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SUMÁRIO

ESTRADAS A TÍTULO DE CONCLUSÃO 419 SUGESTÕES PARA TRABALHOS FUTUROS

2.2 VALOR PAISAGÍSTICO DA ESTRADA

2.2.2 Valor Cultural

Valor cultural é aquele atribuído aos ecossistemas humanos e elementos construídos definidos pela intervenção humana num dado espaço geográfico, com características e significados culturais, históricos e sociais que lhes conferem um caráter próprio que os identifica e difere dos demais. Uma estrada adquire valor cultural na medida em que sua inserção no sítio respeita as pré-existências, não fragmenta ecossistemas humanos, preserva e destaca o que é de valor para a sociedade, de caráter material e imaterial, através, por exemplo, de recursos como visualização, informações, oportunidade de parada e visitação, e na medida em que cria novos valores.

O valor cultural advém da intervenção humana na paisagem, dos usos e forma de ocupação, seja edificada – como monumentos, vilas e cidades, estradas – ou pela manipulação de elementos naturais, fruto das atividades agrícolas. Cada cultura possui características específicas e intervê de um modo no ambiente, conferindo-lhe identidade. Aí reside o valor cultural, quando essas marcas e traços são impressos e tornam-se visíveis na paisagem e/ou perceptíveis. Seu caráter pode ser arqueológico, histórico e social, incluindo lugares e atividades simbólicas. O valor cultural costuma associar-se aos aspectos histórico e patrimonial, mas não só: paisagens contemporâneas ou de um tempo próximo também podem ter valor cultural. As paisagens são resultados visíveis de processos contínuos de evolução e transformação, alguns povos sendo mais respeitosos com as preexistências; outros, nem tanto. De toda maneira, a paisagem exprime o espírito tecnológico, científico e filosófico da época da sua intervenção e do acúmulo de tempos pretéritos.

O valor de uma paisagem cultural decorre de sua função e da capacidade de reter marcas e registros antrópicos, inclusive de atividades pretéritas. O homem é um dos elementos de valor na paisagem, muitas vezes o principal. Sob a ótica cultural, a leitura e compreensão da paisagem não se limitam ao espaço. É também temporal. A paisagem testemunha e preserva dados de épocas passadas, sob o ponto de vista geológico, paleontológico e arqueológico. A observação da paisagem informa sobre processos de formação do planeta, da vida, da humanidade. Testemunha a aventura do homem pelo planeta, suas atividades e esforços para sobreviver e habitar este mundo, as diferentes formas como logra adaptar-se ao ambiente, impondo-lhe suas necessidades e exigências. Qualquer marca que o homem introduza na paisagem significa uma modificação para sempre, um novo significado, um diferente valor cultural. Às transformações da cultura correspondem outras recíprocas alterações. Técnicas materiais, crenças religiosas e ideológicas perpassam cada paisagem. Mesmo quando desconhecidas pelo homem, mesmo nas que nunca pisou, a marca indireta de suas ações já se faz sentir (DELPHIM, 2004, p. 5). As estradas são também uma obra humana e estruturadora da cultura. Através da sua forma, dos materiais, do modo como foi inserida no ambiente e dos lugares que conecta, revela o espírito tecnológico, econômico e ideológico da época da sua concepção. As estradas têm uma grande importância histórica, a exemplo do Império Romano que valeu- se das estradas para ampliar e controlar o território a partir de Roma e, assim, fazendo a manutenção de império por muitos anos. Outras estradas foram criadas com o propósito de comércio, como a Rota dos Tropeiros no Brasil, que posteriormente passou a ser a BR-116 e a BR-101 que dá acesso a todas as demais rodovias transversais do país e aos portos e ainda intercepta rotas de trem; outras com propósito de povoar regiões como a Transamazônica. As obras de arte associada às estradas, como pontes, viadutos e passarelas costumam destacar-se do contexto, são eventos para quem desloca-se na estrada, uma mudança que causa um estímulo perceptivo diferente nos usuários. Algumas obras de arte são realmente

102 | P á g i n a são elementos de referência do lugar onde estão inseridas. Em muitos casos a estrada e/ou seus elementos adquirem tamanho valor paisagístico que são um motivo em si mesmo para visitação.

