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A IMERSÃO NO CONTEÚDO

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 142-200)

4. OS ACÓRDÃOS JUDICIAIS DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES DO

4.1 A IMERSÃO NO CONTEÚDO

130 Estudar as violências contra as mulheres não é uma tarefa fácil. Não é incomum nos defrontarmos com relatos complexos permeados por dor, ruptura de direitos básicos, ausência de autonomia e liberdade. Relatos que contam um pouco sobre agressões físicas, psicológicas, sexuais, morais, verbais, institucionais e estas, muitas vezes, ocorrem de forma concomitante, o que deixam a situação complexa e de difícil entendimento para quem as vivencia, mas também para quem as lê. Nos acórdãos estes relatos são traduzidos em fontes jurídicas, nos autos dos processos.

Há também espaço para a fala dos agressores, das mulheres em situação de violência, das testemunhas (quando existirem). Assim, a partir da fala dos participantes no fenômeno da violência, há uma primeira releitura, qual seja, a do escrivão na delegacia de polícia que faz com que o narrado se transforme em um problema a ser investigado e tais relatos vão tomando formas jurídicas e criminológicas com o avançar das investigações, coletas de provas, arquivamentos e sentenças finais (IZUMINO, 2003). Após estas releituras, fazemos aqui mais uma, desta vez, uma releitura crítica feminista e primordialmente política, de forma a visibilizar e significar (ou ao menos, tentar significar) o que, muitas vezes, permanece ainda sob o manto das relações sociais e políticas que existem na esfera privada, ou, já adentrando no campo semântico que nos é apresentado pelos acórdãos, quod non est in actis non est in mundo (o que equivale a dizer que “o que não está nos autos não está no mundo”).

Cabe ressaltar que não são em todos os acórdãos que é possível ver os relatos das mulheres que vivenciaram a situação de violência, seja porque não foram acionados pelos desembargadores para a elaboração do julgamento ou porque, infelizmente, não existem em função da ausência da própria mulher que, por não estar mais viva, representa o silêncio que segue muitas histórias de vida permeadas pelas violências e pela falta de atitudes eficientes (e eficazes) do Estado (e aqui não nos referimos apenas ao Poder Judiciário). Entre os relatos que constam nos acórdãos, alguns nos chamaram atenção:

A ofendida, M.F.A.70, relatou, na Depol que (f. 06):

Que conviveu com W. durante dezessete anos, possuindo dois filhos em comum; que está separada do mesmo há três anos; que nesta data ao sair de casa percebeu que seu ex-marido estava seguindo-a; que resolver descer de seu veículo para conversar com ele amigavelmente; que após questionar o ex marido o motivo de estar seguindo-a foi agredida por ele fisicamente com um soco no rosto e na cabeça sofrendo por isso uma lesão no nariz; que segundo a declarante, além de agredi-la W. também lhe ameaçou de morte, e quando conseguiu fugir do mesmo em seu veículo ele a seguiu pelo bairro,

70 Todos os nomes foram abreviados para preservar a identidade das pessoas envolvidas nos acórdãos.

131 momento em que acionou a PMMG; que não é a primeira vez que o mesmo lhe ameaça ou lhe agride sendo que já registrou ocorrência e (sic) desfavor do mesmo sendo que no entanto sempre desistiu de dar continuidade; que apresenta como testemunha sua sobrinha A.I. (mesmo endereço) que tomou conhecimento do ocorrido; que dispensa encaminhamento para abrigo (TJMG – Acórdão n. 10024120687470001 de 2013).

Observa-se acima um relato não incomum de uma longa relação conjugal que, ao ser cessada, gerou conflitos e violências por parte do ex-marido, inconformado com o fim do relacionamento. A violência física é acompanhada pela violência psicológica e a ameaça de morte. Nota-se também que registros de ocorrência em desfavor do agressor já foram efetuados, no entanto, sem continuidade. Este ponto merece atenção, pois, como veremos posteriormente, esta é uma das tensões ainda presentes na aplicação da Lei Maria da Penha: a questão da necessidade da representação da mulher perante a Justiça, se esta é condicionada ou incondicionada, tendo como base o artigo 41 da Lei Maria da Penha e o afastamento dos pressupostos da Lei 9.099/95.

