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UM DIVERTIMENTO NOBRE, ÚTIL E AGRADÁVEL

Com isso em mente, vamos com mais detalhe a O garimpeiro.

Talvez não seja tarde para uma sinopse. A trama se passa no município de Bagagem e arredores, na província de Minas, no Brasil do século XIX. Elias e Lúcia se amam em segredo. Ele é um jovem muito bem instruído e de muito bom caráter, apesar de pobre;

ela é boa moça, órfã de mãe, e vive reclusa na propriedade do pai, o Major: um homem

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de posses e prestígio, que jamais permitiria que aquele amor secreto se transformasse em casamento. Um abismo separa os amantes: o abismo aberto pela pobreza. Mas o Brasil vive uma época de transformações e o garimpo surge como uma oportunidade para Elias subir degraus na estrutura social de um ambiente rural que, ainda que lentamente, cresce e ameaça a natureza. A natureza, em O garimpeiro, é o elemento fundador da nação, é o que distingue o Brasil entre as outras forças do mundo.

Já no começo do romance o narrador vem ao leitor dizer que uma vez que “ali ainda não tenham penetrado os benefícios do progresso material, todavia a condição moral e intelectual da população é e sempre foi excelente” (GUIMARÃES, 2008, p. 5). Bernardo Guimarães e seu narrador desejavam transmitir essa ideia ao público leitor. Seria simples, portanto, entender o autor como um contador de casos, alguém que não dá espaço a outra voz e, portanto, mesmo durante os diálogos, deixa transparecer sua voz erudita ao emular o falar de alguém simples, criando, assim, um narrador que pretende “poupar” seu leitor através da criação de uma linguagem ideal. Novamente Candido pode ser útil aqui – com a licença para mais uma citação:

A língua e os costumes descritos eram próximos dos da cidade, apresentando difícil problema de estilização; de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar tão livremente quanto a do índio e que dependia do esforço criador dos escritores daqui. A obtenção da verossimilhança era, neste caso mais difícil, pois o original estava ao alcance do leitor. Daí a ambigüidade que desde o início marcou o nosso regionalismo; e que, levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado, acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais geral e de certo modo mais própria do país. (CANDIDO, 2000, p. 219)

Quando Bernardo Guimarães abre o romance com uma espécie de descrição do povo amalgamado à paisagem, ele acaba por realizar a apresentação de seu projeto estético e das personagens que o sustentam. E nesse sentido a realidade importa pouco; o retrato preciso importa muito pouco. Daí a criação de um lugar ideal. Alfredo Bosi vê um idealista em Bernardo Guimarães: “Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do campo” (BOSI, 1988, p. 155). Assim, começamos o primeiro capítulo acompanhando de maneira panorâmica as regiões que formam os municípios de Araxá, Patrocínio e Bagagem; chegamos a um “pequeno córrego situado num vale delicioso”

(GUIMARÃES, 2008, p. 8), que acaba na fazenda do Major. Ao entrar no território da fazenda, damos com a Sinhazinha a fazer um tipo de piquenique enquanto observa as escravas na labuta: “Era dotada de certa elegância natural, e de uma delicadeza de sentimentos que não se esperaria encontrar em uma roceira”, e em seguida: “Esses dotes ela os devia em parte ao céu, que tanto a favorecera” (p. 8).

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Lúcia é a moça de família idealizada, boa com todo o mundo. Virginal e bem educada, ela junta o fino trato de uma boa educação à simplicidade da roça. Ela é religiosa e consente tratar a escrava Joana em pé de igualdade. A bem da verdade, Lúcia não tem defeito. Ela fica corada e quando se apaixona se põe aflita. Rejeita todas as investidas de qualquer pretendente que não seja Elias. Lúcia triste ganha vocabulário de flora e fauna: "(...) ela definhava, como a planta mimosa a quem falta a seiva e o orvalho do céu" (GUIMARÃES, 2008, p. 34) ou andava triste como "a juriti, a quem exilaram da sombra silenciosa de seus bosques” (p. 56). Já no primeiro capítulo, um

“gentil mancebo” não lhe sai da lembrança. O conheceremos com detalhes no próximo capítulo do romance, o segundo, o que trata da Cavalhada.

Por enquanto, Elias é um moço que vai competir nas cavalhadas, de quem “ouvimos” a escrava falar: “(...) é um mocetão bonito” (GUIMARÃES, 2008, p. 7).