A valoração da paisagem se inicia por aquelas já reconhecidas mundial, nacional ou localmente como patrimônio histórico, artístico, cultural ou como paisagem cultural (NOGUÉ; SALA, 2006), por instituições como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) no Brasil. Podem ser de natureza material ou imaterial: o primeiro pode ser imóvel – núcleos urbanos, sítio arqueológico ou paisagístico – ou móvel, como acervos fotográficos; o imaterial refere-se às práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas reconhecidos pelas comunidades como parte integrante de seu patrimônio (UNESCO, 2003). A partir do conceito de paisagem cultural, a UNESCO têm realizado o tombamento de rotas ou itinerários do patrimônio, debate aflorado na reunião sobre As rotas enquanto partes

integrantes do nosso património cultural realizada em Madrid, Espanha

em novembro de 1994 . O conceito de rotas do património é rico, oferece um quadro no qual é possível desenvolver uma abordagem plural da história e uma cultura da paz. “Uma rota do patrimônio é composta por elementos materiais que devem o seu valor cultural às trocas e a um diálogo multidimensional entre países ou regiões, e que ilustram a interação do movimento, ao longo de toda a rota, no espaço e no tempo” (UNESCO, 2014 p.75). Para a inscrição de rotas do património na Lista do Património Mundial são considerados os seguintes pontos:

i Deve-se ter presente a condição necessária de Valor Universal Excepcional.

ii O conceito de rotas do património:

- assenta na dinâmica do movimento e na ideia de trocas, com continuidade no espaço e no tempo. - refere-se a um todo, no qual a rota tem um valor superior à soma dos elementos constitutivos que lhe dão a sua importância cultural;

- realça o intercâmbio e o diálogo entre países ou entre regiões;

- multidimensional, com aspetos diferentes que desenvolvem e completam o seu objetivo inicial, que pode ser religioso, comercial, administrativo ou outro.

iii Uma rota do património pode ser considerada um tipo específico e dinâmico de paisagem

cultural, no momento em que debates recentes resultaram na sua aceitação nas Orientações

Técnicas.

iv A identificação de uma rota do património baseia-se num conjunto de forças e de elementos materiais que são testemunho da importância da referida rota.

v As condições de autenticidade devem ser aplicadas em função da importância e outros elementos constitutivos da rota do património. Deverão ter em conta a extensão da rota, e talvez a frequência atual da sua utilização, bem como as legítimas aspirações de desenvolvimento das pessoas envolvidas. Estes pontos serão considerados no quadro natural da rota e das suas dimensões imateriais e simbólicas (UNESCO, 2014, p. 75-76).

São exemplos de rotas do patrimônio pela UNESCO a Costa Amalfitana (Itália, 1997/ critério ii, iv e v), uma área de grande beleza física e diversidade natural, bem como valor cultural estabelecido por comunidades desde o início da Idade Média (Figura 39).

Figura 39: Costa de Amalfi, Itália. Vista para a cidade de Amalfi. Em arcos está apoiada a estrada SS163. Nota-se os edifícios escalonados,

acomodando-se na encosta, assim como a agricultura nos terraços. Fonte: UNESCO, 2016.

104 | P á g i n a fortemente inclinado, em encosta. Utilizam-se do terraceamento da encosta para cultivar vinhas e pomares e pastagens nas partes altas. A estrada acomoda-se na encosta, com pouca interferência visual na paisagem, utiliza de recurso de viadutos para vencer alguns trechos, seguindo paralela às curvas de nível e é uma via panorâmica para o oceano.

A UNESCO também protege sistemas de caminhos, alguns deles veículos não trafegam, e alguns casos envolve mais de um país, como, por exemplo: Qhapaq Ñan, Andean Road System – antigo caminho Inca (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru, 2014), Silk Road – caminho da seda (China, Kazakhstan, Kyrgyzstan, 2014).

Segundo Bacon (1974) a forma da cidade é determinada pela multiplicidades das decisões tomadas pelas pessoas que nela residem, em algumas circunstâncias a interação dessas decisões adquirem tamanha forma e claridade, que nobres cidades são formadas. O Brasil possui a primeira cidade que, em sua totalidade, foi reconhecida como Patrimônio Mundial da Humanidade na categoria Paisagem Cultural – o Rio de Janeiro. Foi assim designada pelo seu cenário urbano excepcional, constituído por elementos naturais que moldam e inspiram o desenvolvimento da cidade, pelas paisagens urbanas e relevância da inspiração artística que oferece a músicos, paisagistas e urbanistas (ONUBR, 2012). O Iphan tem feito esforços para reconhecer as paisagens culturais brasileiras, a iniciar pelas imigrações italianas e alemãs, inclusive com o reconhecimento das rotas de imigração alemãs (IPHAN, 2007), que inclui as estradas históricas no inventário para proteção e gestão.