Outra questão que merece ser mencionada e que corrobora outras pesquisas já realizadas sobre as respostas judiciais às violências contra as mulheres (ARDAILLON e DEBERT, 1987;

IZUMINO, 2004) é a construção das pessoas envolvidas no fenômeno da violência para além do relato do fato criminal em si. As declarações das mulheres em situação de violência para além de se deterem sobre as agressões – física, sexual, psicológica, entre outras -, constroem a imagem do agressor. São evocadas situações de uso de álcool e outras drogas, traição, problemas psíquicos para, ora justificar a agressão, ora demonstrar a periculosidade do agressor.

Como analisou Izumino, esta estratégia procura desviar o foco sobre como ocorreu, de fato, o crime para o comportamento dos agressores, o que faz com que a ênfase possa recair sobre os papeis sociais pré-determinados para a família e o casamento (IZUMINO, 2004, p. 240).

Este fenômeno pode ser observado no relato a seguir, onde a mulher denunciante da violência explicita que o marido é usuário de álcool e que quando está sob o efeito desta droga, é agressivo. Afora este uso, é um trabalhador, sustenta o lar e, além disso, tentou socorrê-la quando pensou que teria a matado. Os relatos das violências são amenizados por situações que atenuam a agressividade do marido e possam auxiliá-la a entender os motivos pelos quais estas ocorrem. Apesar disso, há o entendimento da necessidade de que a Justiça intervenha, já que ela afirma “não querer mais ficar com ele”, como pode ser visto:

A ofendida, por sua vez, afirmou, sob o crivo do contraditório (f. 52):

...que eu ia sair de casa e ele perguntou onde eu ia e então sai, depois quando eu voltei ele chegou atrás de mim e começou a me provocar; que eu não dei atenção e entrei para

132 dentro; que ele começou a me xingar e a me empurrar; que eu disse para ele parar com isso, e ele parou; que mais tarde ele perguntou onde eu tinha ido, e quando eu disse ele ficou doido e começou a me bater, me dar murro e então comecei a gritar e pedir socorro;

que eu fingi que tinha desmaiado para ele parar de me bater; que quando eu fingi ele parou de me bater; que quando eu fingi ele parou de me bater e tentou me socorrer e saiu para procurar socorro; que ele indagava "Será que eu matei ela?"; que quando ele voltou eu já tinha deitado na cama; que ele queria me levar para o hospital só que eu não quis; que ele deitou do meu lado e eu pedi para ele sair só que ele não saiu; que eu disse para ele que eu estava com muita dor; que como ele não saiu da cama eu fui deitar no sofá; que teve várias vezes que ele me ameaçou com faca, dizendo que iria me matar;

que eu era amasiada com ele; que neste dia ele estava bêbado e drogado; que eu não quero mais ficar junto com ele; (...) que acontecia sempre fatos semelhantes a este; que teve uma vez que ele colocou fogo em minhas coisas; (...) que ele trabalha de pedreiro, servente; que ele é uma pessoa ótima, só que quando ele bebe e mexe com drogas ele fica doido; que quando ele mexe com isso eu dou conselhos para ele parar... (TJMG – Acórdão n. 10479110044324001 de 2012).

As respostas dos desembargadores para os casos são, muitas vezes, heterogêneas e não seguem um mesmo entendimento, caminhando em sentidos diametralmente opostos, como, por exemplo, tratando a situação da violência contra a mulher como um grave crime que necessita de intervenção estatal independente da representação da mulher; e, em outros casos, como uma situação que apresenta menor gravidade, que, caso atestada a “inércia” (ausência de representação para o início do processo) da vítima, pode ser resolvida entre os próprios envolvidos no fenômeno de violência, sem que o Judiciário precise interferir na família. Isto apesar de muitas das regras, leis e procedimentos já terem sido pacificados pelo Supremo Tribunal Federal.

Alguns resultados chamam bastante atenção, como, por exemplo, o percentual de acórdãos que foram categorizados por nós como “favoráveis” às mulheres, 55,44%.

