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Eu sou caboco, eu sou caboco.

Eu sou Caboco da Pedreira.

Sou índio mau, Mas não sou de brincadeira.

Caboco-Índio da Matriz do Juazeiro.

Sou Caboquinho das Mata, Quem manda na mata é eu.

É eu, é eu, é eu, Quem manda na mata é eu.

(Curimbas-torés cantados em Crateús e Poranga)

Numa de minhas primeiras visitas a Crateús conheci Seu Oliveira (Manuel Gomes de Oliveira), esposo de Dona Gonçala e pai de Helena, Rita, Nazaré e mais uma dezena de filhos. Figura respeitada em Crateús, Seu Oliveira lutou sempre para manter sua família unida e em paz. Conversávamos na calçada de sua casa, quando Rita me disse assim:

Estêvão, pergunta ao papai se ele é caboclo. Fiz a pergunta e, de pronto, Seu Oliveira me respondeu convicto: Eu não sou caboclo. Eu sou é um cidadão! O que provocou risos entre os presentes, todos seus familiares, à minha exceção, que fiquei surpreso com sua rispidez. Na manhã seguinte, durante o café na cozinha de Dona Gonçala, repetiram-se os comentários da noite anterior e Seu Oliveira fez questão de reafirmar a sua repulsa pelo termo caboclo, vinculando-o à condição oposta a da cidadania, a subalternidade.

Friso este momento inicial da pesquisa porque o termo caboclo foi ouvido por mim seguidas vezes durante o trabalho de campo e sempre com múltiplos significados. Ressoa aos ouvidos quando escutamos as narrativas sobre a Furna dos Caboclos onde, no passado, conta-se que houve um massacre de índios por fazendeiros. Caboclo significa aí o próprio índio, ser mítico do passado fundante da sociedade sertaneja. É assim que Luzinário Potyguara definiu seu pertencimento étnico certa vez: São Potyguara, viu? esse povo é Potyguara. Cabooco! Caboco da mata, mesmo, viu? Nesta acepção, também pode vir a ser o descendente, mais ou menos misturado e assimilado do indígena, que vive junto à sociedade nacional.

Em outras ocasiões, caboclo é entidade sobrenatural, que desce nas sessões de cura e umbanda e é louvado em diversas músicas. Nesta acepção, na umbanda cearense, assim como ocorre em outros contextos de cultos afro-brasileiros (Pordeus, 2002;

Ferretti, 2004; Assunção, 2004), caboclos são os espíritos dos índios, mas não só deles.

Podem ser inúmeras entidades diversas associadas com correntes diferentes de espíritos e que se distinguem dos santos/orixás por sua brasilidade e sua proximidade com o cotidiano dos homens.

A polissemia inerente ao termo caboclo não era novidade para mim, nem muito menos a sua acepção de indígena. Em outros contextos de pesquisa, como com os Xukuru de Pernambuco (Palitot, 2003) e Potiguara da Paraíba (Palitot, 2005), caboclo aparece como a expressão da distinção étnica desses grupos, denotando exatamente os descendentes de populações nativas aldeadas em antigos centros missionários. Neste sentido, Edson Silva (2008, p. 30) afirma que ao longo do século XIX os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos passaram a ser chamados de caboclos, condição muitas vezes assumida por eles para esconder a identidade indígena diante das inúmeras perseguições (grifos no original). Um processo operado a partir de atos classificatórios do estado, essa categorização social foi tratada por Sylvia Porto Alegre como uma construção ideológica sem conteúdo

Consideramos que a categoria ‘caboclo’, identificada etnicamente como o mestiço de origem indígena, é menos uma categoria social concreta e muito mais uma construção ideológica, que se cristalizou em meados do século XIX, como forma de negar a identidade do índio e seus direitos, pela via da dominação cultural, em substituição à violência militar e à coerção do Estado. (Porto Alegre, 1994, p. 21)

No entanto, considero importante retomar a discussão do tema à luz de novos contextos etnográficos, proporcionados pela pesquisa na região de Crateús. Numa área onde inexistiram aldeamentos que pudessem associar direitos territoriais à condição de caboclo, este termo aparece necessariamente com significados mais complexos.