A melhora de acessibilidade trazida pelas estradas estimula transformações econômicas, demográficas, o desenvolvimento urbano e promovem inúmeras interações sociais. Sem as estradas a produção do campo estaria limitada aos consumidores de áreas adjacentes e os trabalhadores teriam que morar perto de seus trabalhos. Por outro lado, tem efeitos adversos, pois exerce pressão sobre áreas naturais, produtivas e históricas ao estimular mudanças de uso do solo e atrair a expansão urbana na sua direção, que sem o gerenciamento do uso e ocupação das bordas pode causar conflitos; pode causar o abandono dos solos agrícolas, a descentralização industrial e o declínio social das áreas adjacentes (FORMAN et al., 2003 ; CEPT, 2008).

A estrada passa a ter valor cultural quando seu projeto respeita as preexistências culturais, sejam sítios edificados ou áreas agrícolas valiosas, tanto pelo valor da fertilidade da terra ou pelo valor das técnicas

de cultivo. É desejado, também, que o projeto das estradas favoreça o valor cultural – para que seja visto, percebido e apreciado pelos usuários (valor visual) –, não interfira nas atividades locais e nem seja barreira para as comunidades. Uma estrada com valor cultural necessita promover a segurança aos usuários que circulam por ela e, também, para o entorno, salvaguardando vidas e bens. A segurança depende de muitos fatores técnicos, perceptivos e paisagísticos de projeto, também depende de uma execução com qualidade, de constante manutenção e eficiente gerenciamento.

É indicado que as estradas se desenvolvam, preferencialmente e majoritariamente, em áreas rurais através das bordas das cidades e das áreas agrícolas, evitando dividir os sistemas locais, inclusive assentamentos humanos e monumentos históricos. Também o estudo de alternativas para o traçado de estradas necessita observar as terras férteis, evitando sua perda e ponderar os gastos em função também em função dos recursos não renováveis. Nesse sentido, uma opção de estrada que seja mais custosa num primeiro momento pode ser vantajosa, em virtude de preservar um recurso e não levar ao seu esgotamento, que, por ser não renovável, não teria possibilidade de recomposição, como o patrimônio histórico, arqueológico e material fóssil como o petróleo. As diferentes atividades agrícolas, como agropecuária, florestal, pesqueira e agroindustrial, junto com as características biofísicas do sítio configuram paisagens. Desenvolver estradas através dessas paisagens enriquece visual e culturalmente o itinerário, tornando as viagens mais prazerosas (LAURIE, 1983, PRINZ, 1984, ALEXANDER et. al., 2013).

A partir do momento em que o sistema rodoviário foi introduzido nas cidades e entre elas, houve a necessidade de hierarquização dos sistemas de deslocamento para que não houvesse conflitos. As rodovias arteriais conectam-se às coletoras e vicinais para dar acesso a centros urbanos rurais e citadinos e demais áreas, como parques. O acesso acontece através das vias marginais, que Alexander et al. (2013) recomenda que sejam afastadas do centro urbano, pois são incompatíveis para o tráfego local. Caso haja necessidade de uma estrada passar através de um assentamento humano, precisa minimizar suas interferências no ambiente e adequa-se ao contexto urbano, seguindo as exigências funcionais e dos valores ideais do local (LAURIE, 1983, PRINZ, 1984, ALEXANDER et. al., 2013). Para Alexander et al. (2013) as pessoas precisam fazer parte de uma unidade espacial identificável e a configuração do espaço ser na escala do pedestre, diferente do sistema

106 | P á g i n a rodoviário, que a extrapola com vias de várias faixas de circulação e com deslocamentos de veículos com altas velocidades.

Bacon (1974) apresenta o sistemas de movimentos simultâneos, no qual e movimento através do espaço cria uma continuidade de experiências derivadas da natureza e da forma dos espaços nos quais esses movimentos ocorrem. O espaço da cidade é sentido e percebido continuamente por diferentes sistemas de movimento que envolvem modos e velocidades diferentes de locomoção (BACON, 1974).Além da experiência, que é o produto do movimento no tempo e no espaço, os movimentos a níveis diferentes permitem maior mobilidade e segurança, por exemplo: cruzamento sem interferências, sem conflitos, de rodovias de alto tráfego com vias local ou com comunidades (Figura 40). Estruturas de transposição de pedestres são necessárias quando próximo de áreas com ocupação humana (Figura 41).

Figura 40: Entroncamento de estradas estaduais no estado da Flórida, EUA. Fonte: Angela Favaretto, 2015.

Figura 41: Passagem de pedestres no formato de praça elevada sobre a rodovia e a linha de trem. Vancouver, Canadá.

Alexander et al. (2013) afirmam que os moradores de cada área de transporte local precisam ter a possibilidade de chegar ao campo aberto sem ter de atravessar uma estrada de alta velocidade.