Consideramos favoráveis aqueles casos em que a demanda da mulher pela justiça foi atendida, mesmo que a pena ao delito tenha sido dada ao patamar mínimo. Já desfavoráveis (44,56%)71 foram aqueles em que a mulher pediu por auxílio à Justiça e sua demanda não foi atendida, quando a situação de violência foi caracterizada como uma situação menos grave e a pena do agressor extinguida. Ademais, também consideramos desfavoráveis aqueles que já haviam extrapolado o período regimental de tramitação e estavam prescritos. Foram excluídos desta análise as decisões referentes a apenas conflitos de jurisdição relacionados à aplicação da Lei

71 Esta classificação de favoráveis ou desfavoráveis foi elaborada por nós, na análise do resultado final do acórdão.

Se a decisão do colegiado foi em favor da mulher, categorizamos como favorável. Caso a decisão tenha caminhado em sentido contrário à mulher, ou no que aqui entendemos por justiça de gênero, foram categorizados como desfavoráveis. Nesta etapa analisamos apenas os recursos que diziam respeito ao mérito da questão. Por exemplo, como informamos logo após, foram desconsiderados os recursos referentes à conflitos de jurisdição.

133 Maria da Penha e que não apresentavam nenhuma sentença ao caso denunciado, mas encaminhamento ao órgão competente. Estes recursos não visam atacar o mérito de alguma decisão expedida na primeira instância, logo, não foram considerados em nossa análise.

No entanto, observamos que as penas são aplicadas, em sua maioria, no mínimo legal.

Este fato também foi evidenciado por Izumino (2004), onde a autora identificou que se estes crimes fossem colocados em um continuum, aqueles mais distantes de motivações relacionadas à situação conjugal e afetiva entre os envolvidos, maior seria a pena atribuída ao agressor; do contrário, quanto mais próximas as causas da violência ao contexto conjugal e afetivo do relacionamento, maior a possibilidade de que a desqualificação penal do crime fosse efetuada e, com isso, a redução das penas (IZUMINO, 2004, p. 212). Também com base em achados que demonstram a redução das penas aos agressores em casos de estupro, espancamento e homicídio de mulheres, Ardaillon e Debert analisam, e aqui concordamos com elas, que

O objetivo deste trabalho não é avaliar se as penas foram ou não adequadas, pois aqui não se trata de procurar mobilizar as mulheres para a punição de indivíduos singulares, ou alinhá-las ao lado daqueles que pedem um aumento da repressão penal. O interesse é, antes, contribuir para o debate que questiona a forma pela qual a Justiça é distribuída e das discriminações cometidas em nome da proteção e defesa da sociedade (ARDAILLON e DEBERT, 1987, p.

12).

Este é também o paradoxo apresentado pela criminologia feminista que, ao ser promulgada a Lei Maria da Penha é, em parte, superado. A Lei não se pretende apenas como uma legislação penal e confere caráter de política pública de prevenção e combate à violência quando aciona mecanismos de medidas cautelares e urgentes, como, por exemplo, as medidas protetivas que podem ser acionadas pelas mulheres em situação de violência (CAMPOS e CARVALHO, 2011, p. 144). Estas, como veremos, também se constituem como um ponto de tensão na aplicação da Lei Maria da Penha, evidenciado a partir da leitura dos acórdãos judiciais do TJMG.

Já identificado na pesquisa desenvolvida por Matos et al., (2011), e que aqui corroboramos, é grande quantidade de acórdãos que não apresentam discordância entre os votos dos desembargadores que compõem a câmara criminal/cível no momento de proferir a decisão.

Da nossa amostra composta por 232 acórdãos, 188 são unânimes (81%), em 31 (13,3%) houve

134 votos em direção contrária ao do relator e em 13 (5,6%) esta categoria não se aplica, pois são decisões monocráticas do Tribunal sobre decisões interlocutórias dos juízes de primeira instância, em geral sobre questões processuais ou medidas pontuais.

Outro ponto merece destaque, ainda sobre os acórdãos em todo o período (1998-2015), antes de adentrarmos na análise dos nossos períodos específicos, onde analisaremos o período supramencionado de forma desagregada em dois momentos. É constante a referência dos desembargadores a outros documentos para a construção do seu voto, como, por exemplo, a outras jurisprudências do próprio Tribunal de Justiça de Minas Gerais ou do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. A tabela a seguir apresenta em quantos acórdãos houve referência a outras fontes:

Tabela 3: Referências à outras fontes

Fonte N (%)

