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Violência, criminalidade e conflito: algumas considerações conceituais A violência é conceituada, na literatura, de muitas formas diferentes Embora não

1.2 Prevenção à violência

1.2.1 Violência, criminalidade e conflito: algumas considerações conceituais A violência é conceituada, na literatura, de muitas formas diferentes Embora não

seja exaustiva, dada a riqueza da produção teórica sobre o tema, será feita uma breve análise de diferentes conceitos de violência presentes na literatura, com o objetivo de apresentar a delimitação conceitual adotada neste estudo.

Michaud (1973, p. 05) define a violência como uma ação direta ou indireta, concentrada ou distribuída, destinada a prejudicar uma pessoa ou a destruí-la, seja em sua integridade física ou psíquica, seja em suas posses, seja em suas participações simbólicas. Já Velho (1996, p.10) considera a violência como o modo mais agudo de revelar o total desrespeito e desconsideração pelo outro, implicando não só o uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la. Esses dois conceitos apresentam elementos semelhantes, como a intencionalidade da ação e a violência em potencial, ou seja, a ameaça de uso da força física ou ação indireta. Destacam-se aqui as duas principais formas nas quais a violência pode se manifestar: física e psicológica.

Santos (1993, p.79 e 108) percebe o conceito sob a perspectiva de que o excesso de regulação não tem garantido o exercício do direito. Isso faz com que seja violado o princípio da credibilidade da lei, que é o elemento que permite o planejamento individual da vida privada e do investimento social de médio e longo prazo. Para o autor, essas condições conduzem a uma elevada taxa de incerteza do mundo social: a impotência individual em

ajustar-se ao mundo deriva justamente do reconhecimento de que a retribuição da sociedade, isto é, dos outros, independe da contribuição do indivíduo. De onde se segue a erosão das normas de convivência social, a tendência ao isolacionismo e ao retorno ao estado da natureza, e a anomia.

É nesse contexto que prevalecem os códigos privados de comportamento e a subcultura do crime, a coesão social se esfacela e não há um espaço público capaz de possibilitar o compartilhamento de valores comuns. Para o autor, a violência está ligada à ausência de cultura cívica e de cidadania compartilhada como padrão geral de convivência social.

Ao contrário da posição de vários outros autores, Arendt (1994) defende a distinção entre poder e violência. A autora argumenta, ainda, que estes não são somente distintos entre si, mas são, também, inversamente proporcionais: quanto mais poder um governo exerce, menos violência necessita empregar; quanto mais violento for um governo, menos poder possui. Nesse sentido, o cerne da violência está aliado à ineficácia instrumental e simbólica do Estado, ou seja, a impotência gera violência. Para Arendt (1994), a violência surge quando o Estado enfraquece.

Nesse sentido, o Estado ineficaz e ineficiente representaria no imaginário coletivo21 a ilegitimidade para administrar os conflitos interpessoais. As partes em conflito elegeriam um campo para-estatal na resolução de suas lutas interpessoais (muitas vezes com recurso à violência), renunciando, portanto, às regras universais e impessoais do Estado de direito. A Justiça, nessa perspectiva, ao não ser capaz de solucionar satisfatoriamente os conflitos no tecido social, abre uma brecha para a penetração de meios paralelos de resolução de conflitos.

21 Percebe-se aqui a semelhança com o conceito de modelos mentais compartilhados de Mantzavinos et al

Esta reflexão possibilita um paralelo com a questão da relação entre instituições formais e informais, abordada anteriormente. A deficiência do Estado na administração da justiça aumenta os custos transacionais e favorece a formação de instituições informais que podem privilegiar a resolução de conflitos de forma violenta, por meio de mecanismos para- estatais (como justiceiros, gangues, chefes do tráfico, etc).

Passando ao conceito de Zaluar (1999),

Violência vem do latim violentia que remete a vis (força, vigor, emprego de força física ou os recursos do corpo para exercer sua força vital). Essa força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar o ato como violento, percepção essa que varia cultural e historicamente" (Zaluar, 1999, p.28).

É necessário considerar, ainda, que a violência é uma representação, ou seja, depende de percepções culturais e históricas, que mudam ao longo do tempo. Nesse sentido, alguns comportamentos não percebidos como violentos, por exemplo, há algumas décadas, podem hoje não ser mais admitidos. O mesmo ocorre com percepções divergentes sobre o que é considerado ou não violento entre diferentes culturas.

Levando em consideração o problema proposto neste estudo, o conceito adotado será o de violência como a adoção de mecanismos não-pacíficos para a resolução de controvérsias, ou seja, a proliferação das relações agressivas na sociedade, podendo resultar em crimes violentos (por exemplo, homicídios, tentativa de homicídio e lesão corporal). “Reações agressivas”, por sua vez, são entendidas como comportamentos dirigidos contra outrem com a intenção de lhe provocar danos físicos ou mal estar psicológico. Serão consideradas, ainda, apenas ações intencionais, o que exclui, por exemplo, acontecimentos acidentais.

Para aprimorar esta delimitação conceitual, é necessário estabelecer-se ainda a distinção entre violência e criminalidade. Em contraste com o conceito de violência já

explanado, a criminalidade pode ser entendida como o comportamento que transgride a legislação vigente e, dessa forma, é legalmente classificado como “crime”. Nesse sentido, o conceito de crime está diretamente relacionado ao arcabouço legal vigente em determinado país, podendo sofrer alterações de acordo com as modificações legislativas realizadas.

No tema estudado, o conceito de criminalidade deve também ser considerado, pois parte das reflexões referem-se à conformação ou desvio das instituições formais (leis) vigentes. No entanto, mais importante do que a criminalidade é o conceito de violência, pois o que se pretende destacar é a importância da adoção voluntária de mecanismos de resolução pacífica de conflitos – sejam estes formais ou informais -, contribuindo para evitar a opção pela violência como forma de resolução de controvérsias.

Por fim, especialmente relevante para este estudo é o conceito de conflito. O conflito não deve ser percebido apenas de forma negativa, pois a existência de desacordos, divergências e, conseqüentemente, de conflitos, pode fazer parte de qualquer interação nas mais variadas esferas da vida humana22. Dessa forma, o problema central passa a ser a forma como estes conflitos são administrados.

As sociedades podem estabelecer as mais distintas formas de administração de seus conflitos, sendo o sistema de justiça o mecanismo estabelecido pelo Estado para este fim. Paralelamente ao sistema formal, podem existir uma série de mecanismos que incluem desde as iniciativas de mediação comunitária até a administração realizada por grupos do crime organizado. Contudo, nem todos os mecanismos estabelecidos contribuem sempre para a administração pacífica de conflitos.

O ponto principal então é como estimular a criação de uma cultura de administração pacífica de conflitos nas comunidades23. Este processo pode contar com dois eixos complementares: o fortalecimento da justiça formal, aumentando a confiança da

22 Nesse sentido, vide Simmel (1969). 23 Vide Elias (1994).

sociedade neste mecanismo estatal e a criação de mecanismos de administração alternativa de conflitos legítimos perante a comunidade, que funcionem dentro da legalidade e complementem o esforço de administração de conflitos realizado pela justiça formal. A reflexão sobre as possíveis formas de configuração deste segundo eixo está diretamente relacionada ao objeto deste estudo.