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Uma escola que se tornou igreja: o metodismo boliviano diante dos desafios da urbanidade

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Academic year: 2017

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PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UMA ESCOLA QUE SE TORNOU IGREJA:

O METODISMO BOLIVIANO DIANTE

DOS DESAFIOS DA URBANIDADE

Por

Jorge Esteban Wills Okada

Orientador

Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para a obtenção do grau de mestre.

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A dissertação de mestrado sob o título “Uma escola que se tornou Igreja: O

metodismo boliviano diante os desafios da urbanidade”, elaborada por Jorge

Esteban Wills Okada foi apresentada e aprovada em 20 de Março de 2014,

perante banca examinadora composta por Lauri Emilio Wirth

(Presidente/UMESP), Nicanor Lopes (Titular/UMESP) e Wagner Lopes

Sanchez (Titular/PUC-SP).

__________________________________________ Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião Sociedade e Cultura

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AGRADECIMENTOS

Gloria al Padre

, que con ternura amo

al Hijo,

que habitando entre nosotros se entregó por amor

y al Santo Espíritu,

Paracletos de Emanuel buen Señor

como era al principio, son hoy i abran de ser eternamente

.

Amen.

Devo expressar minha gratidão a todas as pessoas das quais recebi apoio para a concretização deste trabalho. Sem tentar excluir a ninguém, quero manifestar que sou grato:

Ao programa de pós-graduação pela oportunidade de aceder ao veneficio da bolsa CNPq.

A Ana Fonseca e ao IEPG pelo oportuno socorro.

Ao professor Dr. Lauri Emilio Wirth, pelo tempo e atenção dispensada par considerar meu trabalho, pela sua disposição ao me ajudar com a língua portuguesa.

Aos professores das disciplinas cursadas, por contribuir na minha formação e alargamento de horizontes,

A Rodrigo Ribeiro, pelo seu suporte na revisão do presente texto depurando-o do agravio do portunhol.

A Angela, Rafael, Rogerio amigos e colegas e todos os colegas na casa do IEPG, companheiros de muitas tertúlias que amenizaram o tempo de formação.

A meus irmãos na Igreja Metodista no Brás, pela sua fraternal acolhida e suporte. In memoriam a Marcial Wills, meu pai, a Doris Okada, minha mãe, que ao encarar com firmeza suas próprias trilhas souberam me mostrar meu norte.

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WILLS Okada, Jorge Esteban. Uma escola que se tornou igreja: o metodismo boliviano diante dos desafios da urbanidade. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2014 (Dissertação de Mestrado). 153 fl.

RESUMO

A sociedade boliviana está marcada pela ostensiva presença dos estratos étnicos culturais indígenas originários. Como consequência do passado colonial ainda se vincula o status de camponês à pertença a uma etnia indígena. Nesta realidade sociocultural, a Igreja Evangélica Metodista da Bolívia (IEMB), desde sua implantação no princípio do século 20, ganhou legitimidade e espaço na sociedade boliviana pelos seus aportes à sociedade com suas obras de serviço (educativo, saúde, desenvolvimento rural). Atualmente a IEMB se configura como uma Igreja rural, sendo que a população boliviana é eminentemente urbana. Assim a urbanidade é o desafio para a ação eclesial e pastoral, se a IEMB pretende manter sua relevância na sociedade boliviana. Tenta-se, nesta pesquisa, apontar na tradição teológica eclesial wesleyana alicerces para uma relevante presença eclesial e pastoral nas particularidades da realidade urbana boliviana.

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WILLS Okada, Jorge Esteban. Uma escola que se tornou igreja: o metodismo boliviano diante dos desafios da urbanidade. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2014 (Dissertação de Mestrado). 153 fl.

ABSTRACT

Bolivian society is marked by the overt presence of ethnic cultural strata of indigenous origin. As a consequence of the colonial past,it is still assumed that status of peasant means belonging to an indigenous ethnic group. In this sociocultural reality the Evangelical Methodist Church in Bolivia (IEMB), since its implementation in the early 20th century, gained legitimacy and space in Bolivian society because of their contributions to society with their works of service (education, health, rural development). Currently the IEMB is configured as a rural church, and the Bolivian population is predominantly urban. So urbanity is the challenge for ecclesial and pastoral action, if the IEMB intends to maintain its relevance in Bolivian society. Attempts are made in this research, to point toward in the Wesleyan theological tradition ecclesial foundation for a relevant ecclesial and pastoral presence in the particularities of the Bolivian urban reality.

