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CULTURA POPULAR NA IDADE MÉDIA: A CARNAVALIZAÇÃO EM BAKHTIN E GREGÓRIO

As contribuições de Cotrin (2005) sobre cultura popular na Idade Medieval são relevantes. Na visão do autor, além da cultura oficial, promovida, em grande parte, pelas autoridades da Igreja e pelos governos feudais, havia também muitas criações populares. Enquanto a cultura oficial era austera e consagrada à divisão social dominante, a cultura popular era impregnada de humor. A cultura popular manifestava-se por meio dos festejos carnavalescos, das encenações teatrais burlescas (cômica, satírica), dos gracejos dos bufões e bobos, das paródias que recriavam trechos da bíblia, das orações e hinos religiosos, das lendas clássicas. Nessas atividades, as pessoas promoviam o riso, divertindo o público e criticando os costumes.

A carnavalização, por meio de elementos da cultura popular, dentre eles o riso popular festivo, positivo e liberador, a imagem grotesca do corpo humano inacabado, a linguagem da praça pública, o hiperbolismo, destrona as visões oficiais e totalitárias de mundo, como também as vozes que monopolizam e se julgam superiores enquanto silenciam as outras.

Em outras palavras, com a festa, o mundo era colocado do avesso, vivia-se uma vida ao contrário, pela suspensão das leis, das proibições e das restrições da vida normal, invertia-se a ordem hierárquica e desaparecia o medo resultante das desigualdades sociais, acabava-se a veneração, a piedade, a etiqueta, aboliam-se as distâncias entre os homens, instalava-se uma nova forma de relações humanas, renova- se o mundo. “A festa que mais plenamente assumiu essa renovação universal foi o carnaval” (BARROS; FIORIN, 2003, p. 7).

Bakhtin desenvolve a questão da literatura carnavalesca principalmente ao descrever as festas medievais na obra do francês Rabelais, que em suas obras Gargântua e Pantagruel, criticou de forma satírica a excessiva religiosidade medieval. Tais festas são consideradas por Bakhtin como a segunda vida do povo, pois:

(...) ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; parecia terem construído ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida, a que os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção e em que viviam em datas determinadas. Isso criava espécie de dualidade do mundo (...).

(BAKHTIN, 1996, p. 4-5)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 11, 2014.

O satirizado, o destronado, em Bakhtin, gira em torno do mesmo objeto. Este se constitui de personagens subtraídas à crítica pela censura política e clerical:

M. Bakhtin descreve em termos topográficos certos processos de desmitificação peculiares ao grotesco e correntes na linguagem de Gargantua. Rabelais inverte posições, destrona o alto e põe-no de cabeça para baixo. O sublime decai a peça de escárnio. Trata-se de um jogo de perspectivas em torno do mesmo objeto, o direito e o avesso estético e moral de personagens em geral subtraídas à crítica pela censura política ou clerical. Os nomes proibidos do corpo e os termos que designam as funções vitais servem a Rabelais, como serviam aos bufões das cortes medievais, de válvulas de escape para investir contra o pesado ritual das conveniências. (BOSI, 1992, p. 109, ênfase no original)

Se se tem um só objeto, um grupo político ou clerical, destronado, invertido de ponta cabeça em Bakhtin, não é assim em Gregório. Para além desse grupo de autoridades portentosas rebaixadas também nos versos do baiano, outro grupo desprezado pela tinta do poeta é constituído pela mulher negra e (ou) mestiça: “Uma reflexão à parte merece a chamada poesia burlesca na qual a mulher negra e a mestiça se convertem em objeto misto de luxúria e desprezo” (BOSI, 1992, p. 107).

O preconceito de cor e de raça irrompe, cruel, contra as mulatas.

Segundo as discussões de Bosi, “a diferença de cor é o sinal mais ostensivo e mais natural da desigualdade que reina entre homens; e na estrutura colonial-escravista, ela é um traço inerente à separação dos estratos e das funções sociais” (BOSI, 1992, p. 106).

A tinta de Gregório que registra as circunstâncias vividas pela mulher branca e pela mulata ou negra não são do mesmo recipiente. Na fala de Bosi, “as águas não se misturam” (BOSI, 1992, p. 108). A coloração da tinta apresentada nos versos que gravitam em torno das mulheres brancas é virtuosa, vívida, colossal. Elas, como damas palacianas ou donzelas arcadianas, são entronizadas, elevadas, elogiadas etc. Além disso, essas mulheres:

(...) trazem nomes aureolados por séculos de poesia palaciana: dona Ângela, “anjo de nome, angélica na cara”; dona Teresa, “astro do prado, estrela nacarada”; dona Victória, “rosa encarnada”; dona Francelina, “enigma escondido, milagre composto de neve incendida em sangue”; dona Maria dos Povos, sua futura esposa, “discreta e formosíssima Maria”, efigiada como Sílvia depois das núpcias “por razão de honestidade”..., sem contar as donzelas de apelidos árcades, as Clóris, as Fílis, as Marfidas, que saltam das éclogas de Guarani

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para habitar os versos lânguidos do nosso baiano. (BOSI, 1992, p.

108)

Por seu lado, a tinta decai em coloração e brilho ao retratar as mulheres alforriadas. Nos versos gregorianos, elas são destronadas, rebaixadas, sobretudo pelo viés do baixo material e corporal:

Lá desfilam as negras e as mulatas que a carta de alforria lançara ao meretrício havia muito incubado na senzala. Estas são: a Maria Viegas, a quem o poeta descompõe e decompõe em décimas grotescas intituladas “Anatomia horrorosa que faz de uma negra chamada Maria Viegas”; a Badu, a Macotinha, a Inácia, a Antonica, a Luísa Çapata, mulata esfaimada, a Chica, desengraçada crioula, a Vivência e tantas outras que se confundem em uma galeria de fantasmas lúbricos onde não se conseguem ver rostos de mulher, mas tão-só exibições escatológicas de partes genitais e anais. (BOSI, 1992, p. 108-109)

A carnavalização, pelo baixo corporal e material, em Gregório, ganha mais sentido no uso de termos vulgares pela mulher que pertence à classe social depreciada na colônia, a das negras e mulatas, em situações festivas, inusitadas, abertas, nas praças públicas baianas. A linguagem de baixo calão é usada pelo baiano

“para marcar a ferro e fogo aqueles que caem na mira da sua irrisão” (BOSI, 1992, p.

110). Nessa direção, o baixo material e corporal, o caso das citações dos órgãos genitais, dos excrementos, o ato sexual, impressos em versos que retratam as mulheres de cor negra, tornam-se símbolos de agressividade: “(...) os órgãos e atos da vida sexual tornam-se, quando nomeados, símbolos de agressividade” (p. 110).

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