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO CALCADA NO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA (CF, ART. 150, I) E DA AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR A AMPARAR A INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA (CF, ART. 195, I, ‘A’ E § 4º). DELIMITAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 5º DO DECRETO Nº 95.247/87.

RESTRIÇÃO AO ÂMBITO TRIBUTÁRIO, À LUZ DA

FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO EMBARGADO. MANUTENÇÃO DO SISTEMA DE PAGAMENTO DO BENEFÍCIO DO VALE- TRANSPORTE. ILICITUDE RESGUARDADA NO QUE CONCERNE

AOS OUTROS DOMÍNIOS DO DIREITO POSITIVO.

DE MODO A AFASTAR A INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS. (...)

2. Manifesta-se o caráter infringente de embargos de declaração quando interpostos de modo a questionar a firmeza das premissas que embasaram o acórdão embargado, mormente quando adotada expressamente tese jurídica contrária à pretendida descaracterização da natureza jurídica do vale- transporte pelo só fato de ser pago em pecúnia, sem que a incidência tributária possa ser instituída como modalidade de sanção política a fim de combater eventual burla ao princípio da verdade salarial.

3. Inexiste omissão quanto ao exame do art. 4º da Lei nº 7.418/85 diante da expressa manifestação do voto do relator acerca do referido enunciado normativo, destacando-se, no acórdão recorrido, a análise da causa sob o ângulo material do dever infraconstitucional de pagamento do benefício em vales.

4. Descabe arguir omissão quanto aos dispositivos constitucionais reputados violados se o acórdão embargado considera, de forma expressa e categórica, ofensiva ao princípio da legalidade tributária (CF, art. 150, I) a interpretação que chancela a incidência de contribuição previdenciária sobre os valores pagos em pecúnia a título de vale-transporte sem lei complementar que o permita, notadamente à luz dos art. 195, I, ‘a’ e § 4º, da CF.

5. A compreensão da fundamentação dos votos da maioria vencedora revela a necessária restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade do art. 4º da Lei nº 7.418/85 e do art. 5º do Decreto nº 95.247/87 exclusivamente no que concerne ao domínio tributário, para afastar a incidência de contribuição previdenciária pelo só pagamento da verba em dinheiro, mantendo-se hígida, no mais, a sistemática do vale-transporte para os demais fins, notadamente à luz dos domínios remanescentes do direito positivo. 203

Vê-se claramente que o STF concluiu no sentido de que para haver incidência de contribuições previdenciárias, a parcela paga pelo empregador ao empregado, ainda que configure ganho habitual em espécie, na forma prevista no art. 201, § 11, da Constituição (na redação original art. 201, § 4º), deve – necessariamente – decorrer de rendimentos do trabalho, a teor do que dispõe o art. 195, I, “a”, da Constituição. Neste ponto, bastante elucidativo trecho do voto do Ministro Luiz Fux, condutor do aresto em comento:

Com efeito, o afastamento do vale-transporte, ainda que pago em dinheiro, do salário-de-contribuição, segundo a douta maioria, decorre do próprio fato

gerador da contribuição previdenciária, previsto no art. 195, I, da CF, em cujo núcleo reside a expressão “rendimentos do trabalho” pagos pelo empregador à pessoa física. Como consta dos votos dos Mins. Eros Grau,

Cezar Peluso, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Carmen Lúcia e Ellen Gracie, ainda que haja o descumprimento do disposto no Decreto nº 95.247/87, com o pagamento em dinheiro dos valores, nem por isso caberá falar, no sentido próprio, em transmudação da natureza jurídica de tal verba, que continuará a se revestir de natureza indenizatória. Assim, não ocorre, por

força exclusiva de tal fato isolado – pagamento em dinheiro –, uma suposta conversão do vale-transporte em verba remuneratória, já que, pago de uma ou outra forma, a mesma finalidade ainda restará latente. Não por outra razão, aliás, é que se mostra comum, no campo do funcionalismo público, o pagamento de verbas de natureza indenizatória em pecúnia, na linha do que expressou o Min. Cezar Peluso (fls. 733).

Em outras palavras, o que consta do acórdão embargado é a afirmação de que o só pagamento em dinheiro do vale-transporte não modifica a natureza

do benefício, de modo que não se mostra válida, apenas por conta disso, a

pretensão de incidir a contribuição previdenciária prevista no art. 195, I, da CF, que, reitere-se, pressupõe rendimento do trabalho (CF, art. 195, I), o que é repetido, em termos relativamente distintos, pelo teor do § 4º do art. 201 da CF, ao afirmar que “os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei. (GRIFEI) No mesmo voto, o Ministro Luiz Fuz, deixa claro que a exação em apreço somente tornar-se-ia exigível com o advento de lei complementar, a teor do art. 195, § 4º, da Constituição, justamente por não se tratar de contribuição que possa ser amparada pelo art. 195, I, “a”, da CF:

Para que pudesse incidir a contribuição previdenciária, na realidade, seria imprescindível a previsão específica de tal fato gerador em lei complementar, como exige o art. 195, § 4º, da CF, pois, como visto, já não se tratará mais de tributo com amparo no fato gerador pré-definido na alínea ‘a’ do inc. I do art. 195 da Constituição. Daí se compreende a menção, nos votos dos Mins. Cezar Peluso e Eros Grau, à infringência ao princípio da legalidade tributária, previsto nos arts. 150, I, da CF, porquanto, à luz da materialidade prevista no art. 195, I, ‘a’, da CF, apenas com lei complementar é que seria válida a incidência de contribuição previdenciária sobre os valores pagos a título de vale- transporte.

Do exposto podem ser adotadas as seguintes conclusões: a) o vale-transporte não possui natureza salarial;

b) admitir não possa o benefício ser pago em dinheiro sem que seu caráter seja afetado, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional;

c) o pagamento em dinheiro não muda a natureza jurídica do vale-transporte;

d) parcela que possua natureza não remuneratória não tem sua natureza jurídica transmutada pelo fato de o pagamento dar-se em dinheiro (ratio decidendi);

e) somente podem sofre incidência de contribuições previdenciárias as parcelas que venham a gerar repercussão no benefício previdenciário;

f) para que haja incidência de contribuições previdenciárias, a parcela paga pelo empregador ao empregado, ainda que configure ganho habitual em espécie, deve – necessariamente – decorrer de rendimentos do trabalho;

g) a contribuição previdenciária incidente sobre o vale-transporte pago em dinheiro, ou qualquer outra parcela que não decorra de rendimento do trabalho, somente tornar-se-á exigível com o advento de lei complementar.