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SUMÁRIO

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2.1.1.1 A emblemática obra entre os aymaras de Hutajata (1912- 1920): a “Sociedad Peniel Hall”, administrada por metodistas e batistas. __________________________________ 52 2.1.3. Primeira Conferência Missionária da Bolívia (1916) ________________________ 53 2.1.4. O estabelecimento da obra médica ______________________________________ 53 2.1.5 Simpatia e adversidade ________________________________________________ 53 2.1.6 A crise entre as guerras mundiais e o crescimento __________________________ 54 2.2 Rumo à autonomia: consolidação e crescimento nas décadas de 40 e 50 __________ 55 2.3 A revolução nacionalista de 52 e a Missão Metodista _________________________ 56 2.4 A autonomia _________________________________________________________ 57 2. 5 Movimento leigo e movimento aymara ___________________________________ 58 2.6 A crise teológica institucional de 1992 - 1994 _______________________________ 61 2.7 O espelho: A ascensão de Evo Morales ____________________________________ 62 2.6 Uma realidade. Uma questão ____________________________________________ 65 CAPÍTULO II

“PROGREDIR NA VIDA”: CIDADES E ASPIRAÇÃO DE CIDADANIA:

Questionamentos e desafios _______________________________________________ 69 Introdução ________________________________________________________________ 69 1.1 A cidade e seus urbanos: apontamentos ____________________________________ 77 1.2 O fenômeno urbano, um fato cultural e a urbanização como processo de

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INTRODUÇÃO

A motivação deste trabalho de pesquisa bibliográfica está em minha pertença à IEMB e na minha intenção de servir nesta no ministério pastoral, assim como o desejo de ter pautas para a compreensão dos processo sociais e políticos que atualmente vive a Bolívia. Interessam-me principalmente as implicações do atual processo boliviano para a identidade da IEMB, uma igreja que se autoproclama aculturada. Por isto, em mais de um aspecto, os assuntos que aqui se tentam abordar têm apelo vivencial, considerando-se o novo (ou não tão novo) contexto social boliviano e suas implicações políticas e culturais. Ao mesmo tempo em que pesquiso a história da IEMB, reflito sobre a minha autoimagem como mestiço, porém nunca cholo, questão esta que evidencia a profundidade da formatação colonial na sociedade boliviana.

Por ser filho de pastores que atuaram na IEMB por longos anos, é um desafio me abstrair do ditado popular: “pueblo chico, inferno grande”. Dado que esta motivação pode ser um fator que compromete a objetividade acadêmica, tentei não ser apologético, nem hagiográfico, ao descrever o objeto deste trabalho.

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como ‘crioulo’. Porém, ‘criollos’ seriam os descendentes brancos dos colonizadores espanhóis, enquanto ‘crioulos’ seriam o fruto da mestiçagem.

Nesta pesquisa bibliográfica, proponho descrever: a) o contexto histórico boliviano e a decorrente contemporânea realidade demográfica boliviana; b) o contexto histórico (implantação e desenvolvimento) da Iglesia Evangélica Metodista en Bolivia (de agora em diante, IEMB); c) algumas descrições dos teóricos que estudam o fenômeno urbano; d) com a premissa que a IEMB tem raízes na herança teológico-eclesial-pastoral wesleyana, procurarei abordar a eclesiologia Wesleyana como fonte de possíveis pistas de orientação eclesiológica para a IEMB como resposta ao contexto urbano boliviano.

Por constituir-se o contexto da Igreja Evangélica Metodista na Bolívia um desafio a que deve responder, o foco que traça este trabalho é apontar para a mudança na realidade demográfica boliviana, marcada pela concentração demográfica nas cidades de médio e grande porte do chamado ‘eixo central’, constituído pelas conurbações de La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, que congregam 70% da população nacional.

No propósito de colher elementos que permitam pensar pistas para responder à realidade urbana boliviana, sem a pretensão de sermos exaustivos, abordamos a temática do fenômeno urbano tentando obter um mapeamento geral de algumas questões tratadas pelos teóricos que olham para estes temas.

Na realidade boliviana, indiólogos, indianistas, indigenistas, pachamamistas, pachakutistas, kataristas e muitos outros ativistas, como também os estudiosos das áreas humanas, discutem as questões relativas à cultura, identidade, etnicidade, produzindo uma vasta literatura, porém, que dificilmente se furta da instrumentalização ideológica e sectária. Também existe, no contexto boliviano, uma vasta e infrutífera discussão político-ideológica-teórica que fortemente visa a cooptação e ao gerenciamento do poder a respeito da plurinacionalidade, internacionalidade e interculturalidade do Estado da Bolívia.

Por essas razões e por razão de espaço e tempo, não é o propósito deste trabalho discutir a relação das massas e sua identidade étnica com relação às nacionalidades que conformam o Estado, nem as conceituações teóricas a respeito de: Estado, cultura, identidade, etnicidade, mesmo sendo vocábulos que precisemos usar ao referir-nos à realidade urbana inserida no processo histórico boliviano, dando ênfase no impacto colonial na conformação da idiossincrasia da sociedade (sociocultural) boliviana.

