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CAPÍTULO

2

modo consciente. Nesta tarefa, a cultura funciona como catarse para a liberação de tensões e o reencontro com uma essência ancestral eclipsada pela colonização. É parte da missão, então, encontrar no catolicismo popular os traços da religiosidade indígena que foi subsumida no processo de colonização e que pode ser observada em rituais de cura, cânticos e uso de plantas medicinais. Segundo este texto

Cada povo tem que lutar pela sua memória. Seria ingênuo pensar que conhecemos o nosso passado. O que a maioria sabe acerca do passado é exatamente o que os detentores do poder permitem que ela saiba. (...) As espantosas desgraças das quais os indígenas destas terras foram vítimas repetem de geração em geração, confirmando o dito: um povo que desconhece sua história está condenando a repeti-la. Desconhecendo o seu passado o povo cearense dificilmente poderá formular um projeto para o seu futuro, está condenado a depender dos que decidem em seu lugar. (...) Os professores e as professoras de História são ativadores da memória do povo no meio do qual vivem e cujos ‘monumentos históricos’ estão ao alcance das mãos e dos olhos: a cultura popular, a medicina do povo, sua alimentação, sua religião, seus costumes, sua sabedoria e sobretudo seu próprio corpo que é a maior verdade histórica que todos carregamos conosco. (...) Neste texto queremos refletir sobre o catolicismo e o modo pelo qual esta religião foi introduzida no Ceará. (Hoornaert, sem data , p.1).

A perspectiva da ação missionária da Diocese de Crateús baseava-se nesta orientação teórica, a da existência da figura-síntese do oprimido, um sujeito alienado material e simbolicamente que seria o objeto principal da ação redentora da Igreja (Rufino, 2006). Uma redenção que se daria enquanto um processo de construção da consciência, um desvelamento e uma descoberta históricas da capacidade de ação deste mesmo oprimido1.

Nesse sentido, podemos encontrar numa série de livretos produzidos pela Diocese de Crateús o resumo de três encontros anuais destinados a discutir o processo de formação histórica da região da Diocese. Estes encontros foram denominados Estudos sobre as nossas raízes e ocorreram nos anos de 1988, 1990 e 1991. O primeiro destinava-se a discutir as raízes culturais da Diocese. O segundo as raízes religiosas e o terceiro as raízes econômicas. Cada encontro contou com a assessoria de intelectuais vinculados à Igreja Católica, tanto da Diocese de Crateús, como de outros lugares: Eduardo Hoornaert, Pe.

1 Essa mesma orientação será descrita por Arruti (2006) para a ação missionária da Diocese de Propriá em Sergipe como uma aproximação com os conceitos marxistas de classe em si e classe para si.

Geraldinho, Irmã Anete, Pe. Eliésio, Frei Hugo Fragoso e Professor Pinheiro. As epígrafes deste capítulo são frases encontradas no primeiro livreto dessa série e sintetizam a abordagem pastoral aqui delineada.

Partindo desta perspectiva teórica restava à agência missionária desenvolver e aplicar uma metodologia para operar no cotidiano das interações dos diversos grupos pastorais da Diocese. Desenvolveu-se uma espécie de pauta de traços culturais e comportamentais a serem inventariados pelos agentes pastorais para chegar ao íntimo do povo. Estes traços também operavam como sinais de compatibilização entre o modo de vida das pessoas e a proposta de mobilização política dos missionários, transformando memórias locais descontínuas em idiomas políticos de mobilização social.

Ao trazer esta abordagem para o universo das questões étnicas (negra e indígena), a agência missionária estava pensando também sobre a fronteira cultural e o contato entre culturas, buscando dotar-se de uma perspectiva que recuperasse do silenciamento histórico as culturas oprimidas. A situação dessas culturas era entendida como de dominação e opressão, precisando haver o que se denominava de libertação.