Assim como sabemos que Lúcia era da roça e tinha sentimentos nobres, saberemos, mais tarde, que Elias fez seus estudos preparatórios e, por simples amor à leitura, adquiriu variada instrução. É curioso pensar nas duas personagens principais como figuras destacadas da realidade local. São do lugar, mas não representam o lugar. São exceções, como era exceção o Bernardo Guimarães, juiz, poeta, romancista, articulista, habitando o interior do Brasil. A esse respeito, Bosi atenta para o “impasse criado pelo encontro do homem culto (...) com uma comunidade rústica onde é infinitamente menor a distância entre o natural e o cultural” (BOSI, 1988, p. 158). Guimarães tentou resolver tal problema, ainda de acordo com Bosi, através de uma linguagem propositadamente ingênua e espontânea que, no fim das contas, refletia as “convenções do citadino em relação ao campo” (p. 158).

Rapaz do campo, Elias nos é apresentado pormenorizadamente no segundo capítulo, em que competirá nas cavalhadas. De novo, a paisagem local está em

“uma das mais lindas e aprazíveis situações” (GUIMARÃES, 2008, p. 9). Uma cavalhada é uma celebração de origem portuguesa que, ainda hoje, tem ecos em diversas partes do Brasil. Inicialmente, tratava-se de um misto de festa e torneio marcial. No romance, o dia da celebração vinha sendo aguardado com ansiedade pelos que ali viviam, e a chegada do Major e de sua família é marcada pela impressão que a beleza de Lúcia acaba por causar no povo simples que, a bem da verdade, só faz por tratar a heroína como uma celebridade local. De certa maneira, em paralelo à festa, Lúcia também é entretenimento. Não custa lembrar que “ali ainda não haviam penetrado os benefícios do progresso material” (p. 5) e o povo não tinha muito alívio para mãos e olhos.

O capítulo dedicado à Cavalhada em O garimpeiro serve a pelo menos três propósitos no enredo: introduzir Elias definitivamente e colocar em ação o herói da trama, que acaba sendo, não por coincidência, o herói da festa; expor Lúcia ao olhar da comunidade em que ela, mais do que conviver, flutua; e, por último e mais importante, anunciar uma espécie de “moral da história” ou princípio fundamentador da obra de arte através da teoria de Elias sobre as cavalhadas. Assim é o herói de O garimpeiro: um rapaz que alia o vigor físico de um príncipe mouro à experiência no trato com o povo que teria um trabalhador braçal e ao brilhantismo intelectual de alguém que

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nada deveria aos filhos dos barões que eram enviados a estudar no Velho Mundo. Jovem, viril, apaixonado, respeitador; sua seriedade logo se opõe ao tom galhofeiro que salta das palavras de um jovem negociante fluminense que, “para se inculcar de fina e polida educação escarnecia de tudo quanto era do sertão, e, naquela ocasião, para dar mostras de seu espírito, começou pelas cavalhadas” (GUIMARÃES, 2008, p. 11). Esse trecho é particularmente interessante. Elias percebeu que, para onde quer que lançasse os olhos, só encontraria outros galalaus tentando, ainda que de forma desajeitada, impressionar e fazer a corte à Lúcia. Quando o jovem negociante fluminense desanda a gozar das cavalhadas para, ao demonstrar eloquência e intimidade com os costumes da cidade, impressionar Lúcia, nessa hora uma fúria transformada em verborragia toma conta do rapaz pobre e sertanejo e ele não pode deixar passar. Se deixasse, ele não seria a figura idealizada que é. Bernardo Guimarães encontrou, logo ali nas primeiras páginas de O garimpeiro, o espaço que considerou adequado para professar o que considerava o ideal de uma arte útil. Com o perdão pela citação longa:

-Perdão – replicou Elias com polidez – não lhe acho razão, meu senhor, e entendo que a cavalhada é um divertimento muito nobre, muito agradável, e muito útil.

-Deveras! E não me fará o favor de dizer em quê?

