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Visão geral da política externa brasileira

PARTE II A POLÍTICA EXTERNA E O REGIONALISMO DAS POTÊNCIAS REGIONAIS

5 BRASÍLIA E ANCARA: JUSTIFICANDO A ESCOLHA DOS CASOS

6.1.2 Visão geral da política externa brasileira

6.1.2.1 Independência e Império

Apesar dos países latino-americanos terem a experiência colonial em comum, as singularidades da colonização portuguesa e espanhola, somadas a fatores próprios dos territórios, acarretaram singularidades a cada colônia. Um dos fatores que mais diferenciou o caso brasileiro foi a vinda da família real portuguesa em 1808 em fuga da invasão napoleônica. O translado da corte e todo o aparato administrativo para o Rio de Janeiro tornou a cidade o

73 É importante acrescentar que fatores históricos, culturais, linguísticos e relacionados à dependência externa também diferenciam substancialmente o Caribe da América Latina continental, fazendo com que aquele, em diversas oportunidades, se identificasse mais com África e Ásia (MONTOUTE, 2014)

centro do império lusitano por quase duas décadas, dotando-a de um aparato burocrático que permaneceu no território mesmo após o regresso do monarca a Europa (CHEIBUB, 1985). Para Gisela Pereyra-Doval (2013), o estabelecimento da corte também inseriu na sociedade brasileira uma nova elite cujos interesses demandavam um Brasil mais autônomo.

A independência brasileira foi peculiar, não apenas no processo, mas também no seu produto final. Para as colônias ao redor, as guerras de independência da Espanha foram seguidas de instabilidade política e fragmentação territorial. O Brasil, em contrapartida, manteve-se relativamente estável e preservou a unidade da sua imensa superfície.74 Ademais, enquanto o restante do continente elegia presidentes, o Brasil coroava um soberano.75

Diferentemente de seus vizinhos hispânicos, o Brasil tornou-se independente sem a figura de libertadores e sem uma ruptura violenta com o Velho Continente. Como argumenta Luís Cláudio Santos (2014, p. 25–26), embora economicamente todas as ex-colônias seguissem vinculadas a Europa, por serem exportadoras de produtos primários, no plano político e simbólico elas demonstraram sua cisão com o passado colonial, entronizando a forma republicana de governo como a apropriada para o Novo Mundo. Já o Brasil buscou, ao invés da quebra, a continuidade do modelo europeu, entendendo-se como essencialmente distinto de (leia-se, mais civilizado que) seus turbuluentos vizinhos.

Assim, o país passou a maior parte do século XIX alheio ao seu entorno. O estranhamento era recíproco. O restante da América Latina também suspeitava das intenções do império ao lado e da sua afinidade com as metrópoles coloniais (PEREYRA-DOVAL; ROMERO, 2013). Normativamente, um monarca coroado era um corpo estranho e anacrônico em uma América republicana. Simon Bolívar foi claro quanto a essa aversão.76 Bolívar entendia

que o Brasil possuía um caráter fundamentalmente diferente dos demais países da região e, principalmente, temia suas ambições expansionistas sobre o Rio do Prata (BETHELL, 2009, p. 294–295). Thiago Galvão (2009) afirma que as repúblicas hispânicas se definiam à época face a três alteridades, representado graus variáveis de ameaça: a Península Ibérica, ameaçadora por

74 A unidade e vastidão do território brasileiro subjazem uma ideia de “grandeza” que é profundamente influente na identidade internacional do país (CORRÊA, 2000; MESQUITA, 2016c; ROUQUIÉ, 2006)

75 O binômio da unidade territorial e preservação do padrão dinástico têm motivado diferentes interpretações sobre a excepcionalidade brasileira. Celso Lafer (2009) acredita que a monarquia foi instrumental na manutenção territorial brasileira, dada sua forte centralização administrativa. Outro motivo apontado pela literatura é a maior homogeneidade das elites. Enquanto que as colônias hispânicas possuíam universidades em seu território desde o século XVI, fermentando assim uma vida intelectual autônoma em cada localidade e baixo contato entre as elites hispano-americanas, as elites dirigentes brasileiras todas iam a Coimbra para sua educação, formando um grupo mais coeso (PEREYRA-DOVAL, 2013, p. 54; ROUQUIÉ, 2006).

