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Em debate, o ensino do direito

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Academic year: 2017

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C

om seu nome associado a um dos movimentos renovadores do estudo do Direito, o que surgiu em torno do carismático jurista Roberto Lyra Filho e de seu “Direito achado na rua”, o professor José Geraldo de Sousa Júnior é um batalhador da causa do ensino. Dirigiu a Faculdade de Direito da UnB, foi diretor de política de ensino superior do MEC, é membro da Comissão Nacional de Ensino Jurí-dico da OAB. Esteve envolvido, nos últimos trinta anos, com a reformulação de cursos, criação de sistemas de avaliação, aprovação de propostas. Para falar

do panorama atual do ensino de Direito ele recebeu a reportagem de Getulio

para uma longa conversa. A seguir, os melhores momentos:

José Geraldo de Sousa Junior: Quando me formei, em 1973, havia apenas três faculdades de Direito em Brasília. Hoje são 23. Me formei e comecei atuando como advogado numa fundação local, como chefe da procuradoria. Depois passei a advogar associado ao Antonio Carlos Sigmaringa Seixas, num escritório que funcionava como correspondente de advogados estaduais que tinham recursos trazidos para os tribunais superiores em Brasília. Hoje os escritórios já têm sede aqui, mas nesse tempo eles se valiam...

E N T R E V I S T A

J O S É G E R A L D O D E S O U S A J Ú N I O R

BASTA DE FALAR EM CRISE!

Um dos criadores do sistema de avaliação de cursos, ex-diretor da Faculdade de Direito

da UnB e diretor da Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB fala que agora é hora

de trabalhar e não de reclamar

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De uma espécie de sucursal?

É, tínhamos nossa própria cartei-ra de atendimento, mas o principal cliente eram escritórios de São Paulo, do Rio. Depois acabei optando pela dedicação exclusiva à universidade.

O senhor fez o mestrado com o Rober-to Lyra Filho aqui na Universidade de Brasília (UnB). Tinha alguma ligação com movimentos sociais antes disso?

Tinha na medida em que inte-grava a Comissão de Direitos Hu-manos da Ordem dos Advogados do Distrito Federal, num momen-to em que Brasília não tinha nem autonomia política nem represen-tação parlamentar, pois o Distrito Federal, na Constituição de 1969, não tinha autonomia nem repre-sentação política. O governador

era nomeado e a legislação ficava a cargo de uma comissão no Senado. A cidade não tinha um espaço po-lítico para repercutir as questões da população. Nesse quadro, entidades civis, como a Associação Comercial e sobretudo a OAB, funcionavam como espaço de ressonância. Ne-les, os movimentos sociais busca-vam constituir seus fóruns de dis-cussão. E a OAB, aqui em Brasília, fortaleceu essa possibilidade. Sua Comissão de Direitos Humanos foi um grande mediador, no sentido de criar condições para as pessoas afirmarem suas identidades. Foi ali que se deu um primeiro esboço de formação de uma espécie de central sindical local, quando os sindicatos quiseram se agrupar. Também ali se criou um Comitê de Anistia e os

primeiros debates para a proposta de construir uma representação po-lítica para o Distrito Federal.

Representação que só foi criada com a Constituinte de 1987?

A rigor, o processo começou com a emenda 26, de novembro de 1985, que convocava a Assembléia

Constituinte.Isso deságua nos

de-bates da Constituinte. No espaço da Comissão de Direitos Humanos da OAB, os movimentos sociais se apresentavam, faziam suas plata-formas, buscavam traduzir suas de-mandas. Eram reivindicações por direito à moradia, direito à autode-terminação, na questão indígena, por exemplo. As lutas democráticas daquele momento aqui em Brasília foram fortes, com os estudantes às

voltas com o Dops [Departamento

de Ordem Política e Social] pela

au-tonomia da universidade.

Como foi seu encontro com o Roberto Lyra Filho? Seu doutorado é sobre a figura dele?