Uma dimensão fundamental do método desenvolvido foi a realização de “catarses rituais”, em que se criaram espaços para a narração de histórias e o desenvolvimento de performances, para que os corpos falassem a partir de onde as palavras não pudessem mais comunicar.

Nesse processo, inicialmente, é a narrativa que vai ocupar lugar de destaque ao ser mobilizada em diferentes contextos e formas. Numa primeira dimensão, confere status de humanização aos atores, pois, ao narrarem suas origens eles rompem com as camadas sucessivas de dominação que se estabelecem sobre eles, lhes desumanizando (pobreza, subordinação, racismo, negação do acesso a serviços, etc.). A segunda, atua na própria desconstrução da narrativa histórica oficial, autorizando e legitimando discursos subterrâneos, que agem na conformação dos fundamentos da existência dos grupos indígenas locais; a terceira estabelece a legitimidade intrínseca ao movimento indígena a partir do próprio exercício narrativo, como condição para a assunção da identidade étnica.

As práticas missionárias permitiam que nos diversos momentos de encontros das raízes indígenas houvesse a troca de experiências e narrativas, onde pessoas, muitas vezes, estranhas entre si, reunidas pela mediação dos agentes da Pastoral Raízes

Indígenas – e da Missão Tremembé – pudessem ouvir narrativas umas das outras. Neste ato de ouvir e narrar, davam-se as condições necessárias para um processo de reconhecimento de si e do outro, como participantes de uma mesma história, que é direcionada pela ação pastoral enquanto história indígena. É ao ouvir as narrativas dos outros que as pessoas conseguem se reconhecer naquelas memórias, reconhecer validade ao outro nas memórias dele e reconhecer-se enquanto sujeito nas suas próprias memórias. É esse processo de reconhecimento intersubjetivo que permite às pessoas convencerem-se da proposição identitária da Pastoral Raízes Indígenas.

A própria palavra raízes está ligada à idéia de passado, enterrado, profundo, antigo, mas necessário e imprescindível à existência presente e futura da planta, algo que não se mostra, mas que é de suma importância para a vitalidade do ser vivo. As raízes também são necessariamente descobertas, uma vez que costumam estar sob a terra, ocultas, e há a necessidade de um trabalho de escavação para encontrá-las. Assim foi entendido o trabalho missionário, que propiciou as ferramentas para uma arqueologia das memórias familiares, individuais e grupais.

A história, portanto, não é apenas o registro do passado, de fatos acontecidos, mas um argumento na elaboração de uma proposta de identidade coletiva. Assim, os momentos de encontro e narração propiciados pela Pastoral Raízes Indígenas visavam muito mais a construção de uma nova identidade, no presente, do que o simples registro dessas histórias. Tal prática pode ser melhor percebida nos relatos etnográficos a seguir.

Porém, antes de passar aos relatos, cabe fazer algumas observações sobre a originalidade desses dados da pesquisa. Um dos materiais que vou analisar é fruto de um registro em vídeo, realizado em 1993 pela Pastoral Raízes Indígenas. Neste vídeo, podemos observar o desenrolar de um dos encontros promovidos pela Pastoral, quando diversas pessoas eram estimuladas através de cânticos e de uma peça teatral a contarem as suas histórias de vida para a câmera, explicando por que eram indígenas.

Neste mesmo sentido, me deparei, em campo, com outros conjuntos de registros produzidos pelo movimento indígena, na forma de cartazes elaborados em folhas de cartolina, com fotografias, desenhos e textos. Tanto em Crateús como em Poranga, esses painéis estavam guardados pelas diretoras das escolas indígenas, Helena e Eliane, configurando uma modalidade bastante particular de registro. Nestes painéis aparecem retratados temas variados como a terra, sítios arqueológicos, assembleias indígenas,

reuniões diversas, processamento de alimentos, mutirões, legislação indigenista, inauguração de escolas etc.