-Em quê? Em muita coisa. O senhor bem sabe que as cavalhadas não são mais do que uma imagem, um simulacro das antigas justas e torneios. Mas esses divertimentos bárbaros, em que se derramava sangue, e que muitas vezes custavam a vida dos justadores, não podem compadecer-se com as luzes e costumes da civilização atual, e admira que, mesmo nos sanguinários tempos da média idade, fossem tolerados entre povos cristãos. A cavalhada, porém, ficou como uma imitação daquelas lutas cavalheirescas, que, não custando o sangue nem a vida de ninguém, ofecere um brilhante e nobre espetáculo aos olhos do povo. A equitação é uma arte útil, necessária mesmo;

ninguém o pode contestar. A cavalhada produz estímulo e emulação entre os moços (…). Dizendo estas últimas palavras, Elias lançou furtivamente sobre Lúcia um olhar rápido. (GUIMARÃES,2008, p. 12)

O que marca primeiro a diferença entre aquele ambiente e o ambiente urbano é o jovem que escarnece das cavalhadas, a quem alguém responde que na corte existem divertimentos outros, mas ali, na roça, a Cavalhada é o que existe, é o que é possível. Elias trava uma batalha verbal antes de simular outra batalha durante as celebrações. Dali a pouco, perguntará: “Qual será mais proveitoso ao país, um bom dançarino ou um bom cavaleiro?” (GUIMARÃES, 2008, p. 13). Não há espaço para a arte desinteressada na concepção de Bernardo Guimarães. O diálogo entre Elias e o jovem

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negociante fluminense deixa explícitos dois níveis de discurso em tom professoral. O primeiro é o de Elias que não pôde ver os costumes do sertão sendo atacados, assim como não pôde baixar a cabeça e ficar quieto às vistas de Lúcia; o segundo é o do autor, que usa a personagem para passar um recado ao público leitor: o de que as artes encontram função na sociedade e, mais do que isso, que parte da função das artes é contribuir para a elevação dos costumes, para a formação de um povo. Tal pensamento não foi exclusividade de Bernardo Guimarães durante o século XIX brasileiro. O autor de O garimpeiro, porém, era “coerente num posicionamento contrário à centralização do saber literário na Corte fluminense” (GOMES, 2004, p. 4), posição que o levou a defender uma democratização do acesso ao saber artístico, com maior participação das províncias, numa forma de autonomia cultural expressa, aqui, nesse episódio da Cavalhada. O estado letárgico em que se encontravam as letras brasileiras se alteraria por um encontro com “o nosso passado, as tradições provincianas, e o nosso presente, a contemporaneidade romântica” (p. 9). Este pensamento é expresso em Reflexões sobre a poesia brasileira: seria necessário encontrar a poesia na voz do povo, com a função civilizatória de popularizar o conhecimento, devendo ser fonte de saber para as gerações futuras.

“A equitação é uma arte útil” (GUIMARÃES, 2008, p. 12), disse Elias. Na Cavalhada há duas ideias. Uma a da utilidade de uma arte. A outra, a da transformação de alguma coisa estrangeira em algum costume local. Esse era um lugar no mundo que permitia isso: há no romance certo ressentimento contrário à reordenação da natureza brasileira em prol de um estrangeiramento dos costumes, mesmo no que diz respeito ao trabalho e à organização social. Já para o final do livro o crescimento do povoado de Bagagem, que de alguma maneira se desnaturaliza, acompanha a separação de Elias e Lúcia, marca o período de infelicidade dela, além da riqueza que ele consegue fazer à custa da exploração da natureza. Tudo era lindo e perfeito quando eles se conheceram, mas no espaço de dois anos não só a pobreza chegou até Lúcia como a região se transformou. A esse respeito, Gomes de Almeida dirá que as bases econômicas então sedimentadas, vistas como eminentemente brasileiras e essencialmente rurais, viveram, durante o período, “um declínio entendido como efeito do desenvolvimento urbano-industrial, tendo como consequência um processo de desaparição de culturas tradicionais” (ALMEIDA, 1981, p. 78). Mesmo que a região da Bagagem esteja distante dos poucos centros urbanos do Brasil do século XIX, a bancarrota vivida pelo Major pode ser exemplo deste processo. Não por acaso o episódio da Cavalhada se situa nas primeiras páginas do romance: no decorrer da trama, a cor local como que se dilui.

Nesse sentido, no discurso de Elias e no entender do narrador de O garimpeiro, a equitação é uma arte útil por representar ainda uma forma de resistência. Diz Elias ao negociante acostumado com a fineza das cortes: “O senhor acha ridícula a cavalhada;

mas pergunto eu, qual será mais ridículo, uma cavalhada ou um baile?” (GUIMARÃES, 2008, p. 13). Bernardo Guimarães parece querer dizer que, apesar de instruído, seu herói interiorano não é afrescalhado como seria se vivesse no Rio de Janeiro.

