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7 Fotografia – Imagem/Percepção e arte

7.2 Percepções visuais e arte em Wittgenstein

7.2.1 Wittgenstein na fotografia de Jeff Wall

O teórico da fotografia Michael Fried utilizou esta mesma nota da coletânea Cultura e Valor de Wittgenstein para estudar a obra do fotógrafo Jeff Wall, um dos expoentes dos novos fotógrafos artísticos que trabalham com imagens em grande escala, cujos objetos fotografados, por vezes, representam cenas quotidianas, dividindo a nota em oito observações relacionadas à obra de Wall:

1. Na frase: “Nada há de mais extraordinário do que ver um homem, que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma atividade vulgar e muito simples” (WITTGENSTEIN, 2000, p.17). Fried considera como exemplo de seu conceito chave para

entender a fotografia de Jeff Wall, a anti teatralidade, descrita pelo autor como “a imagem de alguém absorto em sua ocupação e não prestando nenhuma atenção à, ou reagindo ao fato de estar sendo observado pelo espectador” (FRIED, 2010, p.45). O autor tomou como base deste conceito a crítica de Diderot à pintura e ao teatro naquilo que denominou teatralidade: “(...) uma consciência exagerada do espectador e uma implícita tomada deste como interlocutor.” (CONNOR, 2000, p.75). O contrário, para Diderot, seria a representação de um personagem inteiramente absorto em uma ação, sentimento ou estado de espírito, pelo fato de estar totalmente inconsciente de qualquer coisa além do objeto de sua absorção (FRIED, 2010, p. 40).

2. Wittgenstein, na frase citada acima descreve esta anti teatralidade de Fried como algo extraordinário, e complementa: “Estaríamos a observar algo mais admirável do que qualquer coisa que um dramaturgo pudesse arranjar para ser representado ou dito no palco: a própria vida.” (WITTGENSTEIN, 2000, p.17). Michael Fried considera esta frase como a base de outro conceito importante na obra do fotógrafo: o cotidiano (everyday) (FRIED, 2010, p. 77). As imagens de Wall são representações do cotidiano, pessoas comuns absortas (anti teatralidade) em seus atos rotineiros, no entanto, a execução de tais fotografias é fruto de um profundo estudo de cena, luz, pose e detalhes.

3. Quando o amigo Engelmann considera seus escritos como “obra de arte”, e Wittgenstein não compartilha desse ponto de vista, Fried considera tal fato como uma questão de posicionamento, de perspectiva. A pessoa representada na fotografia e o observador habitam diferentes mundos. Na verdade o fotógrafo cria seu mundo na imagem, como uma cena cotidiana e aparentemente desprovida de um propósito (FRIED, 2010, p. 77).

4. Wittgenstein faz uma distinção entre a representação da coisa individual (das einzelne) e a ausência de uma forma artística. (FRIED, 2010, p. 78)

5. Wittgenstein faz a distinção entre “[...] olhar algo sem preconceito [...]” e “[...] olhar algo com frieza [...]”; para Fried tal diferenciação seria mais uma questão ética e religiosa do que estética (FRIED, 2010, p. 78).

6. Fried ressalta o desprezo do filósofo pelas fotografias instantâneas, dando como exemplo a forma como Wall cria as suas imagens: levam dias, meses ou até anos para criar uma imagem. Aqui a fotografia é pensada em seus mínimos detalhes (FRIED, 2010, p. 79).

7. “Mas apenas o artista pode representar a coisa individual de modo que ela nos pareça como uma obra de arte.” Esta frase resume a afirmativa de Fried: apenas a obra de arte nos compele a ver na correta perspectiva – viver “a vida mesmo” - na forma de absorção, disponível para a contemplação estética por meio das imagens do fotógrafo Jeff Wall (FRIED, 2010, p. 80).

8. Por fim, “[...] contemplar o mundo de cima [...]”, como propõe Wittgenstein seria como uma intuição do que seria depois descrito nas Investigações Filosóficas como a representação perspícua (clara) (FRIED, 2010, p. 80).

Diante dessas oito observações, Fried exemplifica com a fotografia Morning Cleaning que Jeff Wall criou, em 1999, na Fundação Mies van der Rohe (Barcelona), na qual tudo foi detalhadamente estudado para parecer espontâneo, desde a pose do faxineiro até a hora do dia que incide a melhor luz.Criando uma imagem de grande definição ampliada em grande formato (187 X 351cm) exposta em uma caixa de luz:

Figura 18 Morning Cleaning, 1999, autor: Jeff Wall

Fonte: Disponível em: http://www.hasselbladfoundation.org/jeff-wall/

A fotografia de Jeff Wall sob a perspectiva da interpretação que Fried fez dos escritos de Wittgenstein demonstra o quanto uma cena, aparentemente prosaica, é, na verdade, uma construção elaborada e calculada de tal maneira que só um artista/fotógrafo pode fazer.

