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A PRISÃO: INSTRUMENTO CENTRAL DE CONTROLE SOCIAL

No documento OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO - Univali (páginas 74-83)

Ou seja, a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque tenham uma tendência para delinqüir, mas precisamente porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes, sendo essas chances desigualmente distribuídas.

degradação no início de detenção, com as quais o encarcerado é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e objetos pessoais), são o oposto de tudo isso. A educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante.

Vários estudos102 têm demonstrado que o regime de privação da liberdade produz efeitos negativos sobre a personalidade do condenado, principalmente os de longa duração, o que anula qualquer possibilidade de transformar um condenado anti-social violento em um indivíduo adaptável e da pena realizar seus fins educativos. Efeitos negativos e contrários aos fins da pena, também são produzidos pelos regimes de privações das necessidades, principalmente heterossexuais, em razão da forma como são distribuídos os meios de satisfação dessas necessidades: de acordo com as relações informais de poder e de prepotência que a caracterizam.

Ainda ao ser submetido ao regime carcerário, o preso também sofre um processo de socialização negativa, em que: há desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade (diminuição da força de vontade, perda do senso de auto-responsabilidade do ponto de vista econômico e social), redução do senso de realidade do senso do mundo externo e a formação de uma imagem ilusória deste, o distanciamento progressivo dos valores e dos comportamentos próprios da sociedade externa; e ao mesmo tempo, uma interiorização das atitudes, dos modelos de comportamentos e dos valores característicos comunidade carcerária. Enfim, essa dupla ordem de fatores, res ultantes do efeito negativo do aprisionamento, impede qualquer tipo de reinserção do condenado.

Além desses limites e dos processos contrários à ressocialização e reeducação, que são singulares à prisão, devem ser destacados duas ordens de fatores que mostram a natureza extremamente contraditória da ideologia penal da reinserção. Conforme explica Baratta103:

102 Por exemplo: WOLFF, Maria Palma. Antologia de vidas e histórias na prisão: emergência e injunção de controle social. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

103 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 186.

Estas considerações se referem à relação é uma relação entre cárcere e sociedade. Antes de tudo, esta relação é uma relação entre quem exclui (sociedade) e quem é excluído (preso). Toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão.

Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir. Em segundo lugar, o cárcere reflete, sobretudo nas características negativas, a sociedade. As relações sociais e de poder da subcultura carcerária têm uma série de características que a distinguem da sociedade externa, e que dependem da particular função do universo carcerário, mas na sua estrutura mais elementar elas não são mais do que a ampliação, em forma menos mistificada e mais “pura”, das características típicas da sociedade capitalista: são relações sociais baseadas no egoísmo e na violência ilegal, no interior das quais os indivíduos socialmente mais débeis são constrangidos a papéis de submissão e de exploração.

Ou seja, existe uma contradição fundamental em querer reinserir o indivíduo excluído, através da sua modificação, em uma sociedade excludente, sem modifica – lá, atingindo o mecanismo de exclusão. Ainda o cuidado que a sociedade punitiva efetua sobre o condenado depois do término da reclusão, continuando a segui – lo de inúmeras formas visíveis e invisíveis, demonstra o interesse de perpetuar, com a assistência, aquele estigma que a pena tornou definitivo no indivíduo.

Nas palavras de Baratta104:

A hipótese de Foucault, da ampliação do universo carcerário à assistência antes e depois da detenção, de modo que este universo esteja constantemente sob foco de uma sempre mais científica observação, que se torna, por seu turno, um instrumento de controle e de observação de toda a sociedade, parece, na realidade, muito próxima da linha de desenvolvimento que o sistema penal tomou na sociedade contemporânea. Este novo “panoption” tem sempre menos necessidade do sinal visível (os muros) da separação para assegurar-se o perfeito controle e a perfeita gestão desta zona particular de marginalização, que é a população criminosa.