Não sobre a figura, mas sobre a concepção que ele trouxe para o Di-reito. Estávamos em 1978, vim fazer o mestrado com o Lyra Filho. Estava interessado em trabalhar com uma proposta que se apoiava em alguns vetores para mim importantes. Pri-meiro, pensar o jurídico desde uma perspectiva politizadora. Marilena Chauí diria depois que o Lyra se caracterizou como uma espécie de dignidade política do Direito. Ela até escreveu um texto com esse tí-tulo: “Roberto Lyra Filho ou da dig-nidade política do Direito”. Então,

me interessava esse processo porque a nossa inserção na plataforma das lutas democráticas fazia ver que o Direito era um Direito que cerce-ava as liberdades, não era emanci-patório, era restritivo. O verdadeiro Direito tinha que emergir dessas lutas e se afirmar, às vezes inclusive

contra legem, como reivindicação

por liberdade e por justiça.

E essa foi uma vertente importante nos trabalhos do Lyra Filho?

Sim, sobretudo quando tomava forma epistemológica mais defini-da. Ele havia lido, em 1978, um ma-nifesto aqui na UnB, depois publi-cado sob forma de opúsculo, com o título “Por um Direito sem Dog-mas”. Era outro modo de pensar o jurídico, em que a compreensão do

Direito não fosse uma dedução do legal, mas uma construção social da liberdade. Esse material depois tomaria forma mais definida num livro que ele publicou e que hoje já

tem mais de 30 edições, O Que É

Direito?, da Coleção Primeiros

Pas-sos da Editora Brasiliense, publica-do em 1982. Esse mopublica-do de pensar o Direito tinha outras ramificações, por exemplo, na área do ensino. Roberto Lyra criticava o ensino do Direito por causa do duplo equí-voco: a inadequada concepção do objeto de conhecimento e os defei-tos da pedagogia decorrente desse equívoco. Ou seja, não se ensina

bem o que se aprende mal. Em O

Que É Direito? ele consolida essa

concepção mais epistemológica de que o Direito não é a norma. Ele

até pode se manifestar por meio de normas, mas tem de ser a expressão de uma legítima organização social da liberdade. Essa reflexão se con-solida com a criação, aqui na UnB, de uma revista para ser veículo de expressão dessas idéias, e que se

chamou Direito e Avesso.

Nessa altura o senhor já trabalhava com o Lyra?

Sim, e criamos essa revista, que deveria ser o boletim do que ele designava de “nova escola jurídica brasileira”. Tinha a ver com essa plataforma: pensar o Direito sem dogmas, como uma legítima

orga-nização social da liberdade. Nessa revista acabei sendo diretor. Rober-to Lyra presidia o conselho ediRober-torial, que contava com Marilena Chauí e Raymundo Faoro. Aliás, Faoro

devia ter sido o autor de O Que É

Direito? A Brasiliense

procurou-o para que escrevesse procurou-o livrprocurou-o, mas ele disse que esse era um trabalho para pesquisador. Então sugeriu o Lyra. Depois o Faoro escreveu um pequeno ensaio sobre o livro, uma peça preciosa: “O Que É Direito, Segundo Roberto Lyra Filho”. Foi publicado na Direito e Avesso. E também fez parte de um livro que deveria ser em homenagem aos 60 anos do Lyra Filho, mas acabou

sen-do de estusen-dos póstumos pois ele fale-ceu no ano do aniversário, em 1986. O editor, o Sérgio Fabris, manteve o compromisso e publicou o livro, que

se chama Desordem e Processo.

O Lyra gostava de instigar com os títulos. Como no caso do “Direito Achado na Rua”. De onde vem essa expressão?