Jurisprudência do próprio TJMG 137 37,9

STF e STJ 94 26

Fonte acadêmica 90 24,9

Jurisprudência de outros TJs 31 8,5

Fonte acadêmica feminista 3 0,8

CNJ 2 0,5

Tratados internacionais 2 0,5

Menção a um caso emblemático 2 0,5

Total 361 100

Fonte: Elaboração própria a partir dos acórdãos coletados no site do TJMG

Como pode ser observado a partir da tabela acima, apesar de estarmos fazendo uma análise sobre os acórdãos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, estamos também avaliando como as situações de violência contra as mulheres são entendidas por uma gama maior de agentes jurídicos. Segundo Oliveira e Silva (2005 apud COACCI, 2013), a análise dos acórdãos judiciais é importante por serem fontes privilegiadas pelo fato de que os discursos presentes neles podem ser considerados também como um “discurso do Estado”. Com relação ao STF e STJ, por exemplo, o autor analisa “que o mundo jurídico possui os seus olhos voltados para esses dois tribunais e que suas decisões servem para dirimir dúvidas sobre possíveis interpretações a respeito de determinados temas” (COACCI, 2014, p. 26). E estes tribunais, dada a sua importância, têm capacidade de alterar o entendimento que os magistrados do TJMG apresentam sobre os casos, como veremos mais adiante. Outro fenômeno evidenciado na tabela

135 acima é a grande endogenia do Poder Judiciário no que diz respeito à elaboração dos acórdãos.

Seja pela questão de regras e resoluções próprias ou até mesmo por reconhecimento, são as próprias decisões dos tribunais os mais acionados no momento de elaboração das sentenças.

Mesmo as fontes acadêmicas dizem respeito à própria produção jurídica, como, por exemplo, manuais sobre a Direito Penal e Constitucional. Interessante foi notar a referência aos Tratados Internacionais e o uso de referência feminista para a elaboração das sentenças, mesmo que estes possuam um percentual ainda muito baixo se comparados aos demais. Sobre os Tratados Internacionais é um desembargador do sexo masculino que diz:

A r. decisão determinou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 11.340/06, negando-lhes a vigência por ofensa ao princípio da isonomia, em oposição à realidade do ordenamento jurídico brasileiro. A chamada Lei "Maria da Penha" se ajusta não só aos preceitos constitucionais, mas ao movimento mundial de repressão à violência contra a mulher. O principal documento em nível mundial sobre o tema foi aprovado pelas Nações Unidas em 1967: "Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher", ratificado atualmente por 165 países, dentre eles o Brasil, integrado em sua totalidade em 20/12/1994. Seu preâmbulo já anunciava a amplitude da necessidade de proteção à mulher como forma de preservar a defesa dos Direitos Humanos: "[...] a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem - estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade". Grifei.

A ratificação desse documento foi o primeiro passo na tentativa de frear um fato público e notório, a violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo cônjuge, valendo-se do ambiente familiar para castigá-la, oprimi-la ou humilha-la (TJMG – Acórdão n.

10672072448992001 de 2008).

Observa-se, de forma muito positiva que, para além do conhecimento sobre a legislação nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres, pouco tempo após sua promulgação, o desembargador apresenta saber também sobre os processos internacionais e históricos que fizeram com que a Lei Maria da Penha fosse promulgada para, desta forma, defender a sua constitucionalidade. A referência à fonte acadêmica feminista também foi acionada com o mesmo intuito, e também por um desembargador do sexo masculino, para mostrar a necessidade da Lei Maria da Penha, e, além disso, desqualificar o uso da legislação anterior para os casos de violência contra as mulheres, como pode ser visto:

A Justiça Comum e a legislação anterior também não apresentaram soluções para as medidas punitivas nem para as preventivas ou de proteção integral às mulheres.

Examinando-se o modo pela qual a violência doméstica era tratada pela Justiça Comum, a pesquisa de Carrara, Vianna e Enne realizada no Rio de Janeiro de 1991/1995, "mostra que a Justiça condena apenas 6% dos casos de lesão corporal contra as mulheres,

136 enviadas pelas Delegacias da Mulher para a Central de Investigações, encarregada da distribuição às Varas Criminais". [...] A conciliação é um dos maiores problemas dos Juizados Especiais Criminais, visto que é a decisão terminativa do conflito, na maioria das vezes induzida pelo conciliador. A conciliação com renúncia de direito de representação geralmente é a regra. (Mensagem nº 782 de 2004; FREIRE, Nilcéa, Secretária Especial de Políticas para Mulheres) (TJMG – Acórdão n.