Para Focault105, o sistema punitivo tem uma função direita e indireta. A função indireta é a de golpear uma ilegalidade visível para encobrir uma

104 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 187.

oculta; a função direta é a de alimentar uma zona de marginalizados criminais, inseridos em um verdadeiro e próprio mecanismo econômico (“indústria” do crime) e político (utilização de criminosos com fins subversivos e repressivos).

Se analisarmos como a repressão, concentrada principalmente sobre determinados tipos de delitos, cobre uma mais ampla área de ilegalidade na nossa sociedade, e no papel econômico e político de grandes organizações criminosas (ciclo econômico da droga, jogos ilegais, máfias econômicas), toma-se consciência do valor daquele discurso106.

Dessa forma, constata-se a função da prisão na produção de indivíduos desiguais, pois atualmente, ela produz, através da seleção das zonas mais miseráveis da sociedade, um setor de marginalizados sociais destinados para intervenção estigmatizante do sistema punitivo estatal e para a realização daqueles processos que, ao nível da interação social e da opinião pública, são ativados pela pena, e contribuem para realizar o seu efeito marginalizador e atomizante. Nesse sentido Baratta107:

Esse setor qualificado do “exército industrial de reserva”

cumpre não só funções específicas dentro da dinâmica do mercado de trabalho (pense-se na superexploração dos ex- condenados e no correspondente efeito de concorrência em relação aos outros trabalhadores), mas também fora daquela dinâmica: pense-se no emprego da população criminal nos mecanismos de circulação ilegal do capital (...)

A prisão vem a fazer parte de um processo que compreende família, escola, assistência social, cultura, trabalho, universidade, pois o tratamento penitenciário e assistência pós-penitenciária se dirigem a recuperar atrasos de socialização que prejudicam indivíduos marginalizados, ou seja, são espec ializadas

105 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história de violência nas prisões. Petrópolis/RJ: Vozes, 1989.

3ª parte, Cap. III.

106 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 190.

107 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 167.

para a integração de uma minoria de sujeitos desviantes. No mesmo sentido Baratta108:

O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc. O cárcere representa, geralmente, a consolidação definitiva de uma carreira criminosa.

Com isto, a pena antes de ser vista exclusivamente como um fato jurídico, deve ser entendida como uma relação de poder e como um fato político, pois recuperar, reeducar, são fins da pena que foram inventados pela necessidade de legitimar o exercício de poder verticalmente estruturado da sociedade.

Nas palavras de Andrade109:

Enquanto a função de proteção de bens jurídicos universais atribuída ao Direito Penal revela-se como proteção seletiva da bens jurídicos; a pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente.

Nesse sentido, está demonstrado que a intervenção penal estigmatizante, como a prisão, ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando o condenado produz efeitos contrários a ela, ou seja, produz a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (desvio secundário). A prisão não pode reduzir a criminalidade porque sua função real é fabricar a criminalidade e condicionar a reincidência110.

108 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 167.

109 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 291.

110 Uma recente pesquisa constatou que 52% dos presos na França cometem um (ou mais) infrações nos cinco anos que se seguem à sua soltura, e que a probabilidade de recaída varia muito fortemente na razão inversa da gravidade do delito inicial: ela varia de 23% para os delitos sexuais contra

Em suma, como explica Andrade111:

Se as funções declaradas da pena se resumem numa dupla meta, a repressão da criminalidade e o controle (e redução do crime); as funções reais da prisão aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade (recortando formas de criminalidade das classes dominadas e excluindo a criminalidade das classes dominantes) e reprodução das relações sociais.

Assim, o fracasso das funções declaradas da pena, abriga a história de um sucesso correlato, correspondente ao fato de que as funções reais da prisão, opostas às declaradas, explicam sua sobrevivência e permitem compreender o insucesso que acompanha todas as tentativas reformistas de fazer do cárcere uma instituição da reinserção social.

crianças e 28% para os homicídios dolosos, a 56% para a venda de drogas, 59% para a sua simples posse e 75% para os furtos. E, no entanto nada de concreto é feito para interromper efetivamente o circuito crime-prisão-crime, a não ser o agravamento das penas para os reincidentes, muito embora se saiba que o efeito exemplar do encarceramento é praticamente nulo para os delitos menores. In WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (A onda punitiva). 3 ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan: 2007. p. 462.