Pude perceber isso numa outra conversa, dessa vez com Assis Tabajara. No desenrolar de nosso diálogo pude notar que caboclo significa também uma pessoa comum, do povo, o homem da roça, do interior. Um tratamento depreciativo, que indica menosprezo:

Rapaz, a palavra caboclo, pra nós... É justamente, pra nós... No meu entendimento, como eu te falo, nunca estudei. Eu nunca estudei. Caboclo que nós chamava muito, chamava: – um caboco desse. Né? Que é o nosso

linguajar aqui. Você vai querer uma coisa errada, já tem três, quatro pessoa: – Ah, fulano fez isso. – Rapaz, mas, um caboco desse, fez um negocio desse!

Então essas coisas, né? Um caboco, você tá dizendo que ele é um caboclo dos mato, da roça, bruto, que num entendeu e fez alguma coisa errada. Você tá entendendo? Então, pra nós, é assim. Pode ser que a ciência, tenha por um outro lado, né? Caboco é aquele da roça, é aquele do mato, é aquele... caboco mesmo. Pra mim, que eu não estudei, não sei ver nos dicionário o que é que significa a palavra caboco. Mas no nosso linguajar, o caboco é aquele. Aquele que tá sempre, tá lá dentro dos matos e quando faz alguma coisa errada se trata desse termo. (Entrevista com Assis Tabajara, Crateús, Abril de 2008. Grifos meus)

Assim, somando as desqualificações de ignorância, habitação rústica e isolamento geográfico, voltamos à concepção de Seu Oliveira, quando caboclo é a antítese da cidadania, significa ter um patrão, ser morador, agregado, cabra. Significa, assim, viver sob a tutela política, moral e econômica de outrem. Uma situação que indica algum nível de incapacidade intelectual e moral imposta e, para muitos, é vexaminosa e da qual busca-se sair, sempre que possível. Essa acepção, de morador, agregado, pode ser encontrada também na literatura, como no romance O Quinze, de Rachel de Queiroz (1930), onde o personagem Chico Bento, vaqueiro e morador, é tratado mais de uma vez como caboclo.

Câmara Cascudo, também assinala essa situação de sujeição que o qualificativo caboclo traz na literatura (escrita e oral):

O caboclo no folclore brasileiro é o tipo imbecil, crédulo, perdendo todas as apostas e sendo incapaz de uma resposta feliz ou de um ato louvável.

Gustavo Barroso lembra que essa literatura humilhante é toda de origem branca, destinada a justificar a subalternidade do caboclo e o tratamento humilhante que lhe davam. Os episódios vêm, em boa percentagem de fontes clássicas, com a mera substituição da vítima escolhida. O caboclo é o Manuel tolo, o Juan tonto europeu, aclimatado no continente americano com o nome de João bobo, uma espécie de sábio de Gothan. (...) O caboclo aceitou, com a sujeição física, essa popularidade pejorativa para oficializar a inferioridade de seu estado. (Cascudo, 1993, p. 165-166)

Caboclo é palavra de origem indígena, vinda da língua tupi, parece significar

“morador do mato”, “o que veio do mato”. Segundo Câmara Cascudo,

Caboco vem de Caá, Mato, Monte, Selva; e Boc, Retirado, Saído, Provindo, Oriundo do Mato, exata e fiel imagem da impressão popular, valendo o nativo, o indígena, caboco bravo, o roceiro, o matuto bruto, chaboqueiro,

bronco, crédulo, mas, vez por outra, astuto, finório, disfarçado, zombeteiro. (Cascudo, 1993, p. 165-166)

O mesmo autor acrescenta, ainda, que caboclo significa,

O indígena, o nativo, o natural; mestiço de branco com Índia; mulato acobreado, com cabelo corrido. (...) Diz-se comumente do habitante dos sertões, caboclo do interior, terra de caboclos, desconfiado com caboclos.

Foi vocábulo injurioso e El-Rei Dom José de Portugal, pelo alvará de 4 de abril de 1755, mandava expulsar das vilas os que chamassem os filhos das indígenas de caboclos: "Proíbo que os ditos meus vassalos casados com as índias ou seus descendentes sejam tratados com o nome de caboucolos, ou outro semelhante que possa ser injurioso." (...) Era até fins do séc. XVIII, o sinônimo oficial de indígena. Hoje indica o mestiço e mesmo o popular, um caboclo da terra. (Cascudo, 1993, p. 165-166)

O termo caboclo era utilizado já nos séculos XVII e XVIII para indicar aqueles indígenas aliados do projeto colonizador, mormente os de língua geral (tupi), em oposição aos índios hostis e recalcitrantes, denominados de tapuias, gentio de corso e bárbaros. Cronistas como o Padre Miguel do Couto (1697), que deixou valiosas informações registradas na sua Descrição do Sertão do Piauí, menciona como caboucollos os indígenas aldeados pelos padres da Companhia de Jesus na Serra da Guapaba (Ibiapaba)16 (Couto, 1697 in, Ennes, 1938, p. 388).