76 Na sua primeira ideia de uma federação continental, exposta em uma correspondência de 1815, Bolívar visualizava somente as repúblicas hispânicas como participantes (GARDINI, 2011). Em 1826, somente Brasil, EUA e Haiti não foram convidados para tomar parte no Congresso do Panamá.

poder arquitetar planos de re-colonização; a América do Norte, por seus arroubos expansionistas e o Império luso-brasileiro, pela incerteza que despertava.77

6.1.2.2 Primeira República

A atitude de suspeita começou a ser revertida com a instauração da República no Brasil. A reorientação americanista é bem representada pelos legados dos diplomatas Joaquim Nabuco e, principalmente, pelo Barão de Rio Branco. Data deste período a proposta de uma espécie de

entente entre as principais economias da região, Argentina, Brasil e Chile (ABC), que não teve,

contudo, continuidade importante (BUENO; RAMANZINI JÚNIOR; VIGEVANI, 2014, p. 555). Neste momento, o Brasil buscou engajar-se positivamente com seus vizinhos, acompanhando também a migração do seu interesse estratégico da Europa para os EUA. Santos (2010) argumenta que o americanismo significou não propriamente uma identificação com os Estados latino-americanos, mas sobretudo uma aceitação da liderança dos EUA do continente78 ou ainda, como dirá Lafer (2009), uma reação à concorrência imposta pelo florescimento do “destino manifesto” de Washington.79

A busca por proeminência abaixo do equador, contudo, foi infrutífera. Um caso notório foi a recusa dos demais países sul-americanos em apoiarem a candidatura brasileira a um assento permanente na recém-criada Liga das Nações em 1920 como representante da região. O evento revelou a grande “distância cognitiva” entre o Brasil e seus vizinhos no que tange o papel que aquele deveria desempenhar regionalmente (SANTOS, 2005, p. 8).

6.1.2.3 Pós-Segunda Guerra

O período pós-Segunda Guerra consagrou a hegemonia dos EUA na América Latina e sua preponderância em escala global. Assim, a nova arquitetura institucional encabeçada pela

77 Esse distanciamento, todavia, não deve ser considerado indelével: já em 1844 o intelectual e político argentino Juan Bautista Alberdi propunha a criação de uma União Latino Americana que, embora preservasse o caráter anti- EUA, já incluía o Brasil (GARDINI, 2011).

78 O autor afirma que um dos legados do Barão de Rio Branco foi a busca “de uma parceria privilegiada com os Estados Unidos, uma posição de intermediário entre o gigante do Norte e os demais países latino-americanos. Criava-se a ideia, cuja ressonância persiste até hoje, de que o Brasil estaria em posição privilegiada para representar os interesses de seus vizinhos (até a despeito da anuência destes) no contexto continental ou mesmo no âmbito mundial (como foi o caso da Liga das Nações). A nova identidade americana não se confundia com uma identificação plena com os países latino-americanos” (SANTOS, 2010, p. 190)

79 Ironicamente, o americanismo brasileiro por vezes o colocava em posição solitária entre seus pares hispânicos: o Brasil rejeitou a doutrina Drago proposta pela Argentina e foi o único país sul-americano a declarar guerra ao Império Alemão na Primeira Guerra (ROUQUIÉ, 2006; SANTOS, 2010).

ONU previu um local específico para arranjos regionais que floresceriam no continente nos próximos anos: o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR criado em 1947) e a Organização de Estados Americanos (OEA, criada em 1948) (BUENO; RAMANZINI JÚNIOR; VIGEVANI, 2014).

Ao final dos anos 1950, as expectativas brasileiras quanto à sua região e ao seu hegemon mostravam sinais de desgaste. Apesar de tentativas brasileiras de engajar os EUA na região – a exemplo da Operação Pan Americana idealizada por Juscelino Kubistchek –, a continuada indiferença de Washington somada a uma complexificação da economia e dos interesses brasileiros levaram o país a reconsiderar os benefícios de aguardar uma relação privilegiada com a Casa Branca. O paradigma universalista passou a reger o Itamaraty, tomando forma na chamada Política Externa Independente. Com o regime militar, a PEB voltará a um alinhamento ao Norte. Não obstante, a reorientação não se mantém automaticamente e o Brasil demonstrará, ao longo dos anos, um comportamento pendular, tentando preservar sua autonomia tanto quanto lhe permitissem suas capacidades materiais (AMORIM NETO, 2012).

O início do experimento da Comunidade Econômica Europeia (CEE) nos anos 1950 também influenciou a prática do regionalismo mundo afora. Araujo & Ferrari Filho (2015) argumentam que, parte por desejo de emulá-la, parte por receio de que a CEE reduzisse o acesso aos mercados europeus, os países latino-americanos se sentiram impelidos a lançarem sua própria iniciativa de um mercado comum. Assim, em 1960 é criada a Associação Latino- Americana de Livre Comércio (ALALC) por meio do Tratado de Montevidéu, envolvendo Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, perseguindo o mesmo objetivo de redução tarifária. A dificuldade em implementar em ritmo uniforme tais ajustes em um conjunto tão heterogêneo de economias, bem como a necessidade do protecionismo para várias delas, levou o projeto a uma paralisia prematura (ARAUJO; FERRARI FILHO, 2015, p. 117; SOMBRA SARAIVA, 1995).