Esta política da memória, ao mesmo tempo prática e poética é uma herança das orientações pastorais do período de Dom Fragoso na Diocese de Crateús, como bem salientou Antônio Montenegro: sempre foi uma preocupação, e mesmo uma política da Diocese de Crateús, documentar encontros, acontecimentos, práticas, reflexões, projetos, caminhos e descaminhos (2004, p.322).

Assim, não só o registro escrito teve importância, como também outras formas de registro, como os audiovisuais. Além desse vídeo sobre um encontro da Pastoral Raízes Indígenas, outros três materiais me foram fornecidos em campo por Eliane Tabajara no formato de DVDs transcritos de fitas VHS guardadas pela Irmã Margaret: o vídeo sobre a primeira assembleia indígena no Ceará, produzido pela Missão Tremembé (1994), um vídeo canadense sobre as dificuldades da vida dos agricultores no município de Poranga (1994) e o vídeo Dois Dedim de Prosa (1997), produzido pelo antropólogo Ivo de Sousa, com três dos anciãos indígenas de Crateús (Seu Mariano Barata, Seu Severino Tupinambá e Seu Pedro Jandaíra).

De acordo com Helena, o evento registrado em 1993 foi uma das primeiras atividades da Pastoral Raízes Indígenas,

... e o primeiro passo que nós fizemos, sabe qual foi? Depois que nós e a Irmã Margaret a gente conversou, nós marcamos um dia pra debaixo de um pé de cajueiro que ainda tem lá em casa, pra passar um dia todo, pra juntar um povo que conseguia ainda contar algumas histórias, meu avô, minha avó, meu tataravô, foi tudim pegado a dente de cachorro. Aí, juntamos um grupo, né? Pra esse dia. E passamos o dia todo contando essa história e cada um contava as suas coisas. Aí, no final, a partir dos contos, preparamos um teatro, e o teatro ia ser apresentado por esse povo que participaram nesse dia. Aí, a primeira apresentação do teatro foi na Terra Prometida, que nesse tempo estava no auge da conquista. Aí, apresentamos lá. O Gonçalim gravou o teatro, fez fita e através dessas fitas a gente foi divulgando e apresentando o teatro. Aí, por aí começou. Ai, fizemos um mapeamento, um encontro, de visitar os diversos lugares onde o povo contava história que arrancava caco cheio de osso, que tinha osso de índio, onde o povo sabia contar as histórias das marcas gravadas nas pedras. Aí, nós fizemos esse mapeamento, nós levantamos diversos lugares, e ia visitar, né? Grupos, caminhando, outra hora ia de carro, por exemplo, pra ir pro Monte Nebo nós tínhamos que ir de carro, subia a serra, descia a pés, contando a história, falando, e vinha nos Tucuns, fomos nos diversos lugares e assim foi. Aí, depois criou corpo, né? Essa história. Foi-se divulgando. (Helena Gomes, Nazário, dezembro de 2006, grifos meus)

O vídeo funcionou assim, duplamente, tanto como registro de um evento particular, quanto como argumento a ser elaborado no processo de identificação indígena. É fato e produção de um fato ao mesmo tempo.

Na sede comunitária da ocupação Terra Prometida, na periferia de Crateús, realizou-se o encontro das Raízes Indígenas, em 28 de março de 1993, coordenado por Helena Gomes e a irmã Margaret. Esse encontro foi registrado em fotografias e vídeo. As atividades do encontro constaram de cânticos, orações e da encenação de uma pequena peça teatral, onde o parto de uma criança era dramatizado, simbolizando a transmissão doméstica de saberes e fazeres ancestrais. O vídeo também registrou depoimentos individuais, com a câmera em close no rosto das pessoas. Todos de pé, uns ao lado dos outros, esperavam a sua vez de falar.

A partir das falas das pessoas entrevistadas no vídeo podemos distinguir quatro conjuntos temáticos recorrentes e que constituirão o lastro argumentativo para a identificação étnica na região de Crateús.