Exatamente no posfácio do

De-sordem e Processo. É um duplo

repto: é metodológico, porque é pensar a questão do Direito como uma dialética, como uma dinâmica criativa, mas também é uma críti-ca ao positivismo do lema “Ordem

e Progresso”, que a nossa bandeira traduz e vem do Augusto Comte, na crença na cientificidade, não é? Nesse posfácio, Lyra já se refere a seu projeto, porque não era um di-letante, ele tinha um engajamento. Sobretudo por vinculação aos movi-mentos estudantis de Direito. Lyra tinha uma perspectiva de apoiar e resgatar o protagonismo estudantil, num compromisso social e político, participando dessas discussões. E o compromisso teórico de trabalhar outra perspectiva para o Jurídico que não fosse uma subordinação a uma legislação que era de uso do delfim.

Não do Delfim Netto [risos], mas no

sentido latino da expressão, ad usum

delphini. Nesse trabalho ele falava de

uma nova escola jurídica brasileira, antipositivista, democrática, plura-lista, orientada pela perspectiva de um socialismo democrático. Como plataforma dessa nova escola havia o projeto de repensar a estrutura de divulgação do conhecimento jurídi-co jurídi-com um programa alternativo de pensar o Direito, esse “Direito Acha-do na Rua”.

Isso tinha a ver com o lado do Roberto Lyra Filho poeta?

Sim, ele até usava um pseudôni-mo artístico, Noel Delamare, quan-do fazia poesia. Ele trabalhava

mui-to a metáfora literária, como essa do “Direito Achado na Rua”. Foi um grande tradutor de poemas. Teve um projeto chamado “Cancioneiro dos Sete Mares”, que era traduzir grandes poetas nos sete idiomas que ele dominava. Curiosamente, o primeiro volume (1979) é num idioma que Lyra não dominava, o húngaro. No centenário de Endre

Ady [poeta húngaro, 1877-1919], o

Paulo Rónai, um de seus grandes amigos, lhe diz: “Lyra, traduza o Ady”. Ele respondeu: “Paulo, não falo húngaro”. Ele disse: “Eu falo. Traduzo literalmente e você recria”. Lyra gostava muito de poesia, tradu-ziu um pequeno poema do jovem

O Direito não é a norma. Ele até pode se manifestar

por meio de normas, mas tem de ser a expressão de uma

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aqui e poderá dar inúmeros exem-plos de como se pode realizar essa interdisciplinaridade a despeito da tensão com um modelo que é se-cular, que pesa e atrai. Ela poderá falar sobre o programa de abertura epistemológica realizado aqui sem mudar a estrutura da faculdade. E de como, por exemplo, incorpora-mos mais de dez negros sem polí-tica de cotas, desenvolvendo temas na pós-graduação, isso quando a própria UnB, pioneira na política de ações afirmativas, tomava a fa-culdade de Direito como exemplo de lugar de elite onde negro não entrava. A pós-graduação recebeu índios, foram produzidos inúmeros trabalhos com temáticas complexas e interdisciplinares, com outro viés epistemológico.

Como se dá o diálogo acadêmico. Não há Departamento de Direito Civil, por exemplo?

Não, não tem. A faculdade não é departamentalizada para que o di-álogo acadêmico se faça por linhas de pesquisa, por áreas temáticas e não pela hierarquia funcional de lugares estabelecidos. Aqui temos áreas temáticas. Direito Público, Privado, Direito Fundamental. As pessoas se reúnem por afinidade in-telectual e por demandas das áreas de reflexão. Não há um chefe de departamento. Quando criei o Nú-cleo de Estudos da Paz e Direitos Humanos, se estabeleceu um diá-logo que o Direito não exercitava com os movimentos sociais para construir um programa que se cha-mou o “Direito Achado na Rua”.

Por sorte, o Direito da UnB, até pelo tempo e pela história, não trabalha com o peso da tradição de um curso como o da USP, de 1827, certo?