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Tão no início do romance, soa engraçada a fala de Elias sobre os

“divertimentos bárbaros” de uma idade média em que se derramava sangue a troco de nada. Especialmente engraçada levando em conta que “o original estava ao alcance do leitor” (CANDIDO, 2000, p. 219). Elias é uma personagem que, se age e fala de maneira idealizada – a partir da intenção, exposta pelo autor, de construir personagens que funcionem como modelos – por força do material com o qual é feito o romance, termina por ser atravessada pela realidade. Ele trabalha, é roubado, enganado, preso, humilhado, vê o velho amigo morrer. Aquele mundo sertanejo da Bagagem age sobre ele, como se ele fosse atravessado por filamentos da realidade.

Se Bernardo Guimarães disse escolher “só o que há de conveniente, útil e decoroso na vida real”, o caminho de Elias acaba funcionando como um território perigoso. Aqui, a guarida da dura realidade é ligeiramente ameaçada. Ele sente a presença da violência que Lúcia, como moça de família, mal consegue imaginar. Mesmo quando uma ameaça paira sobre ela, vinda do pretendente Leonel que deseja apenas deflorá-la e abandoná-la, a racionalização deste perigo faz parte do universo de preocupações de Elias. E a ameaça de pobreza que ela passa, mesmo quando já saiu da fazenda e só tem uma escrava, com o Major humilhado e mal conseguindo sustentar as filhas, poderia se resolver com o casamento forçado se Lúcia não fosse tão correta, tão cheia de caráter, tão impregnada daquele sentimento do amor que o leitor não pôde ver de onde veio.

Como modelos, Lúcia e Elias estão inseridos num ambiente que nos é apresentado como naturalmente belo e saudável. Tudo é lindo e ali o povo é muito bom;

no entanto, as personagens são postas em situação de risco tão logo circulam pelo espaço de convivência com o povo. No garimpo, Elias trabalha para ser enganado.

Depois, quando tudo vai de mal a pior, sem aparente solução, surge o velho capataz –

“herdado”, aliás, do pai – prestes a ser engolido pelo mundo que os cerca. A velha que o encontrou funciona como uma bruxa ou feiticeira – imagem, além de tudo, importante na poesia de Bernardo Guimarães; o barraco é uma espécie de teia-de-aranha. Herói, Elias se salva enquanto salva o amigo ao permitir-lhe uma morte tranquila. De quebra, recebe enfim o fruto do garimpo. Curioso que o trabalho duro tenha levado Elias à beira da louca e somente o acaso tenha lhe trazido a fortuna, resolvendo a trama.

Vimos, portanto, no Bernardo Guimarães das obras aqui citadas, que a presença do nacionalismo como demarcação da especificidade literária do Brasil se dá pela via da idealização do caráter nobre da paisagem e das personagens que são moldadas por essa paisagem. Daí a natureza como elemento central nessa reflexão: a natureza figurando a nação, com a marca de uma especificidade; há uma espécie de ruptura com o estrangeiro através da natureza, em contraste com os costumes estrangeiros que significavam o progresso industrial e a desnaturalização do campo, de alguma maneira. Partindo deste ponto, Bernardo Guimarães tentou representar a diversidade literária brasileira, no movimento das culturas variando de estado para estado. Talvez isto se realize ainda naquilo que afirmava Bosi: trata-se de um intelectual retratando uma comunidade rústica onde é pequena a distância entre o natural e o

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cultural. De maneira que, quando você ressalta a natureza você também estará ressaltando a cultura.

Encontraremos, ainda, no romance e nos textos críticos de Bernardo Guimarães aqui citados, duas funções do fazer literário: primeiro ele é uma guarida da dura realidade ou lugar evacionista, depois é um fator social ou elemento firmador de princípios. É possível que estas duas funções se constituam nessa opção em idealizar, em não precisar do real. Primeiro, o real é triste e não diverte; depois, mostrar um facínora ou um iletrado não educa, não inspira. De maneira geral, a obra aqui analisada apresenta um Bernardo Guimarães com um projeto estético bem delineado dentro dos moldes românticos, um projeto que, porém, toma forma com algumas contradições que apontam já em outras direções.