Outros cronistas como Domingos do Loreto Couto (1757) e José Antônio Caldas (1759), também citaram em seus escritos relações de aldeamentos missionários onde apareciam denominações como Caboclos de Língua Geral e Tapuias (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992, p. 445 e 446). É o próprio Loreto Couto que realiza um dos exercícios mais antigos de elucidação dos significados dos termos caboclo e tapuia.

Segundo ele (...) ‘cabocoro significa o homem que tem caza no matto; e Tapuya quer dizer inimigo.’ E então começa a entender que ‘cabocoro é um selvagem, que como fera vive no matto; e Tapuya hum homem contrário e inimigo, e tendo assim hua noção perfeita destas palavras, segue-se fazermos destes povos affrontosos discursos.’ E acrescenta: ‘O nome de cabocoros lhes foy imposto em seu princípio, porque muitas destas nações vivião dispersas pelos mattos em cabanas que formavão de ramas, e folhas de arvores; e os que viviam em suas aldeyas, ou povoações chamavão aos

16 As classificações étnico-raciais que aparecem na Descrição do Sertão do Peauhy, de autoria do Padre Miguel do Couto são bastante ambíguas e confusas, para os padrões atuais, havendo algo em torno de 10 tipos humanos diferentes no qual o cronista enquadrava a população das primeiras fazendas de gado implantadas na região: branco, negro, hindio, tapuya, caboucollo, gentio bravo, mistiço, preto, mullato, paulista e colomin.

outros cabocoros’. (...) ‘As palavras cabocoro e Tapuya significão certamente cousas injuriosas, logo com muita razão se offendem os Indios, e seos descendentes destas voses, que partos abortivos da confusão, com odiosa mistura a todos offende.’ (Loreto Couto, 1981, p. 29 apud Lindoso, 1983, p. 179-180).

No início do século XIX, o viajante inglês Henry Koster (1978, p. 184) menciona: o nome que se dá aqui, (Maranhão) e em Pernambuco, a todos os índios selvagens é Tapuia, e Caboclo é aplicado ao índio domesticado.

Já em 1860, no contexto da Comissão Científica que percorreu a província do Ceará, temos um texto escrito por Antônio Marques da Assunção, morador da povoação de São Benedito, termo da Vila Viçosa (antiga Missão da Ibiapaba), que ao descrever os indígenas que habitam naquela serra afirma que os mesmos

Querem ser tratados com todo respeito por seo próprio nome, ou posto, e quando muito (en cassuadas), Indio, ou India, Agastão-se fortimente, e tomão por enjuria quando os chamão Cabôco-lo, Cunhan17, porque dizem êlles Cabôcu-los são os brancos, e elles são Indios. (...) a palavra de Cabocu- lo, os brancos qualificarão com desprezo, e que só os tratão por esse nome no momento do ódio, e de fazer pouco (Porto Alegre, 2003, p. 50).

Depois, o termo aparece nos censos de 1872 e 1890, designando exatamente o componente indígena integrado da população nacional. O termo, assim, opera uma dupla distinção, primeiro dos indígenas ainda não contatados pelas frentes de expansão, impossíveis de serem contabilizados pelo censo, e depois dos outros grupos da população nacional, separados por “raças”: os brancos, pardos e pretos (Oliveira, 1999).

No processo de construção da nacionalidade que então se desenrolava, o termo caboclo passa a ser utilizado enquanto instrumento para denotar a subordinação social e racial do componente indígena, inculcando nas populações assim identificadas estigmas e marcas depreciativas. Caboclo vai sendo transformado paulatinamente no sinônimo de roceiro, caipira, sertanejo, homem da terra, signo da nacionalidade rústica e condenada a desaparecer com o progresso. Basta lembrarmos de todo o anedotário em torno do Jeca Tatu (Lima, 1999).