10074110009821001 de 2012).

O trecho acima foi retirado de uma decisão de 2012 que ainda acatava o argumento de que é necessária a representação da mulher em situação de violência para que o processo criminal fosse iniciado e, desta forma, julgado judicialmente. O voto deste desembargador foi vencido e o entendimento de que a representação é condicionada prevaleceu. Esta, como veremos, é uma das principais tensões apresentadas a partir da nossa leitura dos acórdãos de violência contra as mulheres do TJMG. Pacificada pelo STF em 2012 (como discutimos no capítulo 2 e veremos posteriormente), a decisão sobre a necessidade de representação, se condicionada ou incondicionada, ainda é atravessada por conflitos e tensões de diferentes magnitudes e ao longo dos anos, permanecendo mesmo com a decisão ministerial.

É preciso, neste momento, parar e dar um passo atrás antes que entremos nas especificidades com relação às tensões ainda presentes na aplicação da Lei Maria da Penha pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Como informamos no terceiro capítulo, dividimos os acórdãos em dois grupos principais para a análise. Apresentaremos estas análises também de forma separada aqui pelo fato de que nos anos que precedem a Lei Maria da Penha (1998 a 2006), os casos de violência contra as mulheres iam de forma substancial para os Jecrims72 e não para a segunda instância, apesar de, como veremos, casos que apresentam situação de violências mais extremas, casos cíveis de divórcio (recursos presentes nas Câmaras Cíveis, também analisadas aqui) e de estupros, homicídios e tentativas já estavam presentes. Assim como Sarmento (2013) demonstrou em sua dissertação, o período prévio à promulgação da Lei Maria da Penha pode ser categorizado como o período da ausência destes casos no TJMG.

72 Para consultar sobre o tratamento dos Jecrims aos casos de violência contra as mulheres ver Oliveira (2006).

137 4.1.1 O MOMENTO73 PRÉ-LEI MARIA DA PENHA – 1998 A 2006

Os anos que precedem à implementação da Lei Maria da Penha são marcadamente, na segunda instância do TJMG, os anos em que as violências contra as mulheres, como depois ficou conceituado pela Lei Maria da Penha, não chegavam ao tribunal via recursos. Isto em função de uma questão bem simples: estes eram encaminhados para as turmas recursais dos Jecrims, pelo fato de serem considerados como fenômenos de “menor potencial ofensivo”.

Observamos que a maior parte dos casos que chegaram ao TJMG, neste período, foram aqueles cometidos contra menores de 14 anos, sendo em sua maioria, violências sexuais e estupros. Inicialmente nosso posicionamento foi o de retirar estes casos de nossa amostra e também de nosso banco de dados para que contássemos apenas com os casos que pudessem ser enquadrados como violências contra as mulheres e, futuramente, estes fossem abrangidos pela nova legislação. No entanto, foi justamente ao proceder a leitura dos mesmos que notamos a importância de mantê-los em nosso banco, mesmo que nossas análises aqui não recaiam sobre os casos de estupro contra menores (por fugir ao nosso escopo de análise e por demandar entendimentos que fogem àqueles que se aplicam às violências contra as mulheres maiores de 18 anos).

Ocorre que, de forma equivocada, os desembargadores do TJMG entendem que a Lei Maria da Penha deveria ser aplicada a todas as pessoas da família, independentemente da idade, desde que fosse do sexo feminino. Compreendemos a incorporação dos casos de violência contra menores no arcabouço jurídico da LMP com base na decisão proferida pelo STJ (STJ - HABEAS CORPUS HC 172784 RJ 2010/0088351-5 (STJ)) no ano de 2011. Nele é expressa a compreensão de que a condição da criança é o que faz com que a violência ocorra, tendo em vista “a incapacidade de resistência da vítima diante das agressões”. Contrariamente ao entendimento do STJ, os(as) desembargadores(as) do TJMG, em nossa amostra, entendem que:

Dispõe o art. 2.° da Lei 11.340/06, verbis: Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Portanto, de acordo com o artigo

73 Utilizamos o termo “momento” trabalhado por Santos (2008), apresentado no capítulo 2.

No documento universidade federal de minas gerais (páginas 142-200)