7.2.2 – A obra de arte entre Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger

Em seu ensaio “A origem da obra de arte”, escrito em 1935, Martin Heidegger propõe uma hermenêutica da obra de arte.

Heidegger diferencia “a coisa”, o utensílio, da obra de arte em termos de um desvelamento do sendo, naquilo que os gregos denominavam aletheia ou “a verdade do sento” (HEIDEGGER, 2010, p. 87). Como exemplo deste conceito cita a pintura de Van Gogh dos sapatos do camponês que, de utensílio passa a obra de arte pelas mãos do artista:

Na obra de arte, a verdade do sendo pôs-se em obra. Pôr diz aqui: trazer para o permanecer. “Um sendo, um par de sapatos de camponês, vem, para o permanecer na luz do seu ser, na obra. O ser do sendo vem para o constante do seu brilhar” (HEIDEGGER, 2010, §54, p.87).

Então a essência da arte seria esta: “O pôr-se em obra da verdade do sendo. Mas até agora a arte só tinha a ver com o belo e a beleza e não com a

verdade. [...] Mas Belas-artes não é a arte que é bela, mas se chama assim porque elas produzem o belo” (HEIDEGGER, 2010, §55, p.87).

Se para Heidegger a obra de arte é aletheia, um desvelamento do sendo ligado a uma noção singular de verdade, isto não significa que a obra de arte esteja relacionada com a reprodução do real: “Achamos que o quadro retira do real vigente uma cópia e a transforma em um produto da produção artística? De modo algum” (HEIDEGGER, 2010, §56 p.89).

O filósofo afirma que a obra de arte não é apenas uma reprodução: “Pois bem, na obra não se trata de uma reprodução de cada sendo singular existente. Muito pelo contrário, trata-se da reprodução da essência geral das coisas” (HEIDEGGER, 2010, §57, p.89).

Ao contrário de Wittgenstein que critica a busca por uma essência das coisas, Heidegger busca essa essência na noção de verdade: “A essência verdadeira de uma coisa se determina a partir do seu ser verdadeiro, a partir da verdade do respectivo sendo” (HEIDEGGER, 2010, §96, p.125).

A verdade como desvelamento, tirar o véu, encontra-se definido na palavra Aletheia: “Verdade significa essência do verdadeiro. Nós pensamos a partir da lembrança da palavra dos gregos. Aletheia significa o desvelamento do sendo” (HEIDEGGER, 2010, §97, p.127).

O exemplo de desvelamento do ser descrito por Heidegger é o quadro de Van Gogh Sapatos Velhos, pintado em 1886, que, assim como a foto de Wall, demonstram como algo prosaico pode ser visto como obra de arte. No entanto, Heidegger aborda com maior ênfase o fenômeno e pouco fala do papel do artista na relação objeto/obra de arte/Aletheia:

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No quadro de Van Gogh acontece a verdade. Isso não significa que aqui algo existente tendo sido reproduzido corretamente, mas, sim, no processo de manifestação do ser-utensílio do utensílio-sapatos, o sendo no todo, Mundo e Terra no seu jogo de oposições, chega ao desvelamento (HEIDEGGER, 2010, §113, p.141).

Figura 19 Van Gogh, Sapatos velhos, 1886

. Fonte: Disponível em: http://www.vangoghmuseum.nl

Wittgenstein era contrário a uma linguagem particular para pensar a filosofia, Heidegger, ao contrário, recorria ao vocabulário grego e à criação de termos próprios para expressar seu pensamento. Também, como já foi dito, Wittgenstein não acreditava numa essência subjacente à definição das palavras, enquanto Heidegger buscava na verdade a essência do que se designa obra de arte.

No entanto encontramos semelhanças entre a nota expressa na coletânea Cultura e Valor, em que Wittgenstein aborda a arte e o ensaio de Heidegger.

Quando Wittgenstein afirma que só o artista é capaz de “apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos apareça como uma obra de arte” (2000, p. 17), seria como se só o artista fosse capaz de despertar a aletheia, o desvelamento do sendo heideggeriano, naquilo que Wittgenstein afirma ser a perspectiva correta que a obra de arte nos obriga a ver (2000, p.18).

Os escritos de Engelmann são apenas utensílios, não há neles o sentido de obra de arte, na visão de Wittgenstein porque ele não é um artista. Na visão de Heidegger, porque ele não é capar de despertar a aletheia, o desvelamento do sendo, a verdade na sua essência.

Por fim, quando Heidegger afirma que, na obra de arte, a verdade se põe no permanecer, na qual um par de sapatos de camponês emerge na luz de seu ser: “O ser do sendo vem para o constante do seu brilhar.” (2010, p.54)

Wittgenstein caminha para um olhar especial, a arte como forma de apreender o mundo sub specie aeterni (sob o ponto de vista da eternidade), como se observasse sapato do camponês num olhar de cima, num voo que desperta também um brilho.

7.2.3 Wittgenstein e a estética ou o retorno à segunda parte das