Claro que não. Mas vivemos ten-sões dramáticas, na época da ditadura, com os expurgos. Depois, uma experi-ência fantástica foi a virada da anistia, no final dos anos 1980, que permitiu resgatar os exilados da própria institui-ção. Gente como Sepúlveda Pertence, como Fábio Lucas, Perseu Abramo, Pompeu de Souza, Zanine Caldas, Athos Bulcão. Fundadores da uni-versidade tiveram seu projeto de vida afetado. O Sepúlveda Pertence, por exemplo, aposentado pelo AI-5 como promotor, demitido da universidade, fez um percurso como advogado. E esses nomes permaneceram como uma referência, num movimento

que nunca perdeu o seu horizonte. Essa experiência nós passamos. E a eleição do Cristovam foi um pouco a consolidação disso tudo.

Com sua visão, o senhor diria que o en-sino de Direito na UnB está na frente?

Bem, ontem tivemos o encerra-mento do X Seminário de Ensino Jurídico da OAB. Há duas semanas a Associação Brasileira do Ensino do Direito, o Ministério da Justiça e a Secretaria de Reforma do Judiciário faziam um congresso nacional de ensino do Direito e de acesso à Justi-ça e pediram à Faculdade de Direito da UnB que sediasse e organizasse o encontro. Isso pode ser uma resposta formal à pergunta. Nesse congresso, o eixo foi 180 anos de ensino do Direito e acesso democrático à Justiça. É algo

que está na base desse movimento importante, que me fez, por exemplo, causar algum frisson no congresso, pois abri a minha exposição dizendo que rejeitava hoje qualquer discurso que se apoiasse em indicadores da crise do ensino do Direito, pois isso é fácil. Crise a gente podia falar nos anos 1960, nos anos 1970, não é? Agora, depois de tudo que foi feito, com a abertura dos horizontes, com a construção de figuras de futuro...

Construção de figuras do futuro?

Bom, se você transita do passado para ao menos o presente, e estou fa-lando de futuro, é preciso que tenha essa mediação para fazer a passagem, que sejam construídos a partir do fu-turo, porque senão atola no passado, fica bloqueado no presente. Pense no

livro da Hannah Arendt, Entre o

Pas-sado e o Futuro. No caso do ensino

do Direito é sair dos elementos que nos aprisionavam no século 19. Esta-mos num presente que é vestíbulo do futuro. Estamos em pleno século 21, mas a cabeça ainda ficou no século 19! Com uma visão epistemológica que localiza o conhecimento na ci-ência e quer converter tudo que exis-ta em conhecimento científico. Esse modelo foi o da modernidade, com tudo que representou: técnica, ins-trumentalidade e o enquadramento de pessoas. O papa João Paulo II há três anos absolveu Galileu da conde-nação de heresia! Há três anos!

Essa é a crise do Direito?

Essa é primeira: ficar preso a uma visão de ciência, como se fosse a ex-Karl Marx, aquele alemão que

mor-reu na Inglaterra [risos].

E é atração turística de um cemitério londrino até hoje.

São os dois túmulos mais visita-dos do mundo: o do Marx, no

Cemi-tériode Highgate, em Londres,e o

do Allan Kardec, no Père-Lachaise,

em Paris [risos]. Bom, Lyra gostava

de poesia e traduziu esse poema do Marx, que dizia assim: “Kant e Fi-chte buscavam o país distante pelo gosto de andar lá no mundo da Lua, eu por mim tento ver, sem viés de-formante, o que pude encontrar bem no meio da rua”. Isso é Marx. O Lyra

disse: “Quero aplicar no meu campo de conhecimento, que é o Direito, essa disposição do jovem Marx, e achar o Direito na rua”. Ele queria construir um programa em que seus interlocutores se envolvessem com esse projeto. Por exemplo, no Direi-to do Trabalho, ele conversou com o jovem advogado Tarso Genro, que

escrevia muito na Direito e Avesso.