17 Outra palavra, análoga ao termo caboclo, e que ouvi não poucas vezes em Crateús é cunhã. Dessa vez, sem critérios abonadores, cunhã é sempre xingamento. Quando se utiliza é para menosprezar alguma mulher, seja por seu comportamento sexual livre, seja por sua profissão (prostituta). Os animais domésticos fêmeas: cadelas, jumentas, galinhas são xingadas também de cunhãs, o que geralmente se faz acompanhado de chutes ou objetos atirados com força.

Com a República, o termo caboclo aparece como alteridade negativa, imposta numa relação de poder, desautorizando e inferiorizando aqueles assim identificados.

Condição necessária para o tropos discursivo que insistia na necessidade de modernização e europeização do Brasil, suplantando as marcas nativas e africanas. O caboclo, figura telúrica e popular, resultado primeiro da mestiçagem, representava o Brasil profundo, que ancorava os sentidos conflitantes da nação, que se pretendia européia, mas precisava marcar sua distintividade e construir sua modernidade. Uma figura definida ao mesmo tempo de modo preciso e amorfo. Caracterização ambígua elaborada por ausências e incapacidades, visto ora como base da formação social e cultural, ora como pária de uma sociedade sertaneja caminhando com passos largos para a civilização (Silva, 2008, p. 35).

Ao caboclo, habitante do interior, se destinaram diversas políticas públicas, principalmente de higiene, trabalho, educação e controle, visando superar o seu atraso congênito e transformá-los na massa trabalhadora necessária ao progresso do país. Esse tipo de política de controle das populações do país tornou-se um problema sério desde o século XVIII quando o trabalho livre ou semi-livre tornou-se significativo em muitas áreas da colônia (Carvalho, 2007; Fonseca, 2008) e as possibilidades de existência e subsistência autônoma de grupos sociais em relação ao projeto colonial era ameaçadora.

Tão ameaçadora que suas práticas logo eram rotuladas como preguiça, vadiagem e criminalidade, como podemos perceber nesta descrição dos moradores das fazendas de gado do Piauí elaborada em 1772 pelo ouvidor Antonio José de Morais Durão18.

Disfarçam estes refinados vadios, preguiçosos, ladrões e pestes da república a sua conduta com duas raízes de mandioca e de tabaco que fabricam e que nunca chega para os sustentar e suas famílias mais que um ou dois meses no ano, mantendo-se o resto do mesmo, do que furtam e caloteam na mesma fazenda em que moram e nas circunvizinhanças, porque nenhum deles tem outro ofício nem qualquer que seus filhos aprendam.

Os seus bens são a casa de palha, que se fabrica num dia, um cavalo, uma espada, uma faca e alguns cachorros que facilmente consigo mudam e com a mesma facilidade sustentam enquanto lhes é preciso andar no mato. São

18 O cronista inicia a sua descrição explicitando as categorias em que se divide a população daquele vasto sertão, mas de modo diferente do Padre Miguel do Couto procura simplificar as muitas categorias étnico- raciais apresentadas, tarefa na qual obtém sucesso apenas de modo parcial: Vermelho se chama na terra a todo índio de qualquer nação que seja; mamaluco ao filho de branco e índia; caful ao filho de preto e índia;

mestiço ao que participa de branco, preto e índio; mulato ao filho de branco e preta; cabra ao filho de preto e mulata; curiboca ao filho de mestiço e índia; quando não se podem bem distinguir pelas suas muitas misturas s explicam pela palavra mestiço o que eu faço, compreendendo nela os cabras e curibocas.

estes demônios encarnados os curibocas, mestiços, cabras, cafus e mais cafres de que a terra só é abundante (...) que acossados pelas justiças de outras capitanias em que delinqüem e onde não lhes é fácil ocultar-se por povoadas e abertas, buscam esta como um infalível asilo de suas maldades (...) Enquanto porém se lhes permite esta depravada vida (...) Estão as vilas ao desamparo sem haver quem as povoem, sem artífices para as obras necessárias, sem homens para o trabalho e sem aumento algum (Durão (1772) in, Mott, 1976 p. 557-558, grifos nossos).