Diante do congelamento da ALALC, esta foi suplantada pela Associação Latino- Americana de Integração (ALADI) em 1980. Ela também foi impedida de ter resultados mais concretos por conta da crise de endividamento que assolou a maior parte dos países da região nos anos 1980. Ademais, na década seguinte, as grandes economias da região priorizaram rumos alternativos: Brasil e Argentina: Mercado Comum do Sul (Mercosul); México: o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA); e Chile: estratégia de acordos bilaterais (ARAUJO; FERRARI FILHO, 2015).

6.1.2.4 Pós-Guerra Fria e redemocratização

A região ganha muito mais saliência na identidade e política externa do Brasil com a redemocratização. O lançamento do Mercosul no início dos anos 1990 marcou um grau inédito de interesse brasileiro pela América do Sul e desejo de integrá-la. É bem documentada na literatura a centralidade do tandem Brasil-Argentina na criação do bloco, bem como a trajetória de entendimentos bilaterais que desarmaram os receios de confronto entre os países e abriram o caminho para a integração.80 A formação do bloco não pode ser reduzida às ambições brasileiras apenas, sendo antes o produto de várias forças convergentes que sincronizaram as preferências de outros países sul-americanos também, como a redemocratização e globalização.81

O chamado regionalismo aberto experimentado na região ao longo da década proveu uma nova plataforma para a inserção das economias sul-americanas na economia mundial. Todavia, não se traduziu em um grau superior de união, com níveis maiores de supranacionalidade, dado o apego de cada membro à manutenção de sua autonomia.

A partir dos anos 2000, a vitória de vários candidatos de esquerda na região impacta também o formato do regionalismo. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi o principal exemplar de uma onda de regionalismo “pós-liberal” que privilegiou a cooperação política muito mais que a integração econômica (SANAHUJA, 2012; TUSSIE, 2016). A iniciativa preserva traços característicos do regionalismo sul-americano, como o intergovernamentalismo e o minimalismo institucional, mas inova ao expandir a agenda de cooperação para temas além do comércio (BRAGATTI; SOUZA, 2016). Ao alargar o palco

80 Alguns dos principais episódios de aproximação anteriores ao Tratado de Assunção de 1991 incluem (1) o acordo trilateral (Argentina, Brasil e Paraguai) sobre uso das águas do Paraná em 1979, que solucionou a controvérsia em torno da barragem de Itaipú; (2) o apoio brasileiro à posição argentina no tocante às Malvinas em 1982; (3) a Declaração de Iguaçu de 1985, assinada pelos presidentes Sarney e Alfonsín, focando a consolidação do processo democrático nos países e a defesa de posições comuns em organismos internacionais; (4) o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), de julho 1986, voltado à integração econômica setorial; (5) o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento de novembro de 1988, que estabelecia um prazo de dez anos para a formação de um espaço econômico comum, prazo que é encurtado em cinco anos com o Ato de Buenos Aires de 1989 (BUENO; RAMANZINI JÚNIOR; VIGEVANI, 2014, p. 574; LAFER, 1997; MEDEIROS, 2000). 81 Sobre a importância da redemocratização para o regionalismo, Battaglino (2012, p.145-6) afirma que “[t]he challenges faced by new democracies in Argentina (1983) and in Brazil (1985) contributed to creating a sense of common vulnerability, especially in regard to the power of the armed forces [. . .] Both countries used to maintain reciprocal conflict hypothesis by the mid-1980s, which was seen by the newly-democratic authorities as a source of domestic and economic power for the military. In this sense, the deepening of economic, political, and military relations were perceived by the democratic leaders as a strategy to reduce military power and assert civilian control.” De fato, um dos primeiros marcos da aproximação entre Brasil e Argentina, a Declaração Conjunta Argentino-Brasileira sobre Política Nuclear de 1985, previa que ambos os países empreenderiam esforços para criação de uma comunidade de segurança e que a energia nuclear só seria usada para fins pacíficos. Esse gesto tornou obsoleto a hipótese de conflito frequentemente evocada pelos regimes militares em suas doutrinas de segurança nacional (DABÈNE, 2009, p. 74).

para a cooperação regional, a Unasul propiciou ao Brasil um momento de exercício mais explícito de liderança. Todavia, a região encontrava-se mais dividida que na década anterior, com alguns países privilegiando um regionalismo voltado para dentro (Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai e Venezuela) e outros para fora, isto é, mais interessado em diálogo com parceiros extrarregionais (Chile, Colômbia e Peru).