O Lyra morreu e o projeto só ficou esboçado. A essa altura eu já estava na universidade, era docente, tinha sido orientado por ele. Fiquei no di-lema de dar continuidade à proposta da revista mas achei mais prudente interromper o projeto.

Seria um fardo muito pesado?

Com a morte do seu criador, a revista ficava sem alma inspiradora. Eu não queria ficar na condição de legatário disso, já era de fato o testa-menteiro. Aproveitei a ligação com os movimentos sociais e o fato de que estava assumindo a Procuradoria Geral da universidade a convite do reitor recém-eleito, o Cristovam Bu-arque, de quem depois fui chefe de gabinete na reitoria. Assumi o debate que o novo reitor propunha de refor-mulação da planta epistemológica da universidade para fazer a passagem do modelo departamental para um siste-ma interdisciplinar de organização de

conhecimento. Primeiro estimulando os institutos tradicionais a incorpora-rem o paradigma da complexidade, da interdisciplinaridade, deixando os feudos dos departamentos.

O senhor foi diretor de ensino supe-rior, no MEC, e diretor da Faculdade de Direito da UnB. Até que ponto, com esses trabalhos, levou adiante as idéias do Roberto Lyra?

De vários modos. E em diversas etapas. Um exemplo foi a criação do Centro de Estudos Avançados Mul-tidisciplinares. O próprio Cristovam, quando reitor, se engajou nisso e fun-dou um dos núcleos, o Núcleo de Es-tudos do Brasil Contemporâneo, no

qual foi pensada e formada, por exem-plo, a proposta do Bolsa Escola. Além dos textos que foram produzidos com a assinatura do Cristovam intelectual, acadêmico. Foram textos importantes como “A Revolução das Prioridades’ e “A Desordem do Progresso”.

Mas isso chegou a impactar na do-cência?

Muito. Diria que o projeto de universidade interdisciplinar se ge-neralizou no Brasil a partir dessa perspectiva. É nesse mesmo tempo que, na USP, se cria o IEA, Instituto de Estudos Avançados. É um mo-mento em que se dava essa virada,

mas é claro que com muita força contra, porque a tradição é pesada. Ali o Cristovam criou o Núcleo de Estudos do Brasil Contemporâneo e eu fundei o Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos.

A interdisciplinaridade parece limitar-se aos institutos. Na USP, a interdis-ciplinaridade do IEA não se repete na faculdade de Direito, que não dialoga sequer com a de Ciências Sociais. Os cursos de graduação e de pós são, na maioria, monotemáticos.

A nossa professora Loussia Felix [se dirige à professora, que assistia à

conversa] irá desmentir isso [risos].

Ela coordenou a pós-graduação

Roberto Lyra falava de uma nova escola jurídica brasileira,

antipositivista, democrática, pluralista, orientada pela perspectiva

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pressão de conhecimento. A outra, é ficar preso a uma visão funcional, como se o modelo de Estado, tam-bém do século 19, fosse a única for-ma de fazer política. É por isso que não se reconhece a dimensão política dos movimentos sociais. Só vê políti-ca onde o Estado está. E a imprensa é o “diário oficial” da contempora-neidade, pois só vê o Estado. Tudo o que a sociedade constrói, ela não

vê. Ignora.Só vê relevância no

insti-tucional. O social é inventivo, é cria-dor, é transformador. Por isso o Fó-rum Social Mundial chamou tanta atenção, pois diz: “Olha aqui! O que existe não é só o que a gente vê!” No campo do conhecimento é o mesmo, o que Galileu dizia há 400 anos: “A verdade é filha do tempo e não da autoridade”. Ficamos presos a uma

visão de política do século 19, com a cabeça lá, embora os pés já pisem o século 21. As figuras de futuro dizem: “Há outros conhecimentos, outras so-ciabilidades, achadas na rua”. Claro, a rua é uma metáfora, não é?

As figuras de futuro são o novo pa-radigma?