O trecho grifado acima, ainda que não explicite o termo caboclo, traz um seu correlato, que é o curiboca, descrito no mesmo documento como o filho de mestiço com índia. Assim, a massa de população livre e mestiça do Sertão do Piauí era tratada e tida como ameaçadora ao projeto colonial por sua capacidade de sobreviver nos interstícios das fazendas a partir de uma produção mínima de produtos alimentares (mandioca) e comerciais (tabaco).

Ainda segundo a mesma descrição de Durão, na Vila de Marvão a

[...] ribeira mais considerável no seu distrito, é a do Carateús, que vem desaguar na do Poti. Confina com a serra da Beapaba, onde os limites desta capitania com a do Ceará não tem certeza, donde vem ser o principal covil de quantos criminosos há, tanto de uma como de outra capitania, mudando eles as extremas ou confundindo-as e variando-as como lhe faz conta, para não serem inquietados de nenhuma das partes.

As longitudes entremeadas de bosques, áspero dos caminhos o inacessível das serras, concorrem todos para o seu intento (Durão (1772) in, Mott, 1976, p. 560-561).

Autonomia produtiva, mestiçagem, isolamento geográfico, marginalidade social e legal associam-se enquanto características intrínsecas desses agrupamentos populacionais sertanejos na perspectiva do Ouvidor da Capitania do Piauí. Traços que serão retomados em diversos outros discursos sobre as populações do Sertão ao longo do tempo. No século XIX, quando o viajante inglês George Gardner atravessa o sul do Ceará em direção ao Piauí, ele nota que os habitantes dessa região são compostos, em sua maior parte, de índios e mestiços que recebem o nome de Cariris, sendo afamados por sua rebeldia às leis do país (Gardner, 1975, p. 97).

A associação entre a existência de população livre e mestiça e a necessidade de controle e subordinação dessa massa por parte do estado e dos grupos econômicos

dominantes atravessou os séculos e, já durante a República, diversos intelectuais19 dedicaram-se a refletir sobre a origem desses grupos e os meios para superar as condições de atraso em que eles estavam envolvidos (Lima, 1999). Da mesma forma, os modos de vida dessas populações eram alvos de políticas de controle e subordinação por parte do estado que envolviam desde expedições militares, como nos casos de Canudos e do Contestado, até campanhas de educação, saneamento, abertura de estradas e criação de núcleos coloniais e de trabalho. A própria criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, em 1910, é sintomática deste entendimento, agindo as reservas indígenas como estabelecimentos de controle e transição de grupos etnicamente diferenciados em trabalhadores úteis à nação, mas não a eles próprios (Lima, 1995).

Neste sentido, Roberto Cardoso de Oliveira argumenta que o caboclo é o resultado da interiorização do mundo do branco pelo indígena20. É o nativo vendo-se a si mesmo com os olhos do colonizador, isto é, como intruso, indolente, traiçoeiro, enfim como alguém cujo único destino é trabalhar para o branco. Parafraseando Hegel, poder-se-ia dizer que o caboclo é a própria ‘consciência infeliz’. Fracionada sua personalidade em duas, ela bem retrata a ambigüidade de sua situação total [...] (1964, p. 80).

Assim, não admira que muitas vezes ocorra uma recusa ao termo caboclo, uma vez que esta palavra traz em si a conotação de uma existência tutelada e parcial. O trajeto de índio a caboclo é parte essencial do projeto hegemônico de elaboração da nacionalidade brasileira, cerceando e modelando os grupos sociais a partir da intervenção de intelectuais e aparelhos de Estado. Por outro lado, o percurso de caboclo a índio envolve uma luta simbólica em que os grupos locais contestam o monopólio das representações e das classificações sociais, exercido até então por atores sancionados oficialmente. Uma luta que só se torna possível quando a autoridade que preside a classificação encontra-se minada por outras forças que contestam os princípios de di-visão até então operados (Bourdieu, 1989). Mediadora importante nesse processo, a ação missionária buscou deliberadamente inverter a polaridade dos signos classificatórios, refazendo o caminho de caboclo a índio, a partir do exercício narrativo e da ritualização de performances.

19 Entre muitos, podemos citar: Euclides da Cunha, Belisário Penna, Edgard Roquette-Pinto, Cândido Rondon, Oswaldo Cruz, Monteiro Lobato e Oliveira Vianna.

20 Para este autor, o termo bugre, usado em Mato Grosso do Sul é equivalente ao termo caboclo.