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A família de Valquíria seguiu um ritmo distinto da maioria das outras famílias da comunidade horizontina. Originária de Horizonte, mudou-se para outro município, no interior do Ceará, em busca de mudança de vida, 12 anos atrás. Valquíria, então com 15 anos, foi junto, voltando um ano depois, praticamente fugindo do pai para morar com o avô e conseguir, assim, sua “liberdade”.

Valquíria tem 24 anos, é descendente de índios e negros e veste mesmo a camisa do movimento negro. Suas palavras são pronunciadas com bastante orgulho: “Eu sou, e me orgulho de ser quilombola” ou “Pra gente é uma coisa de bastante destaque, por isso eu sinto um prazer imenso em ser quilombola”.

Entretanto, Valquíria só tomou conhecimento de sua descendência a partir do processo de reconhecimento do território quilombola pela Fundação Cultural Palmares15. Conta ela: “Eu fico me perguntando, eu nasci aqui, eu vim descobrir que eu sou quilombola um dia desses? Eu só fazia perguntar ‘vô, porque que aqui só tem neguim?’”. Esse desconhecimento pode estar relacionado com o preconceito que ainda existe, na sua opinião, naquela comunidade: “A maioria não admite que é quilombola. Tem muitos que faz é rir, que não tem ainda noção, eu acho que é por isso que eles rejeitam a ser quilombola. Tem preconceito da gema mesmo”.

A criação da associação comunitária representa outro ponto de orgulho para Valquíria: “O símbolo da ARQUA pra mim representa a nossa origem, quem nós somos

15 Instituição federal que tem como objetivo corporificar os preceitos constitucionais de reforços à

cidadania, à identidade, à ação e à memória dos segmentos étnicos dos grupos formadores da sociedade brasileira.

hoje. O desenho, aquele rostinho, aquelas características, tem tudo a ver com a gente”. A logomarca da ARQUA está na figura seguinte:

FIGURA 13 – Logomarca da ARQUA Fonte: ARQUA, 2006.

Valquíria observa muitas mudanças em Horizonte com a instalação das indústrias, avaliando satisfatoriamente as transformações no aspecto laboral e no poder aquisitivo dos moradores:

Poucas pessoas hoje trabalha na agricultura porque, como não existia empresa, o povo vivia da enxada. [...] Essas mudanças foi bom para Horizonte, porque o campo não é suficiente para a sobrevivência das pessoas, era um ganho muito pouco [...] Hoje, quem trabalha numa empresa tem um transporte, nem todas, mas a maioria tem, tem uma casa com uma estrutura muito boa. Antigamente era uma casa de taipa, tomava água no pote. Hoje, quase todo mundo tem geladeira. Cada dia mais eu só vejo melhorar.

Por outro lado, Valquíria se incomoda com a intensa migração e com a diminuição da segurança das pessoas, dois itens, sob o seu ponto de vista, bastante relacionados:

Porque aqui a gente tem uma tradição, quase todo mundo aqui é primo, é tio [...] Há uns 10 anos ou mesmo uns cinco ou seis anos atrás, aqui muitas casa não existia porta, era umas portinhas de talo sem segurança alguma, era tão acochado que podia dormir despreocupado que não havia perigo de nada. Hoje, o máximo de segurança, se não tiver cuidado, vai pra dentro. Eu acho que essa diferença quem veio fazer foi as pessoas de fora.

Na opinião de Valquíria, a situação da mulher na sociedade, nos dias atuais, está diferente, e ela própria se considera como um exemplo de superação: “Hoje a mulher se superou muito. [...] Quem era a minha mãe no passado e quem sou eu como mulher hoje, porque antes a minha mãe não tinha voz alta dentro de casa. [...] Hoje nós mulher tem pulso firme, temos tom próprio”.

Casada há seis anos e com um filho de cinco, Valquíria e o companheiro não recebem qualquer tipo de renda fixa, vivendo do artesanato e da venda de produtos que plantam no quintal da casa herdada do avô. Ele já trabalhou na Sapatos e, segundo ela, está fazendo de tudo para voltar, pois foi demitido por uma “fatalidade”, um fato que o obrigou a faltar ao serviço. A situação financeira está bastante difícil, e tudo que conseguem é compartilhado dentro de casa: “O que eu trago é pra mim, ele e meu filho e o que ele consegue é pros três. A gente vive assim, hoje a gente arruma tanto, hoje não arrumamo nada”. Contudo, ela é responsável pelos afazeres domésticos na maior parte do tempo: “Às vezes a gente divide as tarefas. Quando eu tô muito ocupada eu divido as tarefas com ele, se eu não tiver, eu faço tudo só”.

Valquíria também trabalhou na maior fábrica de Horizonte, tendo suportado menos de dois meses de serviço, porque foi submetida a situações que entravam em desacordo com seus valores pessoais e sua forma de ver o mundo.