Sim e o ensino do Direito se deu conta disso. Basta ver a coleção de ensino jurídico da OAB. São oito volumes publicados, o primeiro

deles Diagnóstico, Perspectivas e

Propostas. O eixo de apresentação

dos trabalhos é de um lado a visão de crise. E do outro a construção de figuras de futuro. Um exemplo é o sujeito de Direito. No pensamento kantiano do século 18, era o da pes-soa física, individualizada. Reduzia

a subjetividade jurídica à pessoa. Que pessoa? A do não-homem, pois a mulher não é homem, a criança não é homem, o índio também não. O que os sujeitos apresentam hoje? Intra-subjetividades, intersubjetivi-dades, coletividades protagonistas, movimentos sociais, pessoas jurídi-cas coletivas.

Uma provocação: como se faz a tran-sição entre a informação, de um lado, do MEC apontando a lista de cursos com graves problemas. E são mais de mil faculdades de Direito.

São 1.091, segundo os dados mais recentes! Totalizando 253 mil vagas.

Ou seja, oferta maior que a demanda, mercantilizando o ensino. E órgãos de classe, que teriam função de contro-lar a qualidade, se transformando em

sindicatos de entidades educacionais. E o senhor diz que não existe a crise? Como se dá a transição?

Ela se dá pelo diálogo com quem tem relevância no processo. Por exemplo, a OAB. Ela construiu ins-titucional e politicamente um lugar de audiência. Politicamente porque se tornou uma instituição que, atu-ando na história, ganhou visibilidade e a sua voz tem relevância. Então, conseguiu fixar o entendimento de que nenhum curso de Direito, ne-nhuma instituição se credencie sem que ela se manifeste.

A OAB poderia ter sido cooptada?

Esse é o discurso corrente. Quem vai responder isso não sou eu, é a his-tória. E a história mostra que a OAB se manifesta muito mais em questões

institucionais do que corporativas. Este ano se realiza a XX Conferência Nacional dos Advogados. Basta che-car os temas que serão debatidos. São tudo, menos corporativos. O debate ali é de alta política. Tanto que esta é a única das profissões com um as-sento constitucional. Nem o jornalis-mo, que Marx dizia formar os cães de guarda da democracia, tem essa esta-tura, nenhuma outra profissão ocupa esse lugar. E isso se deve à contribui-ção dada, por isso a advocacia ganhou esse lugar. A Comissão Nacional de Ensino Jurídico formada pela OAB só tem professores. Discutem-se te-mas da corporação, claro, te-mas de um ponto de vista não corporativo. E o conselho da OAB não interfere nas decisões dessa comissão. Até poderia, mas a presidência homologa. E com

isso a OAB construiu um fator de in-terlocução com o social.

E essa comissão fixa diretrizes?

Ela baliza padrões para que a construção do futuro se realize de modo que, nesse campo, o da edu-cação jurídica, os fundamentos presentes sejam os fundamentos republicanos, democráticos, de atu-alização de paradigmas. Por isso a OAB consegue estabelecer interlo-cuções com os vários setores, com os empreendedores, com os docentes, indicando como é que ela constrói os seus indicadores. Você mesmo, como representante da Fundação Getulio Vargas, passou por essa ex-periência, sendo sabatinado sobre a abertura do Direito GV na Comis-são Nacional de Ensino Jurídico.

Não estava em jogo a competência da FGV ou o fato de que poderia estar sendo elaborado um belo pro-jeto. Afinal, vocês são especialistas! Vão fazer o que há de melhor! A Comissão colocou você na roda para olhar nos olhos, verificar os fatores de acreditamento. E foi essa conversa olho no olho que balizou a aprovação, caso contrário não seria aprovado. Por quê? Porque, no nosso modo de ver, o Estado e a cidade de São Paulo já atingiram há muito o nível de satisfação da demanda. Am-pliar novos cursos de Direito ali não representa nenhum fator social.

