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4. EDUCAÇÃO

4.4 Regenerar o humanismo?

Chego, então, à última confluência. Minha obra O método, minhas propostas de reforma da educação e minha tentativa de revelar uma via para a humanidade não são apenas três faces da mesma aventura, elas convergem rumo a uma derradeira mensagem: o humanismo regenerado (MORIN, 2020, p.86).

Apesar de não aparecer literalmente nas obras que Edgar Morin dedica à educação, optamos pela inclusão em nosso trabalho da proposição ‘regenerar o humanismo’, isso porque ela tem um forte apelo educacional e, também, de alguma forma, inclui as proposições vistas anteriormente. Então, seguindo a dinâmica desse capítulo, aqui nos questionamos sobre se e como a regeneração do humanismo está fundamentada na noção biológica de sujeito formulada pelo autor.

Entendemos que a ideia de regeneração, em Morin, tem como base algo que vale para todos os seres, vivos e não vivos: é a ideia de que todos os sistemas estão em constante processo de ordem-desordem-interação-reorganização, conforme

vimos no primeiro capítulo desse trabalho. Nesse sentido, a regeneração do humanismo é também um processo de reorganização. Sendo assim, que ordem Morin pretende reestabelecer, ainda que temporariamente? Ou então, que desordem ele quer combater?

Nos parece a busca de Morin é por uma nova forma de organização, bem como um processo homeostático que seja capaz de preservar e melhorar a vida humana na Terra. Já vimos que o autor caracteriza o ser humano como sapiens/demens. Porém, segundo ele, a educação moderna-cartesiana priorizou o sapiens cogitante e, consequentemente, o faber tecnicista, o economicus racionalista, e essa educação tende a limitar grande parte da humanidade a uma sobrevivência prosaica. E a ênfase nesses aspectos, entre outras coisas, sujeitou o humano a ciência, a técnica, a economia, ao lucro, esse potente ‘quadrimotor’, que está levando a humanidade rumo a um abismo (MORIN, 2011b).

Então, para restaurar a complexidade humana desfeita na fragmentação do conhecimento, que considera o ser humano apenas sapiens, faber, economicus ou prosaico; para reestabelecer o equilíbrio perdido, sabendo que esse reestabelecimento é sempre provisório; enfim, para regenerar o humano, Morin defende a ideia de que as ciências e a educação valorizem também outros aspectos humano, como o demens passional, o imaginarius mitológico, o ludens consumas, o poético amoroso. Contudo, o autor não nega a importância da racionalidade humana. Por exemplo, ele diz que:

Homo é, de fato, sapiens, faber, econômicus. A racionalidade é uma disposição mental que suscita um conhecimento objetivo do mundo exterior, elabora estratégias eficazes, realiza análises críticas e opõe um princípio de realidade ao princípio do desejo. Os avanços da ciência, da técnica e da economia confirmam a eficácia da racionalidade humana (MORIN, 2012, p116).

Porém, na sequência da citação acima, Morin faz referência a autores diversos, como Platão, Freud e Maclean, a fim de afirmar que o humano não é apenas sapiens, mas também demens. E conclui: “Seria irracional, louco e delirante ocultar o componente irracional, louco e delirante do humano” (MORIN, 2012, p117).

É importante ressaltar que Morin não faz uma associação direta do demens como o lado mal do humano, apesar de não negar a possibilidade da presença da maldade na loucura. Mas, quando se refere ao sapiens, sem negar os aspectos

positivos da sapiência humana, o autor é mais taxativo. Por exemplo, ele diz que o humano faber é também killer, dado que o extermínios de povos por outros povos é uma prática antiga, sendo provável que sapiens tenha exterminado já o seu ancestral neandertal. E o pior é que isso não ficou no passado, pois, no presente e no futuro, “Por toda a parte onde o homo continua a pretender-se sapiens, onde imperam o homo faber e o homo economicus, a barbárie está sempre pronta para ressurgir” (MORIN, 2012, p117). Para entender isso basta ver os extermínios que já aconteceram, que estão acontecendo e que, provavelmente, ainda irão acontecer com povos indígenas das Américas.

Em suma, o substrato de racionalidade que se encontra em sapiens, faber e economicus constitui apenas um polo do que é humano (indivíduo, sociedade, história), enquanto se mostram com importância no mínimo igual a paixão, a fé, o mito, a ilusão, o delírio, o lúdico” (MORIN, 2021, p.56).

Morin acredita que, historicamente, o acento naquilo que é próprio do sapiens ajudou a criar uma vida mais prosaica e solipsista. Mas o autor acredita que, quando o lado demens também for valorizado, o humano poderá se encontrar com uma vida mais poética, o que inclui uma relação mais fraterna com o outro, conforme a sua noção biológica de sujeito:

Podemos compreender, portanto, que uma das missões do humanismo é provocar uma dialética permanente entre o eu e o nós, conectando o desenvolvimento pessoal à integração em uma comunidade e buscando as condições para que um eu floresça em um nós e para que o nós possa permitir que o eu floresça (MORIN, 2020, p.98).

