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2. A MORTE E SUAS VAIDADES: A VANITAS E AS RELAÇÕES DA MORTE NA ARTE

2.2. Vanitas como novas significações

A natureza-morta é um gênero que se perpetuou pelo tempo na História da Arte. Se suas temáticas estavam ligadas a representações simbólicas de objetos durante a pintura barroca, os temas abrangem também o modernismo. O artista agora codifica assuntos da vida moderna, quebrando com as hierarquias acadêmicas, os signos presentes refletem também as inovações técnicas nas artes. Os gêneros da pintura são substituídos pelo empenho individual, expandindo os repertórios21.

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GALLAGHER, Ann (Coaut. de). Still life: natureza-morta. São Paulo/Londres: SESI-SP/British Council, 2004, p. 5-6.

As obras cubistas de Picasso e Braque, por exemplo, trabalham com outros dispositivos de ilusionismo, rompendo o espaço perspectivo e os objetos agora representados no século XX e partem para uma tridimensionalidade, pela

assemblage ou até mesmo por Duchamp, ressignificando os objetos. Na segunda

metade do século XX, a crítica dos valores contemporâneos muda o olhar para o objeto, sendo que ele, agora, sofre uma reflexão dentro da cultura do consumo.

A Pop Art, num outro momento, põe outros valores em relação a estes objetos, pela produção de imagens que reproduzem objetos através da repetição. Andy Warhol tem como um dos pontos de seu trabalho o uso da repetição, principalmente de imagens – como a de Marilyn Monroe – ou de objetos como as famosas Campbell’s Soup (1962) [Figura 10], sendo que por debaixo desse fetiche dos bens de consumo e pelo apelo da mídia, encontra-se o que é indiscriminado na sua obra, com “a realidade do sofrimento e da morte” (FOSTER, 2014, p.124). Todavia essa repetição “não é reprodução no sentido de representação (de um referente) ou simulação (de uma simples imagem, ou significante isolado)” (FOSTER, 2014, p. 128), pois aqui a repetição é uma proteção ao real. Warhol lida com as vanitas e suas repetições nas séries de serigrafias como em Skull (1976) [Figura 11], de forma que:

A vaidade é ao mesmo tempo conceitual em seu dispositivo como em seu tratamento, pois toca a superfície da verdade, reduzido a

infra-mince22. Assim, encontramos um ilusionismo como no século XVII, mas um ilusionismo sem ilusão, que reduz a carne à sua suspensão e a sua coloração de pele. (BUCI-GLUCKSMANN, 2010, p. 55, tradução nossa).

22 L’inframince pode ser definido como uma espécie de quarta dimensão que responde às conjecturas que os sábios reservam, no começo do século XX, à pura abstração matemática. Para Duchamp, ele se manifesta através de sutis desvios e de ínfimas diferenças. Assim como seus célebres ready- mades, objetos cotidianos (mictório ou porta-garrafas) apresentadas como obras, e que colocam o desafio da distinção entre o que é e o que não é arte. L’inframince, explica Duchamp, é como o delay que separa o barulho de disparo de um fuzil (muito próximo) e a aparição da marca da bala sobre o alvo. (tradução nossa) Disponível em: <http://www.lemonde.fr/livres/article/2010/12/17/de-l- inframince-breve-histoire-de-l-imperceptible-de-marcel-duchamp-a-nos-jours-de-thierry-davila-et- esthetique-de-la-vie-ordinaire-de-barbara-formis_1454702_3260.html>. Acesso em: 26 jan. 2017.

Figura 10. Andy Warhol, Campbell’s Soup, 1962. Pintura de polímero sintético, 50,8 x 40,6 cm. Museum of Modern Art, New York

Figura 11. Andy Warhol, Skull, 1976. Serigrafia, 335,3 x 381 cm. Andy Warhol Museum, Pittsburgh

A repetição é aqui um escoamento do significado e uma defesa contra o afeto, que segundo Warhol, ver várias vezes uma imagem implica que elas não atingem nenhum efeito, sendo esta uma das funções da repetição23. Em vez de a repetição ser uma libertação do luto, é uma fixação da melancolia, que “totalmente desublimadas, ácidas em cores brilhantes e arbitrárias, monótonas e achatadas, suas vanitas frias querem permanecer na ‘superfície das coisas’” (DAYDÉ, 2010, p. 172, tradução nossa) [Figura 12]. Nesse jogo posto por Warhol, “as repetições [...] não só reproduzem efeitos traumáticos; também os produzem” (FOSTER, 2014, p. 127), e que, portanto, há uma evasão do traumático e abertura para ele.

Figura 12. Andy Warhol, Skull, 1976. Serigrafia, dimensões variadas. Esquema contendo quatro obras da série Skull

Ainda, em relação às vanitas, podemos destacar parte dessa transição do gênero e sua complexidade semântica devido a mudanças do olhar sobre ela. Nesse quesito, Cézanne e Picasso são dois artistas para os quais a temática no crânio em

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suas naturezas-mortas pode ser um ponto importante de partida, pois em suas investigações pictóricas, eles desconsideram convenções básicas para o tema.

