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Violência Física: educa-se através da violência?

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES:

2.2 Violência Física: educa-se através da violência?

A preocupação com a VDCA iniciou-se em 1874, nos EUA, quando foi notificado que uma criança sob os cuidados da madrasta, foi vitimizada fisicamente e negligenciada. Como na época não havia nenhum serviço de atenção à criança, ela foi protegida pela Sociedade Norte Americana para Prevenir a Crueldade contra os animais, com base na ideia de que ela fazia parte do reino animal.

A partir do século XIX, surgiram alguns textos médicos, como os de Tardieu (1860 – França), que tratava da violência praticada contra crianças. Nos EUA, Caffey (1946) e Silverman (1953), também publicaram observações de crianças vítimas de lesões causadas

por traumatismos provocados por ações ou omissões susceptíveis de serem classificadas como violência.

A violência física foi ‘redescoberta’ no século XX, na década de 1960, nos Estados Unidos, a partir de trabalho realizado pelos Drs. Silverman e Kempe, que apresentaram 749 (setecentos e quarenta e nove) casos com 78 (setenta e oito) mortes, de crianças vítimas de violência física, por eles denominada como Síndrome da Criança Espancada.

Silverman e Kempe definem que a referida síndrome acontece com frequência em crianças menores de 03 (três) anos, acometidas de sequelas provenientes de hematomas subdurais. Os médicos apresentaram, em seu trabalho, os elementos clínicos e radiológicos a serem observados para identificação da referida síndrome e orientaram quanto à questão da explicação dos pais para os ferimentos serem diferentes do definido pelo diagnóstico clínico. Já naquela época, eles apontaram a resistência da classe médica em identificar e trabalhar com o referido fenômeno.

A Síndrome da Criança Espancada foi reconhecida pela Academia Americana de Pediatria e esta descoberta gerou um grande avanço em relação à violência contra crianças e adolescentes, praticada por familiares. Após os anos 60, a área da saúde iniciou sua preocupação com a VDCA, sobretudo a Pediatria, que passou a considerá-la um problema de saúde pública.

Guerra (2011) coloca que, após os estudos realizados por Silverman e Kempe, os médicos tentaram assumir a supremacia do conhecimento sobre o referido fenômeno e a violência física passou a ter uma conotação de doença psicopatológica, na qual os pais eram considerados portadores de doença mental. Com esta forma de abordagem, a violência era tratada como um problema individual e os pais passaram a ser ‘educados’ para poderem cuidar de seus filhos.

Outros estudos, realizados também por profissionais da classe médica, apontaram para a responsabilidade do médico como único profissional capaz de identificar a vitimização, tornando o fenômeno medicalizado.

A partir dos trabalhos realizados, ainda na década de 1960, os estados americanos criaram uma legislação objetivando a realização de notificações de situações de violência doméstica aos serviços de proteção infantil. Com esta medida, aumentou o número de casos denunciados e os serviços existentes não deram conta da demanda, visto que a metodologia adotada, de enquadramento da violência como um problema individual dos pais, não considerava a VDCA como um fenômeno multifatorial, familiar e cíclico, que necessitava de ações que integrassem todos os membros do grupo familiar, através de atendimento

interdisciplinar e intersetorial. Esta visão incompleta do referido fenômeno, impossibilitava os profissionais de chegarem a bons resultados. Além disso, não havia serviços suficientes; estes eram muito caros; os profissionais não estavam capacitados e o rompimento do ciclo violento não era alcançado.

No início da década de 1970, a sociedade civil e os próprios pais começaram a criar serviços para atendimento da referida problemática. Desaparece a hegemonia médica sobre o fenômeno e profissionais de outras áreas (Educação, Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas) passaram a contribuir para o enfrentamento do violência doméstica. Surgem novas modalidades de atendimento, iniciam-se trabalhos preventivos e grupos de autoajuda, objetivando o cuidado com as vítimas e também com os próprios agressores.

Em seus estudos, Guerra (2011) conclui que a violência doméstica sempre esteve presente de forma endêmica nos Estados Unidos e que a violência física é resultado de sociedades que incorporam a força física como método de educação e poder sobre as crianças e os adolescentes.

No Brasil, a VDCA é uma problemática existente desde a colonização, visto que os jesuítas, buscando ‘civilizar e catequizar’ os índios introduziram a violência física e a psicológica como forma de discipliná-los e educá-los. Antes da chegada dos mesmos, a população nativa não estabelecia uma relação violenta com suas crianças e adolescentes, mas sim de cuidado, de proteção e educação, de acordo com seus costumes.

Em nossa sociedade, esse problema (VDCA) também é antigo, instalando-se desde o tempo da Colônia. Quando o colonizador aqui chegou, ele encontrou uma população nativa vivendo de modo absolutamente diferente do seu, e que não aplicava castigos físicos em suas crianças nem abusava delas, mas estabelecia uma relação de acolhimento e proteção (SILVA, 2002, p. 28).