Mas há a crítica de que a OAB foi capturada por entidades, grupos eco-nômicos que interferem no processo de decisão sobre abertura de cursos.

Não é bem assim, basta

pergun-ta ao João Carlos Di Genio [dono

na Unip] ou ao Heitor Pinto Filho

[dono da Uniban] o que eles acham

da OAB. Eles têm horror! Um hor-ror danado!

Outro problema para o novo para-digma apontado é o da falta de pro-fessores. Com 1.100 cursos, não há mestres e doutores suficientes para atuar em sala de aula.

Esse é um dos fatores que têm

mo-bilizado a comissão da OAB. Veja, no começo dos anos 1990, quando a Co-missão Nacional de Ensino Jurídico foi criada, ela realizou uma classifi-cação dos cursos. Isso foi em 1993. Na época eram 184 cursos, hoje são 1.091. Então a OAB fez algo que an-tes só tinha sido esboçado no setor pri-vado pela Playboy, com o seu ranking das faculdades (iniciado em 1982) e

depois pelo Guia do Estudante, da

Abril. O MEC estava num processo de retração que depois foi ativado por outro viés, o da liberalização. Ou seja, autorizou tudo o que pôde para responder à demanda, esperando que

depois um sistema de avaliação viesse colocar as coisas nos eixos. O fato é que nesse cenário a OAB foi pionei-ra ao criar mecanismos de avaliação de cursos, apontando os excelentes, regulares e insuficientes. Foi a par-tir daí que a sociedade interpelou o MEC. E, para criar as comissões de especialistas, o MEC recorreu aos quadros da OAB. Eu, por exemplo, era membro da comissão da OAB. O Paulo Lobo também. Fomos con-vocados para integrar a comissão do MEC. Estamos falando dos anos 1990, do governo Fernando Henri-que, da época do Provão.

Até que ponto a tese da professora Loussia Felix ajudou na implantação desses processos?

Ela se colocou na posição estraté-gica de observar o que acontecia. E se ligou ao protagonista do momen-to, que era a OAB. Ela trabalhava o tema da avaliação da qualidade de cursos no seu doutorado. Para a OAB, ela criou modelos de avalia-ção, indicadores do sistema classifi-catório. Quando fomos para o MEC, nós a chamamos. Ela criou um be-líssimo programa de avaliação que o MEC não aproveitou plenamen-te. Mas nós, da comissão, tomamos

como referencial para construir os dois indicativos: primeiro, superar a crise significa repensar as diretrizes curriculares e construir um sistema de avaliação; segundo, introduzir a interdisciplinaridade, repensar os eixos de formação, a relação temá-tica entre disciplinas e matérias, buscar espaços não tradicionais para a produção de conhecimento, com as atividades complementares. Daí a experiência dos núcleos de prática jurídica, a valorização do protago-nismo dos movimentos sociais, das assessorias jurídicas universitárias, a introdução da monografia.

“Kant e Fichte buscavam o país distante pelo gosto de andar lá

no mundo da Lua, eu por mim tento ver, sem viés deformante,

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Ou seja, o modelo de avaliação criado pela OAB na área do Direito acabou dando o tom para a avaliação estabe-lecida pelo MEC para todos os cursos universitários?

Exato. Os modelos de avaliação dos cursos foram detonados a partir do processo da OAB. Infelizmente o modelo foi mal aproveitado pelo MEC, que optou por uma saída res-tritiva, mas de alto apelo social, que foi o Provão. O ministro Paulo Renato achou que essa avaliação resolvia. De-veria saber que não ia resolver. O Bra-sil forma hoje 25% dos advogados do mundo. Se deixassem no ritmo que vinha, em pouco tempo seriam 50% dos advogados do mundo. E pensar que há algum tempo sabíamos que o grosso dos advogados do mundo esta-va nos Estados Unidos, uma socieda-de extremamente litigiosa. E olha que lá são apenas 200 escolas de Direito.