Na obra Jovem diante da Morte (1895-1896) [Figura 13], Cézanne apresenta-nos a figura de um jovem sentado com o braço apoiado sobre uma mesa com sua cabeça repousando sobre sua mão. Na mesa, há elementos típicos das

vanitas: livros, que representam parte da simbologia das futilidades da vida e o

crânio, exemplo de todas as vaidades e nos lembrando das transitoriedades da vida.

Figura 13. Paul Cézanne, Jovem diante da Morte, 1895-96. Óleo sobre tela, 130,2 x 97,3 cm

Essa pintura ressoa as vaidades das vaidades, a tradição das pinturas moralizantes, citação frequente na história da arte, faz “ecoar essas palavras com o sentido de ‘pintura das pinturas da vaidade’” (NANCY, 2015, p. 68).

Ao mesmo tempo em que retoma essa tradição, Cézanne cria a contradição nessa pintura. O jovem veste-se como um rapaz moderno de seu tempo, trajando um terno e encarnando essa figuração do século XIX, porém ao mesmo tempo vemos na composição desta obra o símbolo das vaidades juntos

pilhas de livros sobre a mesa, um contraponto de representações arcaicas e de uma época moralizante, evocando a história da pintura.

Deste modo, a imagem que Cézanne tem como forma visível essa evocação para com as vanitas, que como mimeses da história da arte traz consigo uma tradição; não busca como mimeses a imitação da vanitas. Sua forma (pictórico) separa-se do fundo, sendo este no sentido de múltiplos significados e ressonâncias presentes na obra24.

Pablo Picasso, por sua vez, apresenta suas vanitas de forma despretensiosa em muitos momentos, o crânio é um elemento a se contrapor com outros presentes em suas telas. Por exemplo, em Crânio e jarra, de 1945 [Figura 14], há como parte central da obra estes dois objetos sobre uma mesa. Os planos dessa pintura são múltiplos, como várias figuras do cubismo de Picasso, a jarra exibe várias facetas, assim como a mesa25. Ao observar a cena, nota-se que há um encontro de positivo e negativo por parte da relação entre crânio e jarra, pois parte de seu osso “duro como uma bala” (STEINBERG, 2008, p. 154) se encaixa na parte curvilínea do vaso, quase um encaixe do masculino com o feminino26.

Figura 14. Pablo Picasso, Crânio e jarra, 1945. Óleo sobre tela, 71,12 x 91,44 cm

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NANCY, Jean-Luc. Imagem, mimese e méthexis. In: ALLOA, Emmanuel (Org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autentica, 2015, p. 66-72.

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STEINBERG, Leo. Outros Critérios: confrontos com a arte do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 153.

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O crânio esteve presente na obra de Picasso em muitos momentos de sua obra; todavia, antes eles não tinham a mesma seriedade como depois de 1940, período em que viveu em Paris, quando as tropas nazistas invadiram a cidade. O que aqui nos é relevante é o fato de como podemos observar o crânio no modernismo de maneira paralela às vanitas do período barroco; em Picasso, “numa natureza-morta do cubismo sintético, aparece um crânio, ele é trivial, leve, não mais do que uma máscara de papel, um faz-de-conta” (STEINBERG, 2008, p. 156). Nessa direção, Leo Steinberg (2008) coloca que as caveiras do artista tem certa transição por causa da guerra.

Muito mais tarde, depois de meados da década de 1940, o crânio aparecerá novamente como objeto artificial – um espantalho, uma coisa tola que amedronta –, tomando a forma de uma máscara, uma coruja inofensiva ou uma espécie de trocadilho no focinho macio de um cavalo. No entanto, em 1940, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, os crânios entraram seriamente em sua arte. A morte real estava do lado de fora, o medo real ancorado dentro, e, assim, a iconografia de Picasso concentrou seu foco sobre ele.

Na obra de Picasso, a morte não tem o contexto moralizante de uma obra como na do pintor neerlandês Pieter Claesz (1597/8-1660) [Figura 15]; as questões pictóricas cubistas representavam retomadas de temáticas clássicas de uma investigação em sua obra ao mesmo tempo em que, quando ganha seriedade, seu trabalho tinha o peso que as relações do momento histórico que o atingiam, bem como uma “metáfora apaixonada, [...], que na década de 1930 tinha se projetado no monstro Minotauro, esteja se projetando novamente” (STEINBERG, 2008, p. 155) e que assume sua relação com a morte e a guerra.

Figura 15. Pieter Claesz, Natureza-morta sobre o Tema da Vaidade (Vanitas), 1630. Óleo

sobre painel, 39,5 x 56 cm. Mauritshuis, Haia, Holanda

A repercussão das naturezas-mortas a partir do século XIX é vasta; suas significações e transformações são, em certa instância, abrangentes. A temática das

vanitas coloca-nos de frente com a morte, porém agora a moral não está mais

presente, sua simbologia transcende este ponto; estamos apenas em confronto com a experiência da morte do outro, uma ressignificação de temas e signos que perdura na arte contemporânea. Mesmo que o sentido das tradições não seja o que sustenta as vanitas contemporâneas, a mensagem ainda se perpetua, pois lá ainda se encontra a lembrança de que irá morrer.

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