6.2 O BRASIL COMO POTÊNCIA REGIONAL: CARACTERÍSTICAS

CONSTITUTIVAS

6.2.1 Pertencimento

Em termos puramente físicos, o pertencimento brasileiro à América do Sul é um fato incontornável. O “Gigante do Cone Sul” ocupa 48% do território da região e é o lar de cerca de 49% de toda sua população. Para além de indicadores geográficos, todavia, a filiação brasileira ao seu entorno depende também de fatores históricos e políticos. Como a contextualização anterior deixa evidente, o Brasil teve uma experiência singular. Primeiramente, por sua trajetória sui generis de independência, modelo de autoridade política e por sua singularidade histórico-cultural na região. Ademais, o país passou no início do século XX de um estado de indiferença quanto à América do Sul para um desejo de proeminência na mesma.

6.2.1.1 Da América Latina à do Sul

Em especial, merece atenção o papel ativo do Brasil em delinear ele próprio a região à qual ambiciona pertencer. Na Constituição de 1988, lê-se no Art. 4º, parágrafo único, que o Brasil “buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações” (BRASIL, 1988, grifo meu). Todavia, ao longo da década seguinte, se verá um progressivo deslizamento para uma outra América: a “do Sul”. Diversos autores localizam no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) o início deste movimento, embora precedentes possam ser identificados antes. Já em 1993, durante a VII Cúpula Presidencial do Grupo do Rio, Itamar Franco propôs de criação de uma Área de Livre Comércio Sul‑Americana (ALCSA) (MEDEIROS, 2000). Todavia, a iniciativa teve pouca repercussão. Uma expressão mais concreta da delineação do espaço sul-americano se observará em 2000, com a primeira Reunião de Presidentes da América do Sul (SANTOS, 2014). Observa-se a partir de então uma delimitação do raio da política

externa brasileira em direção a esse “espaço geopolítico autoevidente, distinto da ideia mais difusa de América Latina”(FLEMES, 2010b, p. 100, tradução minha) 82,83.

Embora a literatura não seja unívoca em elencar as motivações para tal reorientação, a preocupação em excluir o México – única grande economia latino-americana concorrente – é apontada como uma das principais causas (LAZAROU; LUCIANO, 2015). Santos (2014) argumenta que no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o horizonte latino-americano ainda era mais saliente entre os governantes brasileiros. Todavia, a agregação do México ao circuito norte-americano através do NAFTA significou uma ruptura na ideia de unidade latino- americana há muito presente da região. Diante da fratura no conceito de América Latina (já que agora um dos principais atores dessa constelação se identificava como América do Norte), houve espaço conceitual para proposição de um novo compacto geográfico: a América do Sul.

A exclusão pode ter sido uma reação tanto defensiva quanto retaliativa. Segundo a primeira interpretação, o Brasil teria promoveu esse rótulo em lugar de América Latina como “estratégia de marketing” para não afugentar investidores do mercado financeiro, que estavam preocupados com a crise mexicana e a confiabilidade dos mercados “latinos” (SPEKTOR, 2010b). A ótica retaliativa, em contraste, afirma que o Brasil buscou excluir o México por acreditar que este havia violado as regras da ALADI ao aderir ao NAFTA sem consulta prévia ao órgão (ROCHA, 2017). Em conferência de 1997, Lafer afirmava que o NAFTA tinha claramente suprimido o que antes se chamava de subsistema latino-americano por um sul- americano e que o peso desproporcional dos EUA no continente era um desafio para a funcionalidade econômica e política de projetos sub-regionais (LAFER, 1997, p. 259). Outros autores próximos ao discurso oficial do MRE, como Sérgio Danese (2009, p. 90), evitam quaisquer diagnósticos contenciosos, afirmando que a sul-americanização da PEB “nada tem de excludente” e que se algum ator foi deixado de fora seria antes por força da geografia que por intento do Itamaraty.

Tendo o Brasil atuado no sentido de construir esse espaço geopolítico autônomo, a questão subsequente é se o conceito de América do Sul ganhou circulação e aceitação entre os atores concernidos. Sendo identidades intersubjetivas, sua validade depende da sua apropriação pelos membros dentro e fora do grupo sul-americano (HOPF, 1998; WENDT, 1994).