Pra mim, foi um desafio grande, porque eu passei a fazer coisas que eu não queria, e sim por obrigação, por ser mandada. Eu sabia que eu era capaz de trabalhar, fazer coisas e mais coisas, mas não naquele local. Pra mim eu estava no lugar errado. Foi tanto que eu pedi a demissão, porque eu chorava, eu me sentia presa. [...] Até que eu gostava do que eu fazia, não gostava era do modo como fazia, como a gente era pressionado. Aquilo pra mim era demais, tava puxando o meu limite. [...] A empresa era boa em termos de pagamento, não atrasava, era muito pontual, mas lá existe pessoas muito desumanas.

Essa trabalhadora aponta uma outra visão da empresa que comumente não aparece de imediato no discurso de outras entrevistadas: a de superexploração do trabalhador, os casos de preconceito e de abusos que parecem ocorrer costumeiramente: “Muita gente costuma chamar de ‘escravabrás’ [...] Eu fiquei assim, porque as pessoas que trabalham lá, sem ser o chefão, é chamado de ‘oreia seca’”.

A própria Valquíria foi alvo de situações constrangedoras, o que motivou o seu pedido de dispensa.

Até porque essas pessoas que se acham superior à gente, muitos tentam até fazer assédio com as funcionárias. Muitas já tinham me dito, mas eu nem levava isso a sério, mas quando isso veio acontecer comigo, eu acho que foi mais isso aí que fez eu me demitir, por certas coisinhas no meu ouvido. Até porque eu sou casada e, mesmo que eu não fosse, eu acho que ali não é o lugar adequado, porque ali é um canto de trabalho. [...] O médico dizia que se eu quisesse ficar em paz comigo mesma eu me demitisse porque eu já tava com começo de depressão.

Valquíria demonstra ter consciência das conseqüências daquelas condições de trabalho na sua vida e na sua saúde. Ainda que tenha trabalhado por pouco tempo, já sentia os sinais dos impactos emocionais e conhecia os riscos do trabalho caracterizado pela repetição de movimentos e pelo ritmo intenso. Afirma ela: “a pessoa que sai de lá não sai mais com saúde, não. O rapaz que me ensinou a fazer a função que eu fazia me disse: ‘olha, você vai tá trabalhando nisso aí, mas com um ano você vai estar com dois cistos na sua mão; olha aqui na minha mão’”.

Talvez também devido à sua percepção do que acredita consistir o trabalho, Valquíria não tenha se adaptado àquele serviço:

Trabalho pra mim é uma ocupação todos os dias [...] ter obrigação por prazer. Porque, pra mim, se você fizer uma coisa e não tiver gostando, pra mim aquilo é insignificante, não tem nem sentido aquilo ali. [...] O trabalho dos meus sonhos é exercer minha profissão. É assim, construindo o artesanato na hora, vendendo na hora, uma coisa assim bem natural. Meu sonho é isso, crescer com o artesanato.

Valquíria só concluiu a 6ª série do Ensino Fundamental, mas diz que não retoma a escola por não ter com quem deixar o filho, pois o marido está estudando. Mesmo sendo incentivada por ele para dar continuidade, ela reconhece o seu comodismo com relação à sala de aula: “Tenho consciência de que não é tarde ainda, tem que só acordar pra realidade. Pra mim é tarde, eu tenho preguiça, depois tem a novela (risos)”.

Porém, ela espera que o filho se dedique mais aos estudos, e afirma que conversa constantemente com ele:

Hoje você vê a minha vida com o seu pai, porque a gente não tem estudo, a gente sofre muito pra conseguir um emprego, porque as indústria não dá chance pras pessoas que tem um grau de escolaridade baixo. Por isso que você tem que estudar, fazer uma faculdade, se formar.

A percepção de qualidade de vida de Valquíria é bastante voltada para os seus sentimentos, relações interpessoais e para a manutenção de uma vida simples:

“Viver bem pra mim é, em primeiro lugar, estar de bem comigo mesma. Eu não sou muito de sonhar alto, é ter meu alimento todos os dias pra me alimentar. É ter saúde, é ter boas amizades, e ver as pessoas que tá ao meu redor tudo bem”.

Participar do projeto “Alinhavando Sonhos / Construindo Realidades” parece que foi muito significativo para Valquíria, uma espécie de marco mesmo em sua vida:

Pra mim alinhavando é uma palavra de significativa grande, porque lá a gente fez muitas amizades. [...] Veio estimular, veio me ensinar a sonhar, a ter projeto de vida, que eu não tinha. [...] Eu acho que hoje se eu chegar a ir pra uma empresa, eu acho que eu já tô preparada pra trabalhar com pessoas diferentes de mim. Por que lá foi assim, a gente teve amizade com pessoas legais, mas cada pessoa tem o seu jeito diferente, mas a gente se sentia família. [...] Cada palestra, cada coisa, fui tirando um pouquinho de cada coisa, um sentido pra minha vida.

O aprendizado adquirido nas atividades oferecidas pelo projeto contribuiu também para alimentar o seu sonho de viver do artesanato e trabalhar por conta própria: “Hoje eu não tenho uma verba, mas se eu tivesse, eu, com certeza, eu iria trabalhar e ganhar dinheiro sem medo, porque eu posso dizer que o Alinhavando me preparou. Não só pra trabalhar, mas também pra sair lá fora, encarar o mundo de frente, sem medo”.