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O DIÁLOGO ENTRE AS OBRAS, O DIÁLOGO ENTRE OS TEMPOS

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 11, 2014.

Assim, pode-se encarar o trabalho de Agustina Bessa-Luís como mais uma obra que se soma a outras obras desde a Antiguidade e que buscam dar conta de compreender figuras históricas, bem como toda uma época (ou épocas, neste caso), como também fez Plutarco nas Vidas paralelas. A seguir faremos reflexões sobre as relações intertextuais estabelecidas e a sua importância na configuração estrutural de Ordens menores.

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A importância do outro na construção dos personagens é uma característica da escrita de Agustina Bessa-Luís: como nota Silviana Rodrigues Lopes, em

“Agustina Bessa-Luís o motor da escrita é, como em Dostoievski, a relação com outrem”

(LOPES, 1990, p. 121). Luís Matias é um exemplo dessa relação com outrem, pois quase todo seu discurso é permeado pela influência de outros discursos: é um devorador de livros, e tudo que pode compara a algum episódio literário: para quase todas as suas reflexões cita uma referência literária. Além dos textos grego-latinos, em alguns momentos se refere a passagens bíblicas (Aarão, Jacó, Lia e Raquel), a Dante, ao mito do doutor Fausto. Seu pai, vendo-o “devorar romances e biografias” dizia que “cada vez mais Luís Matias se ocupava com a vida dos outros” (BESSA-LUÍS, 1992, p. 188). Mesmo os demais personagens de Ordens menores são como que conscientes repetidores de textos antigos: a certa altura, por exemplo, Luís Matias descobre que o discurso de Natan era inspirado no escritor renascentista Campanella.

O narrador também se vale de comparações e alusões literárias para amparar suas reflexões: no caso, episódios bíblicos e figuras de destaque no cristianismo (José, Benjamin, Jesus, Paulo, João de Patmos). A certa altura, como que se sentindo obrigado a seguir fielmente a lógica de alusões históricas e literárias, tão constantes em Ordens menores, diz o narrador: “Se tivéssemos que comparar José Tibério com alguém salientado pela História, seria talvez Benjamim, o jovem irmão de José do Egito...”

(BESSA-LUÍS, 1992, p. 98).

Ao longo de todo romance percebemos que os discursos dos personagens – mesmo as ideias muitas vezes, como vimos – são exteriores, isto é, provém do outro, do outro grego que chegou até nós por obras literárias, estabelecendo relações de intertextualidade a todo o momento ao longo da narrativa. Chegamos à conclusão de que tudo está em permanente comunicação: personagens, autores, obras, leituras. E assim como os personagens do romance, ao seu modo, utilizam, interpretam e completam as obras que vieram antes, já que os personagens são contagiados pelo que lêem, o próprio romance Ordens menores precisa de outros textos que o completem: é melhor compreendido se conhecermos os escritos de Platão, Xenofonte, Plutarco, que iluminam Ordens menores; e Ordens menores ilumina os outros textos anteriores. É uma relação de interdependência e comunicação entre obras para a melhor realização do ideal artístico.

CONCLUSÃO

Expostas estas nuances do romance, esperamos ter demonstrado a importância do romance Ordens menores não apenas no que diz respeito a sua condição de obra artística, mas também no que concerne ao seu trabalho de questionamento e problematização de um passado distante e, ao mesmo tempo, comum a todos nós, nos

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levando a refletir sobre o que acontece ao se desarraigar grandes figuras humanas do tempo e meios concretos em que viveram para uma conjuntura diferente.

O processo de reinterpretação, posto em prática tão livremente, produz ao menos dois efeitos: um deles é a discussão desses textos e sua interpretação através do narrador e dos personagens; o outro efeito é a refiguração desses textos num contexto novo, diverso do original. Isso reativa o passado dando-lhe novos e irônicos contornos, exigindo do leitor maior conhecimento do passado, levando-o inclusive a voltar a esse passado através da leitura dos textos antigos para uma maior integração com esse romance. Assim como o narrador e os personagens consultam, interpretam e completam as histórias de Alcibíades, Sócrates e Atenas, Agustina nos pede que façamos o mesmo com os personagens de Ordens menores, nos fazendo “pensar com os antigos gregos”, conforme a expressão de Jacyntho Lins Brandão. Ao sermos confrontados com o nosso passado, representados aqui nos gregos, “o nosso outro natural”, somos conduzidos a descobrir “o outro (ou muitos outros) em nós mesmos” (BRANDÃO, 2002, p. 31).

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. Tradução de Aurora F. Bernadini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Junior, Helena S. Nazário, Homero F de Andrade. São Paulo: Hucitec, 2002.

BESSA-LUÍS, A. Ordens menores. Lisboa: Guimarães, 1992.

_____. Fanny Owen. Lisboa: Lisboa: Guimarães, 1986.

BRANDÃO, J. L. Nós e os gregos. In: LEÃO, Â. V.; FERREIRA, A. C.; GOULART, A. T. Os gregos. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 29-44. (Coleção Convite ao pensar).

HUTINGTON, S. P. O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LOPES, S. R. Bruscamente: Sobre a obra de Agustina Bessa-Luís. In: LOPES, S. R.

Aprendizagem do incerto. Lisboa: Litoral, 1990, p. 119-127.

LUCIANO. Diálogos do mortos. Luciano I. Tradução de Custódio Magueijo. Coimbra:

Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p. 191-278. (Coleção Autores gregos e latinos).

PERRONE-MOISÉS, L. Texto, crítica, escritura. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.

PLATÃO. Apologia. In: _____. Platão. Tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 65-97. (Coleção Os pensadores).

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XENOFONTE. Apologia de Sócrates. In: _____. Banquete, apologia de Sócrates. Tradução de Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008, p.

85-114. (Coleção Autores gregos e latinos).

_____. Memoráveis. Tradução de Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009. (Coleção Autores gregos e latinos).

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