Uma das principais deficiências do Brasil enquanto region shaper é sua matriz lusófona, que o situa como um outsider em meio aos seus vizinhos hispânicos (GALVÃO, 2009; MEDEIROS; DRI, 2013). Mesquita (2016a) argumenta que a excentricidade cultural, somada

82 No original: “self-evident geopolitical space distinct from the more diffuse idea of Latin America” 83 Cf. Galvão (2009, p. 69)

à dificuldade que o Brasil tem em mobilizar uma retórica anti-imperialista (dada sua própria dominância regional), tem sido um dos limitadores no esforço brasileiro em dar à identidade coletiva da América do Sul a mesma densidade e aceitação que a latino-americana.

Quão saliente, no entanto, realmente é a identidade sul-americana? A literatura de PEB e RI tem buscado responder empiricamente essa questão em tempos recentes. Concentro-me em dois tipos de análise que vêm tratando do tema: análises de discurso/conteúdo e pesquisas de opinião. Mesquita & Medeiros (2016) analisam 36 discursos oficiais do governo acerca da PEB e encontram componentes que atrelam a identidade do Brasil emergente ora ao Sul Global, ora à região. Embora ambas vertentes sejam importantes, a primeira é mais saliente na caracterização do lugar do Brasil no mundo. Felipe Rocha (2017) aplica análise de conteúdo a 6.523 discursos entre 1995 e 2014, comparando a frequência do uso dos termos América “Latina” e “do Sul”. Seus resultados mostram que a noção de América do Sul foi predominante, principalmente entre 1999 e 2000, e ao longo dos anos 2000. Ou seja, desde o segundo mandato de FHC, já se falava menos no espaço “latino”. Todavia, isso foi muito mais pronunciado na gestão de Lula, que se referiu à América “do Sul” quase três vezes mais que à “Latina”.

Para além dos discursos brasileiros, estudos comparando o emprego do vocábulo pelo conjunto de Estados da região também têm revelado em que medida o conceito é intersubjetivamente compartilhado. Meunier & Medeiros (2013) perscrutam documentos oficiais da Unasul e discursos proferidos pelos chefes de Estado e ministros das relações exteriores dos países membros quando das cúpulas do órgão. Eles argumentam que o tipo de argumento identitário associado à ideia de América do Sul (cívico ou exclusivista) bem como o tipo de relação prescrita para os EUA polarizam a região entre países como Chile, Paraguai, Uruguai e Peru, de um lado, e Venezuela e Equador, de outro

Jenne, Schenoni & Urdinez (2017) analisam discursos proferidos por chefes de Estado latino-americanos na AGNU entre 1994 e 2014 comparando a frequência das alusões à América “do Sul”, “Central”, ou “Latina”.84 Para todos os países, predominam as menções à América

Latina. O Brasil, contudo, tem usado o conceito cada vez menos ao longo do tempo e, em termos relativos, é o país que mais alude à América do Sul, seguido (de longe) por Peru, Argentina e Bolívia. A distância demonstra claramente o esforço brasileiro em promover o vernáculo. Alguns vizinhos fizeram poucas (Chile e Colômbia) ou nenhuma (México) alusão à América do Sul. Menções às instituições sul-americanas, como o Mercosul e Unasul, praticamente inexistem fora da sub-região. Ao longo dos 20 anos analisados, as menções à América do Sul

são estáveis, embora aumentem ligeiramente nos anos 2000. Na mesma época, a Unasul toma completamente o espaço simbólico do Mercosul, sendo praticamente a única instituição sul- americana lembrada nos discursos. Comparando o texto de agendas de cúpulas regionais, Dabène (2016, p. 40) também identifica que a Unasul, de 2008 em diante, tem ignorado a existência do Mercosul e da Comunidade Andina (CAN) em seus documentos.

Tais resultados demonstram que o conceito de América do Sul tem maior ancoragem intersubjetiva dentro da sub-região e não é claramente reconhecido fora dela. Eles confirmam também o pouco apego ao conceito da parte de países como Chile e Colômbia, para os quais vínculos extrarregionais são importantes.

Pesquisas de opinião são outra vertente de análise, cujo foco repousa principalmente nas percepções da população sobre regionness. Onuki, Mourón & Urdinez (2016), visitando os resultados da onda 2014/2015 da pesquisa The Americas and the World (TAW) para vários países latino-americanos,85 mostram que, enquanto que em média 43% dos respondentes se identificavam como latino-americanos, apenas 4% dos brasileiros o fez. Mesquita (2016a) utiliza dados do World Values Survey para mostrar que os brasileiros se sentem menos “latinos”