CONCLUSÃO

O garimpeiro nos coloca diante de uma série de ambiguidades. Se, por um lado, Bernardo Guimarães se esforçou para construir personagens que se enquadrassem nas fórmulas românticas e atuassem como modelos de elevação moral;

por outro, certa observação da paisagem humana, no romance, atua como complicadora de seu projeto inicial. Candido enxerga o regionalismo de Bernardo Guimarães como uma forma de contrapeso realista ao romantismo veiculado a modelos estrangeiros. Tais contradições ou discrepâncias foram apontadas, de maneira mais ou menos acidental e ainda muito cedo na história da repercussão da obra de Bernardo Guimarães, por Arthur Azevedo que, em 1885, condenou os poemas obscenos do autor de O garimpeiro sob a acusação de que traíam “os elevados deveres de construir uma literatura de alto nível”

(AZEVEDO, citado em CORREA, 2006, p. 216). Tal acusação deixa evidente, no campo literário brasileiro de então, a “vigência de uma ideologia vinculando literatura e atividade do escritor com pátria e nacionalidade, que se contrapõe a toda produção que não funcione convergindo para ela” (CORREA, 2006, p. 216). Como já destacado anteriormente, os pressupostos românticos não eram privilégio de Bernardo Guimarães.

É curioso perceber, diante desse quadro, que boa parte dos estudos críticos sobre Bernardo Guimarães, hoje, se concentra na reflexão sobre A orgia dos duendes, O elixir do Pajé e A origem do mênstruo. Correa destaca, inclusive, que sucessivas edições contendo os três poemas são “indicativas de uma presença importante no meio editorial brasileiro, especialmente cauteloso nos seus investimentos” (p. 217).

De alguma maneira, poemas inicialmente destinados a circular entre uns poucos intelectuais paulistanos ganharam relevo semelhante ao obtido por romances como O garimpeiro e O seminarista, desses que toda a gente é obrigada a ler na escola. Não cabe uma longa análise da repercussão daqueles e destes no presente artigo. A origem do mênstruo e O garimpeiro guardam, porém, imagens muito

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representativas da obra de arte e sua negociação com o público leitor. Por meio dessas imagens será possível reforçar ainda uma última vez as tensões internas presentes em O garimpeiro.

É já perto do desfecho do romance, no momento em que Lúcia está lavando roupa no quintal, com o começo das pernas aparecendo, que surge uma imagem salutar para que possamos contrapor o gesto criativo no romance àquele do poema.

Quase espionando um casebre vizinho, e por obra do acaso, Elias dá com a seguinte cena.

(...) Lúcia, com os pés descalços mergulhados n'água, a saia do vestido, presa por um lenço, regaçada quase até os joelhos, o corpo do vestido descido, os róseos seios mal cobertos pela fina e transparente camisa e os compridos cabelos juntados atrás por uma fita, caindo-lhe pelas espáduas, estava lavando roupa. Debruçada sobre o tanque, cujas águas borbulhando-lhe em torno beijavam amorosas as duas colunas de alabastro nelas mergulhadas, dir-se-ia Vênus no momento em que nascia da espuma do mar, ou branca açucena que ali nascera à beira da fonte, e pendia o cálix a mirar-se em seu cristalino regaço. (GUIMARÃES, 2008, p. 62)

O narrador descreverá as impressões de Elias dizendo que o peão nunca havia visto Lúcia tão fascinadora como agora, pobre e na labuta. Quando rica e feliz não havia despertado semelhante sentimento. Elias sente um misto de emoção e vergonha: chega a temer que as batidas de seu coração sejam ouvidas e não quer ser visto às escondidas “profanando” a imagem que tem diante dos olhos. Escrito anos antes, A origem do mênstruo descreve o seguinte. A Vênus está aparando os pêlos púbicos à beira de uma lagoa quando passa uma ninfa; gozadora, a ninfa pensa ter visto a Vênus defecando e atira uma pedra. Então a Vênus, sem querer por ter sido sacudida, corta a genitália e começa a sangrar. No fim do poema, ela amaldiçoa as mulheres com o sangramento uma vez por mês.

O desejo está lá. A água, a sensualidade, a menção à Vênus, o chamado da pele. A impressão que se tem é que Bernardo Guimarães se esquivou de afirmar que o mocinho Elias, assim como o vilão Leonel, viu a menina e só faltou pular nela como faria um cachorro. E é quase isso que Elias faz na sequência: ele pula o cercado e se apresenta, Lúcia começa a se recompor e cobrir o corpo. Não custa lembrar que as investidas amorosas de Elias, no começo do relacionamento, foram todas distantes dos olhos do Major, ao contrário das de Leonel que, a não ser por pretender intimamente deflorar e abandonar, se comportou conforme os costumes locais – e talvez a prática de deflorar e abandonar, enquanto lei não escrita, não estivesse no universo alcançável do romancista. O desejo sexual mal contido de Elias e a pureza idealizada de