1) O primeiro é composto por critérios de ordem racial e fenotípica que, antes de serem autoevidentes, são parte de um processo de construção social de referências que se inscrevem no corpo das pessoas, atuando de modo interacional, quando uma pessoa tem seus traços físicos continuamente evidenciados pelas outras.

E ter o sangue forte. mas eu num vou negar, né? O sangue que eu tenho. Também não dá pra negar porque tá no rosto. (Eliene)

E eu sei que a minha vó ela tinha o sangue, ela era índia, né? Que a gente já é, assim, mais um pouco moreno, mas eu sei que eu tenho sangue indígena. Porque tenho uma parte indígena e a outra... negra. Mas eu sou muito feliz por eu ter esses dois sangue. (Francisca)

Eu penso que na minha famía, por parte do meu pai, tem sangue de índio. Pois eu alcancei o meu avô, ele era moreninho. E eu penso, por aí assim, que meu avô era índio. (Tereza de Souza)

Antes, eu não sabia quem eu era. Quer dizer, que eu ainda não sei.

Que eu ainda não descobri ainda, mesmo, na realidade. Mas eu tô tentando descobrir e me sinto muito feliz de saber que tenho este sangue indígeno.

Quer dizer, meu pai era neto de índio e minha mãe era negra pura. Então eu me sinto muito feliz de saber que eu tenho esses dois sangue. De negro e de índio. (Conceição)

Eu nasci em Senador Pompeu, mas meu pai era de Pedra Branca e eu também tenho sangue de índio e de negro. E a mamãe era branca. Quando a mamãe casou-se com o papai, que era caboclo. Aí a gente foi muito marginalizada. Nós, nossos irmãos porque o papai era caboclo e ele era pobre e analfabeto.

O meu pai era caboclo. Então eu tô descobrindo as minhas origens, as minhas raízes. (Uma freira que estava presente na reunião)

Eu via falar meus avós e o meu pai falar dos índios, né? Ele era bem moreninho, né? E eu acho que essa parte, talvez, de eu ser também moreno, acho que eu tenho sangue de índio também. (Francisco)

Nós somos raça pura dos índios.

(...) este sangue que corre nas nossas veias...

Índio porque colocaram esse nome indígena em nós. Mas nós somos uma raça pura. (Irmã Cineide)

Não posso negar que sou índia, né? Porque todo mundo diz que eu sou uma índia. E eu também não posso negar. Então, meu pai me falou que o bisavô dele, o avô dele, tinha sido pegado por cachorro na serra. E todo mundo, e a família dele, quase todos só tem sangue de índio, né? Ele também é caboclo. E minha mãe ela num é, mas e se meu pai é caboclo eu já puxei a raça do meu pai. (Uma mulher que estava presente na reunião)

2) O segundo conjunto diz respeito a temas históricos, que se sustentam na transmissão intergeracional, a partir de recursos da oralidade, onde a autoridade encontra-se nas gerações ascendentes, aumentando com a distância cronológica entre a pessoa que fala hoje e o ente transmissor no passado (pais, avós, bisavós).

É a história dos meus pais é assim: a bisavó do meu pai, né? Era indígena,

Porque a minha vó era da tribo Kariri, minha bisavó... (Tereza Kariri) Eu, antes eu não sabia mesmo quem eu era. Sempre, meu pai, eu ouvia ele falar. Quando eu era pequena, sempre ouvia ele falar que a minha bisavó tinha sido pegada a dente de cachorro, e então, eu nunca tinha levado a sério. (Conceição)

Eu recordo que o pai do meu pai era índio. E eu morava em Caucaia, numa triba por nome Capeba. (Jerônimo)

A história que eu conto é que meu pai contava e minha mãe. Eu já tinha certeza que tinha uma raça indígena. Tinha pela parte de minha mãe, de meu pai também, que conheceu várias coisas... e nasci num centro de serra, adonde se via cristão de mês em mês.