111 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 291.

Mesmo que um dos princípios que orienta a ideologia penal dominante seja a igualdade das pessoas e bens jurídicos protegidos, é manifesta a desigualdade que ocorre no processo de criminalização, onde a definição de condutas e pessoas e a imposição da pena se operam seletivamente em conformidade com a classe e aos grupos sociais que pertencem os indivíduos.

Tal seletividade operacional do sistema penal reflete a estrutura estratificada da sociedade, baseada na divisão de classes, em que os interesses dominantes direcionam a atuação do Estado, nesse caso, suas agências oficiais (legislativo, executivo e judiciário). Disso resulta um processo de criminalização marginalizador, que produz e reproduz as desigualdades sociais, principalmente por meio dos efeitos criminógenos da prisão. O que ocorre assim, é uma atuação do sistema penal direcionada para as classes pobres, sua clientela, condicionada por estereótipos, gerando a concepção, amplamente difundida, de que a criminalidade pertence a tais classes. Dessa forma, se mantêm tudo no seu lugar, ricos imunizados do processo de criminalização e pobres na cadeia.

Quanto à primeira hipótese, restou confirmada, pois o sistema penal, na atuação legislativa, não defende todos os bens considerados essenciais, mas também vários bens que são de interesse de apenas uma parte da sociedade (classe dominante), ou seja, há uma seleção dos bens que vão ser protegidos conforme os interesses das classes no poder, que logicamente não vão direcionar a atuação do sistema penal contra eles e, sim, contra as classes vulneráveis. Neste contexto, operacionaliza-se a criminalização de condutas prejudiciais aos interesses das pessoas detém o poder econômico e político, e uma imunização das condutas, que mesmo ilegais, são essenciais para manutenção desses poderes.

Além, dessa seleção dos bens a ser protegidos, essa seleção criminalizadora não ocorre somente com a escolha dos comportamentos descritos na lei penal e com a diversidade da intensidade da pena, mas já no momento da formulação técnica dos tipos penais, que quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes das classes inferiores e que são confrontantes

com as relações de produção e distribuição capitalistas, eles formam uma rede muita fina. Enquanto a rede é ordinariamente muito larga quando os tipos penais têm por objeto a criminalidade econômica e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às classes no poder. Ou seja, estabelece-se uma prévia seleção dos indivíduos criminalizáveis (criminalização primária).

Quanto à segunda hipótese, também restou confirmada, sobretudo em virtude do processo de criminalização secundária a que são submetidos os indivíduos que são selecionados pelas agências oficiais responsáveis pela investigação, acusação e julgamento. Elas não observam (e nem poderiam observar) as definições legais de crime independentemente deles, mas desde suas particulares concepções acerca da fronteira entre a conduta criminosa e não- criminosa. São os preconceitos e os estereótipos que guiam a ação, tanto dos órgãos investigadores como dos órgãos judicantes, e que os levam, portanto, a procurar a verdadeira criminalidade, principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la: nas classes marginalizadas.

O que faz assim, o indivíduo sofrer o processo de criminalização, não é a sua conduta criminosa, mas sim a classe social a que pertence, ou seja, a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque tenham uma tendência para delinquir, mas precisamente porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes, sendo essas chances desigualmente distribuídas.

Isso demonstra que as variáveis (status social, etnia, cor, condição familiar, etc.) relativas à pessoa do autor e da vítima condicionam e influênciam a seletividade das atividades das agências do sistema penal. Assim, os estereótipos de criminosos, associados geralmente a atributos pertencentes a pessoas dos baixos estratos sociais, torna-os extremamente vulneráveis, além de outros fatores concorrentes, a uma maior criminalização.

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