O tráfego de veículos nas estradas gera perturbações ao meio ambiente, entre elas, a poluição do ar e a sonora, que aumentam à medida que o volume cresce. Por isso a proteção acústica da estrada pode resguardar a vida ao seu redor (Figura 42, Figura 43 e Figura 44). São medidas de proteção: o rebaixamento da estrada em relação ao entorno; a introdução de taludes e de vegetação disposta escalonadamente; por edifícios cujas atividades não são afetados com o ruído, como edifícios garagem, em que as pessoas permanecem por curto espaço de tempo, ou galpões, onde a própria edificação se encerra em si mesma pelas especificidades exigidas pelas atividades; e através da inserção de placas.

Figura 42: Barreira acústica transparente propicia integração

visual.

Fonte: Rodovias verdes, 2016.

Figura 43: Barreira acústica compondo paisagem. Melbourne,

Austrália. Fonte: Pinterest, 2016.

Figura 44: Barreira acústica também gera energia a partir de placas fotovoltaicas. A16 próxima de Dordrecht, Holanda.

108 | P á g i n a os viajantes, pois ajudam na sua localização e orientação (vide 2.2.3 valor visual). Também os elementos da estrada chamados obras de arte  que incluem pontes, viadutos, túneis, travessias de pedestres, passa fauna  e os elementos de sinalização, como placas, são detalhes que lhe conferem identidade. Edifícios de apoio à operação da estrada – postos de pesagem, policiais, de pedágio – e ao viajante, como postos de gasolina, restaurantes e comércios, costumam ter linguagem arquitetônica clara, sendo facilmente reconhecidos e utilizados como referências para o usuário. Muitas vezes, edifícios individuais podem adquirir caráter de pórtico, elemento escultórico, eixo, foco, e a dimensão de um pode destacar a dimensão de outro (SPREIREGEN, 1973).

McHarg (2000) observou que o método de projeto de estradas nos Estados Unidos na década de 1960 seguia um modelo econômico e não apresentava a mesma qualidade que as estradas parques  novidade naquela época. Propõe então, a incorporação de recursos de valores estéticos e de valores sociais em adição aos critérios já adotados de fisiografia, tráfego e considerações de engenharia. Propõe critérios que auxiliam para maximizar os benefícios públicos e privados das estradas: 1. aumento da facilidade, conveniência, prazer e segurança para o

movimento de tráfego;

2. salvaguarda e melhora do solo, água, ar e recursos bióticos; 3. contribuição para objetivos públicos e privados de renovação

urbana, recreação, saúde pública, conservação e embelezamento; 4. geração de novos usos produtivos do solo e pela sustentação e

melhoramento dos já existentes.

O método revela o alinhamento da estrada com o máximo benefício social e o mínimo custo social. Para McHarg (2000) a estrada deve ser locada e projetada tendo em conta sua ampla responsabilidade social. A estrada deixou de ser considerada apenas em termos de movimento automotivo no direito de passagem, e passou a ser considerada no contexto do processo físico, biológico e social dentro da sua área de influência. A estrada é, dessa forma, considerada como um investimento público maior, no qual pode afetar a economia, o modo de vida, a saúde e a experiência visual de toda população abrangidas na área de influência.

A estrada pode produzir novos valores como respostas às necessidades da contemporaneidade utilizando-se das tecnologias disponíveis nas diversas áreas. Um exemplo é a necessidade de maior

eficiência energética e, como resposta, a geração de energia através de painéis fotovoltaicos inseridos no pavimento e utilizados para iluminação da via (LYNCH, 2017) e pistas capazes de abastecer carros elétricos enquanto trafegam (FROES, 2016).

Considera-se que as estradas sejam uma intervenção cultural no meio físico como resposta às suas necessidades de deslocamentos e transportes, e ela própria é uma materialização do contexto histórico, econômico, social, científico e tecnológico. É marcada e deixa marcas da cultura de quem a concebeu e pelo processo histórico. As estradas passam por localidades que expressam através da paisagem sua identidade cultural, apresentando panoramas chave para sua interpretação. Os valores culturais são aqueles que expressam as particularidades, que conferem a identidade às comunidades. Se no projeto de estrada os valores forem reconhecidos e exaltados, então a estrada estará qualificando-se pelo aspecto cultural. O reconhecimento significa ponderar ganhos e perdas por aproximar ou mostrar certo valor da cultura, bem como sob o aspecto de salvaguarda patrimonial, de conforto ambiental para a população do entorno e o provimento na estrada de infraestruturas que a localidade necessita.

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