(...) mas a minha mãe foi pegada a dente de cachorro, a minha bisavó foi pegada a dente de cachorro. (José Bento)

Meu pai ele saiu da tribe de Amazona, da Mata do Breu, com sete anos de idade, e dois caçador roubou ele e dois irmão dele. (Maria de Fátima)

Aí, eu tenho mais me informar direito, com a minha família, bem direitinho, porque agora que eu entrei aqui na região da comunidade. Aí, depois que saber mais bem, aí, eu vou lhe informar. (Francisca Teixeira)

Eu via falar meus avós e o meu pai falar dos índios, né? (Francisco) Então, meu pai me falou que o bisavô dele, o avô dele, tinha sido pegado por cachorro na Serra. (Uma mulher que estava presente na reunião)

3) O terceiro conjunto parte da experiência sensível dos próprios sujeitos que falam. São critérios comportamentais, conhecimentos sobre o meio natural e sobrenatural, processos técnicos, situações de isolamento físico e de marginalização social e simbólica que tornam plausíveis a identificação como indígenas.

Uma coisa assim que eu acho muito bonito lá em casa é que tudo em quanto que meu pai vai fazer com minha mãe, eles combinam, né? E os costumes, né? É isso. E acho que vai passando pra gente. E uma coisa muito importante é quando as coisas são feitas em comum. (Jacira)

(...) E me recordo bem, que uma hora dessa, ali em Caucaia tem uma lagoa, assim de lado com um trilho. E lá, uma hora dessa eu estava pescando, e aqui eu ainda não vi uma arma de pesca, chama-se choque, como se lá mesma na triba se fazia, de vara, né? (Jerônimo)

(...) meu pai também, que conheceu várias coisas... e nasci num centro de serra, adonde se via cristão de mês em mês.

(...) tempo do sofrimento.

(...) no tempo que se comia só coisa dos mato. Era o colé, era o ananá, só fruta braba do mato. Que era o que os índio comia e as carnes crua, bebiam águas de cipó que tinha, da mucunã, da raiz da sapurama, tudo era coisa que eles comiam, e bebiam. Agora, como tem já as coisas tudo em facilidade, que vem tudo na máquina, tudo nos carro. Já vem o arroz pilado, a massa de milho, vem tudo quanto já é de facilidade e aí, o povo num sabem contar, como os índios conta, que conhecem até os pau dos mato que sabe que serve de remédio. (José Bento)

Meu pai (...) Aí, ele se destacou-se, andando, fazendo experiências nos matos. Então, meu pai sabe de muito nomes de remédios. Pra muitas doenças. (Maria de Fátima)

Na parte do meu avô ele é de Espanha, índio. De lá eles foram embora pras bandas do Piauí. Pras Pedras, em cima da serra, pra lá. Aí, ele se deu com uma, a sair fora. Aí, já mais manso, quando ele já saía. Quando ele deu

com a minha vó, aí eles começaram, lá, conversaram, nessa conversa, eles casaram. De lá ele foi de pés. Eles casaram, aí vieram simbora aqui pro Ceará, pelas matas, num andava em transporte. (Francisca Teixeira)

Então a gente era muito marginalizado, quando a gente ia a missa em Senador Pompeu, primeira vez já com treze anos que eu vi um trem, que eu vi um jipe, que eu fui conhecer a cidade. (Uma freira que estava presente na reunião)

(...) esse jeito calado, quieto...

Assumindo nosso jeito indígena.

Hoje a gente é muito discriminado. Quando a gente fala: - você tem descendência de índio? Quem que quer dizer? Ninguém! Porque nós fomos muito discriminados. (Irmã Cineide)

4) Por fim, o último conjunto diz respeito à própria ação missionária, com os seus resultados mais imediatos e os seus projetos utópicos. O encontro entre as pessoas, a possibilidade de recordarem o passado e se expressarem livremente é enfatizado. Da mesma forma, a superação de condições de marginalização social a partir da identificação indígena é proposta como projeto motivador das ações conjuntas a serem desencadeadas pelos novos sujeitos que emergirão desse processo.