As famílias brasileiras que se formaram a partir da colonização, eram marcadas por características regionais, mas, em geral, mantinham-se patriarcais, em que o homem dominava a mulher, os filhos e os escravos. As relações familiares estabeleciam-se com rigorosa e violenta disciplina, aprovada pela Igreja Católica na época e os castigos físicos eram uma ‘marca’ frequente em todos os membros do grupo familiar e agregados.

O uso da VDCA nas famílias brasileiras iniciou-se na colonização, mas faz parte da trajetória de nosso país, inclusive nos dias atuais.

A preocupação com a vitimização de crianças e adolescentes em seus lares, no Brasil, no campo científico, surge, primeiramente, com a publicação de trabalhos, por médicos, na década de 1970.

Na década de 1980, publica-se o primeiro livro específico sobre a temática: “Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas”, escrito pela Dra. Viviane Nogueira de Azevedo Guerra (SILVA, 2002).

Também, nessa mesma década, inicia-se uma ampla luta questionando a Política Nacional de Bem Estar do Menor e o Código de Menores. Ampliam-se as denúncias quanto à grave situação de violação de direitos vivenciada por crianças e adolescentes em nosso país. O conjunto dessa movimentação possibilita toda uma mobilização nacional para garantia dos direitos da infância e da adolescência, que culmina na inclusão destes direitos na Constituição Federal de 1988. Em seu artigo 227, ela responsabiliza a família, a sociedade e o Estado, quanto a garantir, com absoluta prioridade, à criança e ao adolescente, seus direitos e toda a sua segurança.

Objetivando modificar o previsto no Código de Menores de 1979 e assegurar o previsto na Constituição, após ampla mobilização da sociedade civil e das entidades de atendimento à criança e ao adolescente, governamentais e não governamentais, temos em 1990, a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O ECA prevê um sistema de garantia de direitos, com atores estratégicos capazes de atuar sobre casos de vulnerabilidade, de modo a inspirar a sua notificação à sociedade e a criação de políticas de atendimento e de prevenção à VDCA (ABTH, 2003).

A partir das fontes bibliográficas levantadas, dos dados estatísticos examinados acerca da presença da violência em diferentes tempos e sociedades, e ainda do relato das situações de violência vividas por famílias que foram encaminhadas para o PAEFI/CREAS, podemos perceber que a violência física sempre foi utilizada como pretexto para educar crianças e adolescentes. Tanto internacional como nacionalmente, o uso da punição corporal como método de educação é milenar e foi, inclusive, citado em provérbios bíblicos.

Essa cultura milenar favorece o poder do adulto sobre a criança e o adolescente, transformando-os em ‘coisas’ destituídas de necessidades, desejos e direitos essenciais e tornando-os depositários dos desejos, expectativas e paixões dos adultos (MATTOS, 2002, p. 126).

Segundo dados do UNICEF (2005), em países como Canadá, EUA, Coréia e Iêmen, mais de 84% (oitenta e quatro) dos pais e responsáveis são favoráveis ao uso de violência física para educar.

No Brasil, em enquete realizada em 2012, pelo site da Revista CRESCER3, com 2260 (dois mil duzentos e sessenta) pais ou responsáveis, 560 (quinhentas e sessenta) pessoas, ou seja, 25 % (vinte e cinco) da amostra, confirmaram que fazem uso de violência física, considerando-a como forma de educação. Outras 968 (novecentas e sessenta e oito), 42%, (quarente e dois), disseram que batem, porque de vez em quando ‘perdem a cabeça’. No restante, 327 (trezentas e vinte e sete), ou seja, 15% (quinze) negaram o uso de violência física, mas deixaram aberta a possibilidade dizendo ‘não, mas se precisar, faço isso’ e 405 (quatrocentas e cinco), 18% (dezoito) disseram que não acreditam nisso como forma de educação.

Em estudos realizados por WEBER et al. (2004) e PASCOLAT et al. (2001), com 472 (quatrocentos e setenta e duas) crianças e adolescentes, com idade entre 08 (oito) e 16 (dezesseis) anos, no sul do Brasil, identificou-se que 67% (sessenta e sete) do público alvo avaliado foi vítima de violência física, sendo que, na maioria das vezes, o agressor foi a mãe. Os objetos mais utilizados foram a mão, o cinto e o chinelo. Quanto ao motivo alegado pelos pais, para a prática de tal modalidade de violência, na maioria das vezes, foi a necessidade de colocação de limites. Das agressões perpetradas, 38% (trinta e oito) das crianças e adolescentes apresentaram hematomas e a grande maioria das vítimas não foi encaminhada para avaliação médica. Das crianças e adolescentes vitimizados, 16% (dezesseis) foram afastados do convívio familiar como medida protetiva.

Os dados revelam que a punição corporal contra crianças e adolescentes é utilizada com muita frequência, mas o que não é considerado são as consequências que ela ocasiona ao desenvolvimento biopsicossocial de seu público alvo, que vão desde orgânicas até psicológicas, conforme já descrito em item anterior. Infelizmente, ela é aceita culturalmente como forma de educação e de colocação de limites, não considerando que se trata de uma relação pedagógica que reforça a desigualdade de poder adulto – criança, em que os direitos das crianças e adolescentes, enquanto seres em condição peculiar de desenvolvimento, são desconsiderados.

