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A C RIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA

No documento OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO - Univali (páginas 70-74)

3.1 A DUPLA SELEÇÃO DO SISTEMA PENAL

3.1.2 A C RIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA

principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-la.

Os estudos acerca dos fenômenos da criminalidade de colarinho branco e da cifra negra da criminalidade trouxeram a lume a defasagem que existe entre a criminalidade real (as condutas criminalizáveis efetivamente praticadas) e a criminalidade estatística (oficialmente). Com essas revelações, estes estudos desqualificaram as estatísticas oficiais na quantificação da criminalidade real, mas foram usadas nos estudos acerca do fenômeno da criminalização efetuado pelas agências penais do controle social. Como explica Andrade95:

Reapropriadas doravante como informativas dos resultados da criminalização, as estatísticas criminais possibilitaram também a conclusão de que a cifra negra varia em razão da classe de estatística (policial, judicial ou penitenciária): nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia;

nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação.

Os delitos não perseguidos, que não chegando ao conhecimento da polícia (pois não são praticados nos locais por onde ela realiza suas operações rotineiras, ou seja, não tem visibilidade), nem chegam a nascer como fato estatístico, constituem a denominada criminalidade oculta, latente ou não- oficial.

Mesmo no caso dos delitos que chegam ao conhecimento da polícia, eles não são objetos de denúncia, julgamento e condenação, pois a passagem do crime de instância em instância (polícia, MP, judiciário, execução penal), resultada em cifras negras, isto é, o processo de criminalização em todas as suas fases é criador de cifra negras. Nesse sentido Andrade96:

Visível se torna, nesta perspectiva, como a criminalidade estatística não é, em absoluto, um retrato da criminalidade real, mas o resultado de um complexo processo de refração existindo entre ambas um profundo defasamento não apenas quantitativo, mas também aqui qualitativo. Pois o “efeito-de-

95 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 262.

96 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 263.

funil ou a “mortalidade de casos criminais” operada ao longo do corredor da delinqüência, isto é, no interior do sistema penal, resulta da ampla margem de discricionariedade seletiva dos agentes do controle.

Como resultado dessa desqualificação das estatísticas criminais, operou-se a correção do conceito comum de criminalidade, como conduta de uma minoria da população socialmente perigosa, pouco representada nos estratos superiores e concentradas nos inferiores, para um fenômeno que ocorre em todas as classes sociais, praticado pela maioria dos indivíduos e não resulta de fatores patológicos. E assim, o que opera como fator determinante é o process o de criminalização.

Assim Andrade97:

A correção fundamental desta estatística e explicação etiológica da criminalidade é a de que a criminalidade, além de ser uma conduta majoritária, é ubíqua, ou seja, presente em todos os estratos sociais. O que ocorre é que a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres não têm uma maior tendência a delinqüir, mas sim a serem criminalizadas. De modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe- se a equação maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada.

Assim, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua, e a clientela do sistema penal é composta regularmente em todos os lugares do mundo por pessoas pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que há um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como tais.

Desta forma, a minoria criminal a que se refere à explicação etiológica da criminalidade e a ideologia da defesa social, é o resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de indivíduos dentro total dos que praticam condutas delitivas, não sendo a conduta criminal, por si só, condição suficiente deste processo.

97 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 265.

Isso demonstra que as variáveis (status social, etnia, cor, condição familiar, etc.) relativas à pessoa do autor e da vítima condicionam e influenciam a seletividade das atividades das agências do sistema penal. Ou seja, os estereótipos de criminosos, associados geralmente a atributos pertencentes a pessoas dos baixos estratos sociais, torna-os extremamente vulneráveis, além de outros fatores concorrentes, a uma maior criminalização.

Conforme Baratta98:

As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da

“população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupados, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.

Tal distribuição desigual, em desvantagem dos indivíduos socialmente mais vulneráveis, isto é, que têm uma relação subprivilegiada ou precária com o mundo do trabalho e da população, ocorre segundo leis de um código social (second code ou basic rules) que regula a aplicação das normas abstratas por parte das instâncias oficiais do sistema penal. A hipótese da existência deste second code significa a refutação do caráter fortuito da desigual distribuição das definições criminais.

Como explica Andrade99:

Foi assim que a descoberta deste código social extralegal conduziu a uma explicação da regularidade da seleção (e das cifras negras) superadora da etiológica: da tendência a delinquir às maiores “chances” (tendência) de ser criminalizado.

98 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 165.

99 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 270.

Ou seja, a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque tenham uma tendência para delinqüir, mas precisamente porque têm maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes, sendo essas chances desigualmente distribuídas.

No documento OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO - Univali (páginas 70-74)

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