(...) já trabalhei na comunidade, agora tô com o grupo indígena, (Tereza Kariri)

Aí, depois que eu entrei nessa vida de comunidade... Aí, eu fui descobrindo, aos poucos, né? (Conceição)

Pra mim é um honra eu estar aqui no meio de um bocado de irmãos, posso dizer, né? Ainda agora eu me lembrando disso. Com muita satisfação, com muito gosto e muita honra, eu relembro aquele tempo de criança. Me lembro, me recordo, que quando saí da triba eu era pequeno. Tinha, assim, idade de oito anos. (Jerônimo)

Aí, eu tenho mais me informar direito, com a minha família, bem direitinho, porque agora que eu entrei aqui na região da comunidade. Aí, depois que saber mais bem, aí, eu vou lhe informar. (Francisca Teixeira)

Tô descobrindo cada vez mais as minhas raízes e conscientizando meus irmãos como é importante a gente valorizar nossa raça. (Uma freira que estava presente na reunião)

Índios, negros, brancos, a gente possa viver em paz numa terra livre, numa terra onde todo mundo possa ser feliz. (Irmã Cineide)

Ao abordar as situações étnicas dos Tremembé, no litoral Oeste do Ceará, Carlos Guilherme do Valle (2004) utilizou a noção de campo semântico da etnicidade para se referir a um conjunto de enunciados discursivos que informava as práticas sociais locais, constituído de noções sobre corpo, sangue, descendência, mistura, selvageria e ancestralidade, com nítido destaque para a vulgata da avó pega a dente de cachorro. Estas noções eram operadas não só pelos Tremembé como por diversos outros atores sociais dos contextos analisados. A ação indigenista quer missionária, quer da Funai, contribuía para dilatação, difusão e modelação dos elementos discursivos presentes no campo (Valle, 2004, p. 316).

A ação missionária da Pastoral Raízes Indígenas estava intimamente associada com a Missão Tremembé de modo, que as comparações entre os dois casos são bastante elucidativas. De um conjunto discursivo nativo variado e distintamente compartilhado, emerge através da mediação missionária, uma modelação étnica específica e capaz de se reproduzir em contextos diferentes.

Outro exemplo etnográfico de como elementos desse campo semântico foram mobilizados pela ação missionária pode ser fornecido a partir da reconstituição de uma conversa não-gravada com uma indígena Tabajara de Poranga. Hevanir trabalha na casa da COPICE2 em Fortaleza, revezando-se semanalmente com Conceição, dos Jenipapo- Kanindé. Juntas, elas cuidam da cozinha e da recepção dos indígenas em tratamento na casa.

Nossa conversa se desenrolou na cozinha, enquanto ela preparava o almoço e o barulho das panelas no fogo e das demais atividades de descongelar e cortar frangos, lavar utensílios e preparar outros alimentos impedia qualquer possibilidade de um registro sonoro. Ainda assim, conversamos por muito tempo.

Uma dúvida que eu guardava durante o trabalho de campo era justamente como pessoas de origens diversas passavam a reconhecer-se enquanto membros de um mesmo movimento indígena que postulava uma unidade étnica ancestral. Nesse caso, em Poranga, a articulação entre os termos Tabajara e Kalabaça3 de Poranga, resolvia em parte

2 Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas no Ceará – organização indígena conveniada com a FUNASA e que administra uma casa de apoio para os indígenas em tratamento médico em Fortaleza.

3 Aqui é preciso fazer uma advertência sobre a grafia do termo Kalabaça. Enquanto os Kalabaça de Poranga grafam o etnônimo com “K”, enfatizando a diferença exotizante que as grafias de nomes indígenas com as letras K, W e Y favorecem aos leitores em português; os Calabaça de Crateús utilizam-se da letra “C”