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DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O VINHO NO BANQUETE, QUE SEDEO NA MESMA FESTA AS JUÍZAS, E

MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM

Na visão de Bakhtin, as festas cômicas que existiam em oposição às festas oficiais (cerimônias sérias), tão populares no mundo medieval, tinham uma função de catarse, para o povo medieval, pois o riso estabelecia a oposição de dois mundos, a seriedade do mundo cotidiano em contrapartida à alegria carnavalesca, pois o carnaval não é uma manifestação artística, na medida em que os personagens do carnaval não são humoristas, visto que, diferentemente dos comediantes que se conhece, bufões,

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 11, 2014.

bobos, gigantes e anões continuam sendo bufões e bobos durante todas as circunstancias de suas vida.

Outra característica desses espetáculos públicos é a sua capacidade de romper as barreiras sociais, diferentemente das festas oficiais que reafirmam a existência delas, por isso, no carnaval existem novos deuses e reis ascendentes e o destronamento dos antigos, isso é uma forma de virar o mundo às avessas através de oposições na função e no posicionamento dos membros do corpo, o alto no baixo e o baixo no alto.

As imagens do banquete, relacionadas às expressões populares, perpassam o texto gregoriano. Conforme Bakhtin, “as imagens do banquete associam-se organicamente a todas as outras imagens da festa popular. O banquete é uma peça necessária a todo regozijo popular” (BAKHTIN, 1996, p. 243):

No grande dia do Amparo, estando as mulatas todas entre festas, e entre bodas, um caso sucedeu raro:

e foi, que não sendo avaro o jantar de canjirões, antes fervendo em cachões, os brindes de mão em mão depois de tanta razão

tiveram certas razões. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

Os versos evocam os convidados aproveitando o banquete, brindando de mão em mão. O corpo grotesco aberto, incompleto, em interação com o mundo, prenhe de sentido, é evocado nos versos por meio da bebedice exagerada, causando uma ruptura com corpo clássico perfeito e acabado:

Chegou-se a tais menoscabos que segundo agora ouvi, havia de haver ali uma de todos os diabos:

mas chegando quatro cabos de putaria anciana,

a Puta mais veterana

disse então, que não cuidava, que tais efeitos causava

vinhaça tão soberana. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

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Nota-se que o corpo grotesco nos versos possui dimensões exageradas, seu apetite é exagerado, e manifesta positivamente os princípios da vida material e corporal, como a comida e a bebida em abundância e as necessidades fisiológicas e sexuais. Esse corpo é modelo para uma sociedade carnavalesca, que se alimenta em abundância, festeja alegremente e se entrega livremente aos prazeres sexuais. As palavras “Çapata”, “sodomia” e “ferrão evocam as relações sexuais:

Maribonda, minha ingrata tão pesada ali se viu, que desmaiada caiu sobre Luísa Çapata:

viu-se uma, e outra Mulata em forma de Sodomia, e como na casa havia tal grita, e tal contusão não se advertiu por então

o ferrão, que lhe metia. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

A hiperbolização ou exagero ocorre com a imagem grotesca do corpo incompleto, em interação com o mundo. O baixo material e corporal, com imagem do ventre insaciável, perpassa os versos:

Tal cópia de jeribita houve naquele folguedo, que em nada se tem segredo, antes tudo se vomita:

entre tantas Mariquita a Juíza era de ver, porque vendo ali verter o vinho, que ela comprara, de sorte se magoara,

que esteve para o beber. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

O beber e o comer abundantemente são dádivas do trabalho. Para Bakhtin, “no sistema das imagens da Antiguidade, o comer era inseparável do trabalho.

Era o coroamento do trabalho e da luta. O trabalho triunfava no comer. O encontro do homem com o mundo do trabalho, sua luta com ele terminava com a absorção de alimento” (BAKHTIN, 1996, p. 246). No poema gregoriano, os convidados agem diferentes de um indivíduo da vida cotidiana. Bertola, por exemplo, saciou a sua fome no jantar ao ingerir quatorze pratos de alimentos, incluindo caldos e carnes. A descrição da

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personagem no ato da bebedice e da comilança sugere um gesto de rebeldia e triunfo do banquete popular sobre o jantar privado:

Bertola devia estar faminta, e desconjuntada, pois vendo a pendência armada, tratou de se caldear:

bebeu naquele jantar sete pratos não pequenos de caldo, e sete não menos de carne, e é de reparar que a pudera um só matar,

e escapar de dois setenos. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

O texto de Gregório transforma as praças e as ruas em espaços de resistência e de ruptura com o cotidiano do povo, ao soltar a voz e o riso sufocados pelo autoritarismo governamental e pela árdua jornada de trabalho escravocrata. Na concepção de Bakhtin, o riso na Idade Média estava relegado para fora de todas as esferas oficiais da ideologia e de todas as formas oficiais, rigorosas, e da vida e do comércio humano. O riso tinha sido expurgado do culto religioso, do cerimonial feudal e estatal, da etiqueta social e de todos os gêneros da ideologia elevada. O tom sério caracterizava a cultura medieval oficial.

Apesar disso, o riso, separado do culto e da concepção de mundo oficiais, criou seu próprio espaço não-oficial, mas quase legal, ao abrigo de cada uma das festas, que, além de seu aspecto oficial, religioso e estatal, possuíam um segundo aspecto popular, carnavalesco, público, cujos princípios organizadores eram o riso e o baixo material e corporal. As imagens do riso liberador, do baixo material e corporal - com o hiperbolismo do corpo aberto em interação com o mundo – são evocadas na décima:

Sossegada a gritaria houve mulata repolho,

que, o que bebeu por um olho, pelo outro o desbebia:

mas se chorava, ou se ria, jamais ninguém compreendera, se não se vira, e soubera pelo vinho despendido, que se tinha desbebido,

quanto vinho se bebera. (MATOS, citado em AMADO, 1969, p. 622)

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Sumarizando, o poema promove, por meio do elemento circunstancial da crônica, as manifestações da imagem do banquete suntuoso, festivo e popular, de modo a fazer do texto efêmero se eternizar.

CONCLUSÃO

Ao negar a centralização da palavra vigente, política e esteticamente, Gregório de Matos elimina as fronteiras entre o oficial e o não-oficial e entre poesia e crônica, numa perspectiva satírico-burlesco-carnavalesca. A oscilação entre o gênero narrativo e o lírico é um dos motivos que ratifica o espírito transgressor do poeta. Os poemas analisados apresentam o caráter circunstancial e efêmero da crônica; como também o gênero lírico na sua vertente burlesca que era marginalizada na época do poeta.

Tais textos resistiram ao consumo imediato e vêm perpassando séculos em função, também, da presença de vários ingredientes literários como musicalidade, jogo de ideias e palavras, relação com o contexto histórico e estético da época, entre outros. Para o momento artístico do seu tempo, o poeta baiano foi além da recriação da realidade, porque fecundou o fazer poético na colônia.

As análises mostraram que o caráter poético dos poemas superou a efemeridade da crônica e que o Boca do Inferno conseguiu evitar que Cronos devorasse seus textos. Os resultados finais confirmam o baiano como inovador na literatura brasileira setecentista, o que reforça o rompimento do conceito tradicional de gêneros, ao mesclar poesia e crônica.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. 3. ed. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec; Brasília: Edunb, 1996.

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