Onde está o professor de Direito?

Esse é o lado, digamos, em cons-trução nesse processo, será o lado bom. A expansão, ainda que desorde-nada, acabou produzindo condições para avaliar, qualificar, e a qualidade do ensino passou a ser considerada pelos gestores. Criaram-se consulto-rias e aos poucos se profissionaliza a atividade do professor. Hoje a docên-cia é profissão, carreira. Já analiso projetos para credenciamento com diferenciais significativos de remu-neração, plano de carreira. Hoje tem professor que vive da docência, com rendimentos iguais ou superio-res ao de juízes e promotosuperio-res. Antes dar aula era diletantismo para alguns juízes que faziam da docência algo que enobrecia sua atividade, mas

in-cidental em sua vida, sem vínculos com a instituição. Hoje está desapa-recendo a figura do horista. A OAB não aprova um único projeto funda-do em professor horista. E a própria OAB tem mostrado os nichos que começam a se desenvolver.

O senhor pode citar alguns exemplos?

O Paraná nos surpreendeu. Quando se começou esse processo, quem tinha ouvido falar da Unesp de Franca? Quando a escola de Franca apareceu naquela avaliação da OAB, em 1993, recebemos tele-fonemas perguntando por que esse curso e não o Mackenzie. Depois quando veio o Provão, a Unesp figu-rou em boa condição, e continua na combinação dos elementos disponí-veis: o provão, o Enade e o exame de Ordem. A OAB em seus congressos

sempre tem espaço em que são apre-sentadas as experiências exemplares: o que alguém faz que, se outro sou-besse, faria igual ou melhor?

Passa a impressão de que a OAB per-deu muito do espaço que já ocupou como vanguarda na sociedade, como nos tempos do Raymundo Faoro. Essa impressão é errada?

Não, mas é não verdadeira. Há o es-tudo “A OAB Vista Pelos Advogados”, uma pesquisa de avaliação da imagem institucional. O que chama atenção nele é o fato de que os advogados são conservadores, mas a instituição não é. E advogados conservadores se re-conhecem numa instituição que não é conservadora, acham que ela repre-senta bem a classe quando se coloca como vanguarda. E ela não se coloca

Estamos num presente que é vestíbulo do

futuro. Estamos em pleno século 21, mas

muitos ainda têm a cabeça no século 19!

como vanguarda por ter uma platafor-ma progressista, platafor-mas por não se omitir nas questões que exigem participação e protagonismo. A minha confiança vem daí! Nisso sou otimista, embora de um otimismo trágico e não cele-brante! Acredito que certos sujeitos na sociedade podem realizar papéis transformadores, ainda que eventual-mente tenham uma história de con-servadorismo. É o caso de instituições como a OAB ou como o Judiciário. O juiz Harry Blackman, dos Estados Unidos, era o homem que vinha do Alabama, era conservador. Mas quan-do chegou à Suprema Corte, e che-gou por ser conservador, se envolveu com as lutas dos direitos civis e foi o mais avançado dos juízes.

O senhor cita o exame de Ordem como referencial até para o modelo de ensino. Mas exame avalia conteú-dos, e hoje a busca é por habilidades e competências.

Não acho essa separação entre ha-bilidades e conteúdo muito razoável. As escolas que conseguem as metas de qualificação mantêm o padrão de desempenho. Por exemplo, os alunos da UnB não fazem cursinho para aprovar no exame, eles sabem tra-balhar os conteúdos. Pois se os pro-fessores são tradicionais, também se desenvolvem espaços dentro da ins-tituição que possibilitam alternativas para o desenvolvimento de habilida-des. Não necessariamente na sala de aula. Lembro-me da frase do Evan-dro Lins e Silva, ele, o maior crimi-nalista brasileiro, dizia, em O Salão

dos Passos Perdidos: “Formei-me em

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