Morin entende que o indivíduo, a sociedade e a espécie humana não estão sozinhos no Universo, seu florescimento depende de muitos outros sujeitos e também de seres não vivos. Nesse sentido, o autor faz uma crítica ao humismo moderno, que coloca o ser humano no centro do Universo, pois isso daria a ideia de que o sujeito humano, além de ser independente, tem um poder quase absoluto sobre os demais seres do Universo. No entanto, mesmo fazendo essa crítica, o autor não sugere a extinção da ideia de humanismo, mas, como estamos vendo, defende a regeneração do mesmo. Pois,

O humanismo regenerado rejeita o humanismo de quase divinização do homem, voltado para a conquista e a dominação da natureza. Reconhece a complexidade humana, feita de contradições. O humanismo regenerado

reconhece nossa animalidade e nosso cordão umbilical com a natureza, mas reconhece nossa especificidade humana intelectual e cultural.

Reconhece nossa fragilidade, nossa instabilidade, nossos delírios, a ignomínia das matanças, das torturas e dos escravagismos, as lucidezes e as cegueiras do pensamento, a sublimidade das obras-primas de todas as artes, as obras prodigiosas da técnica e as destruições operadas por meio dessa mesma técnica. O homem é ao mesmo tempo sapiens e demens, faber e mytologicus, economicus e ludens, ou seja, Homo complexus (MORIN, 2020a, p.85).

Além de dizer que encontra essa ideia de um humanismo que valoriza a complexidade humana em autores como Pascal, Morin também defende a revitalização do humanismo formulado por Montaigne, Montesquieu, Kant, Hegel. E afirma que esse humanismo, de alguma forma, está sintetizado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O autor diz ainda que esse humanismo é muito superior às ciências contemporâneas que excluem o humano (história, sociologia, antropologia). No entanto, ele defende que o humanismo universal desses autores, bem como o humanismo contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, precisa se tornar universal concreto. Ou seja, o humanismo precisa incluir todos os seres humanos, especialmente aqueles que historicamente foram e continuam sendo excluídos, aqueles que não puderam desenvolver as potencialidades próprias do humano. Para usar uma conhecida expressão de Paulo Freire, esse humanismo precisa alcançar os ‘esfarrapados do mundo’. Mas o humanismo também não pode esquecer dos sujeitos não humanos que conosco vivem na biosfera e que conosco compartilham e disputam a physis e o cosmos.

Então, reforçando a resposta de nosso questionamento sobre a presença da noção morineana de sujeito na proposição sobre a regeneração do humanismo, retomamos a ideia de que o indivíduo humano é um ser egocêntrico, autoeco- organizador; que é tudo para si; que não apenas é uma parte da totalidade da vida, mas também carrega em si a herança genética da vida como um todo; que tem em si condensada a história da physis; que se considera o ápice da hominização. Mas esse mesmo ser, quase todo poderoso, é também quase nada no universo: é um entre tantos outros seres da mesma espécie, a qual é apenas uma espécie entre tantas outras, habitando um espaço quase insignificante, especialmente quando olhado do ponto de vista astronômico, e um tempo minúsculo da história da humanidade, que por sua vez também é minúscula se comparada com a história da vida e com a história da physis.

Nesse sentido, a educação para o humanismo deveria ensinar as fraquezas, as grandezas e as interdependências do sapiens-demens, deveria ensinar a “[…]

sentir profundamente em si mesmo que cada um de nós constitui um momento ínfimo, uma parte minúscula de uma extraordinária epopeia que, embora dê continuidade à aventura da vida, começou à 7 milhões de anos” (MORIN, 2020, p.113).

Entendemos que, para Morin, ‘sentir profundamente’ significa se sentir participante daquilo que se é, enquanto sujeito. Então, se a educação do sujeito se dá no momento em que ele é capaz de sentir profundamente, dar condições para que isso aconteça parece ser uma das funções da educação. Por isso, a fim de regenerar o humanismo, seria necessário dar condições para o humano se sentir parte do destino da humanidade, como um cidadão do planeta Terra, como um ser vivo integrante da biosfera e um ser físico antropocósmico.

Assim, a educação deveria ajudar o sujeito humano, conforme uma expressão de Maria Cândida Moraes (2021), a ‘sentir-pensar’ seu pertencimento na aventura da vida, bem como ‘sentir-pensar’ a incerteza do viver, a incerteza do devir. Aliás, a incerteza também pode ser um estímulo para o bem viver, para evitar a prepotência, para colaborar com a vida do outro e ao mesmo tempo defender a própria vida, a fim de que ambos floresçam. Esse é um caminho de esperança, mas não se pode esquecer que o desespero também é uma possibilidade. No sujeito humano, normalmente, a esperança e o desespero caminham de mãos dadas, por vezes um recua enquanto o outro aumenta as passadas. Mas não existe vantagem que garanta a vitória final, até por que no fim da caminhada sujeito está o seu destino de se tornar objeto para outros sujeitos.