A violência inerente às relações interpessoais adulto-criança... tem como referência fundamental o abuso de poder do adulto em relação às crianças e aos adolescentes, violando os direitos essenciais desta mesma infância e adolescência, constituindo-se numa negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança. A família é sua ecologia privilegiada, revestindo-se quase sempre de um caráter sigiloso porque ocorre na esfera do privado (GUERRA, 2011, p. 150).

Decidimos aprofundar essa modalidade de VDCA neste estudo, apresentando no seu último capítulo, o relato da pesquisa referente ao perfil das famílias atendidas pelo PAEFI, em São João da Boa Vista – SP que praticam esta modalidade de violência. Foi feito esse destaque por constatar que ela tem total aceitação social, sendo considerada uma alternativa para a criação dos filhos: ‘ou eu ensino batendo ou ele não vai virar gente’.

Essa afirmação é bastante compatível com a observação de WEBER et al. (2004, p. 227), que coloca que “a vinculação da punição corporal com a disciplina vem sendo transmitida ao longo de muitas gerações como verdades inquestionáveis, consideradas modelos a serem seguidos pelos pais na educação de seus filhos” (WEBER et al., 2004, p. 227).

Os pais que praticam violência física, em sua maioria, assumem este prática com a justificativa de que estão educando, não considerando que educar é fornecer alternativas e ser coerente na ação e no discurso.

Quando fazemos uso da violência física para educar, estamos afirmando um modelo em que “a punição corporal treina a criança para aceitar a tolerar a violência na medida em que tal ato feito pelos adultos destina-se a ensinar obediência e submissão” (AZEVEDO e GUERRA, 2006, p. 20).

A punição corporal oprime e é coercitiva, ela ensina crianças e adolescentes a se relacionarem a partir da violência e a se utilizar desta para resolução de conflitos. Tal mecanismo perpetua o ciclo perverso da violência, onde quem é vítima hoje pode tornar-se um agressor no futuro. Os pais que agridem hoje, com certeza foram agredidos e vitimizados em sua infância (AZEVEDO e GUERRA, 2006).

A maioria desses pais... têm em sua história pessoal... a experiência de terem sido educados com violência. Portanto, não tiveram sucesso no desenvolvimento da empatia e na aprendizagem do autocontrole necessários a uma educação não violenta e perpetuarão esse modelo relacional (MATTOS, 2002, p. 129).

A exposição de crianças e adolescentes à vitimização por violência física, além de ser vista como um direito dos pais abarca o caráter transgeracional da violência e reveste-se, muitas vezes, infelizmente, do sigilo que ‘protege’ a sua ocorrência (GUERRA, 2011).

Como as outras modalidades de VDCA, as situações que são notificadas ao Sistema de Garantia de Direitos (SGD - formado pelas Delegacias, Conselhos Tutelares, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Centros de Defesa), não atingem nem o mínimo das situações que acontecem cotidianamente em nosso país.

Precisamos modificar nossa cultura que ensina disciplina a partir da violência.

Os pais precisam aprender que colocar limites é possibilitar que a criança e o adolescente reflitam sobre seu comportamento e os sentimentos dos outros, mas, para que isso aconteça, eles também deverão ter direito de sentir, pensar, desejar e expressar-se (MATTOS, 2002).

Educar é estar junto, é acolher, é dialogar, é ensinar com carinho, considerando a condição peculiar da infância e da adolescência. Os pais têm direito de proteger, de cuidar, de fortalecer, de possibilitar o desenvolvimento de crianças e adolescentes, mas de maneira saudável e pacífica, através da colocação de regras e de limites, construídos em conjunto, por toda a família.

Disciplina não é um sinônimo para punição e muito menos para punição corporal. Disciplinar é ajudar uma criança a desenvolver seu autocontrole, estabelecer limites, ensinar comportamentos adequados e corrigir os inadequados. Disciplinar também envolve encorajar a criança, ajudá-la a desenvolver a sua autoestima e sua autonomia, ou seja, prepará-la para enfrentar o mundo sem que precise emitir comportamentos simplesmente para evitar as punições e aprender que a coerção é uma solução inaceitável para a resolução de problemas (WEBER et al., 2004, p. 235).

Para que essa mudança se efetive, os pais precisam: aprender a diferença entre educar e agredir fisicamente; serem questionados quanto ao uso da punição física e terem acesso a outras alternativas que possibilitem às crianças e adolescente aprenderem a pensar e, também, serem orientados, apoiados e inseridos em serviços que os auxiliem nessa modificação necessária (MATTOS, 2002).

Considerando que muitas crianças e adolescentes, como os dados comprovam, continuam sendo vítimas de violência física e de outras modalidades de VDCA, em nosso país, e da necessidade dos pais serem orientados e também cuidados, tratamos, na sequência, da questão da intervenção em situações de vitimização. Tal possibilidade se faz extremamente necessária, objetivando o rompimento do ciclo perverso da violência e o estabelecimento de novas formas de relacionamento, entre pais e filhos, de forma pacífica, cuidadora e amorosa.