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empíricos da realidade social e econômica, evidenciando-se também o uso ideológico destes. Exemplo dessa condição é a controvérsia entre o governo nacional e os setores acadêmicos e técnicos com respeito ao valor dos dados levantados no último censo nacional. Discriminar esse vasto material demandaria tempo e destrezas específicas, que a limitação de tempo e espaço não nos permite tocar. Assim, nos limitaremos a usar os dados do Instituto Nacional de Estatísticas-INES referentes ao censo de 2001.

O acesso a dados da IEMB foram limitados pelo tipo de uso institucional que se faz destes.

Assim nosso referencial bibliográfico consiste em apresentar a história da Bolívia e suas significações socioculturais e políticas, usando os dados apresentados nas obras de:

CARVALHO, Ruber. Manual de Historia de Bolivia: Una visión desde la llanura, 2010, por fazer uma revisão histórica um tanto crítica e deliberadamente orientada a contestar a tradicional hegemonia andina que aportará uma visão mais ampla para a revisão da história da Bolívia.

MESA, J. de; GISBERT, T; GISBERT,C. D. M. Historia de Bolívia. 2007, por ser uma das obras historiográficas mais completas, sem ser a mais exaustiva, e que tem grande respeitabilidade no contexto boliviano. É um texto básico da história geral da Bolívia, abarcando a época pré-hispânica até o contemporâneo Estado Plurinacional da Bolívia (2010); fornece muita informação paralela a análises conceituais sérias de caráter político, econômico e social.

OLMEDO, Llanos, Oscar. Paranoia Aimara. 2006. Apresenta-nos uma contextualização e um certo desvelamento da idiossincrasia aimara que, de maneira geral (com as devidas nuanças de uma generalização a priori), conseguiu ser hegemônica na cultura andina boliviana.

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protestante na América Latina. MIGUEZ, José. Rostos do protestantismo latino-americano, 2003. Tenta caracterizar a natureza identitária do protestantismo Latino-americano.

Os subsídios a respeito da questão urbana provêm de alguns trabalhos que, sem ignorar a importância estrutural do capitalismo globalizado, não se engessam pela teoria da dependência, permitindo olhar para as brechas que o sistema permite, abrindo a possibilidade de pensar que os níveis elementares da sociedade podem se mobilizar, como oportunidades de reação das comunidades localizadas nas bases ou nas periferias do sistema, gerando mudanças na realidade concreta, mesmo que as estruturas do capitalismo global tenham peso inegável ao formatar as condições e opções de vida de nossos povos.

CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009; CAVALCANTI, Limena Maria Margarida. A crise das cidades contemporâneas: desafios do futuro. 1996; CASTELLS, Manuells. La ciudad y las masas: Sociología de los movimientos Sociales urbanos. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1983; COMBLIN, José. Viver na cidade: pistas para a pastoral urbana. São Paulo: Paulus, 1996; VIGNOLO, Luis H. El fenómeno urbano. In: Cultura Urbana: reto a la evangelización. Bogotá CELAM – SEPAC. 1989; LIBANIO, João B. As lógicas da Cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Editora Loyola, 2001, BAUMAN Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 2009; MARILEO, Armando. ¿Modernización o sabiduría en tierra mapuche? 1995.

Neste trabalho, consulta-se a tradição teológica wesleyana e latino-americana, tentando uma compreensão eclesiológica, como fonte para a ação pastoral da IEMB; considerando principalmente os trabalhos de: SOUZA, José C. de. Leiga, Ministerial e Ecumênica: A Igreja no Pensamento de John Wesley. 2009. Este livro faz um levantamento dos estudos eclesiológicos no pensamento de John Wesley nos últimos cinquenta anos, como subsídios para a atual compreensão da natureza da igreja, que, na tradição wesleyana, deveria ter espaço para o ministério leigo com um caráter abrangente por ser ecumênica. RENDERS, Helmut. Andar como Cristo andou: a salvação social em John Wesley 2010. Apresenta-se como uma revisão dos últimos 60 anos da compreensão dos teólogos do desenvolvimento da experiência e do pensamento de Wesley. Assinala a responsabilidade da igreja com seu meio sociocultural como parte do arcabouço da tradição teológica wesleyana.

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as possibilidades de uma eclesiologia com alicerces na realidade concreta que seja uma alternativa às marcas de desumanização que moldam o cotidiano e o futuro.

No primeiro capítulo, para fornecer a compressão do contexto boliviano como lócus da IEMB, apresenta-se uma síntese da história da Bolívia. Tenta-se de fazer uma contextualização histórica que descreva uma das questões de grande relevância da realidade sociocultural boliviana que é a que vincula a condição camponesa com a pertença a uma etnia indígena. Paralelamente, oferece-se um resumo da história da Bolívia para mostrar o forte peso da ordem étnico-social criada pela colonização espanhola, onde o rural camponês sempre foi sinônimo de pertença a uma etnia indígena e subalterna, e sua relevância nos processos socioculturais econômicos e políticos que atualmente vive a Bolívia e que configuram o contexto em que a IEMB se desenvolveu e com o qual interage, realidade esta que também deve interpelá-la.

Elabora-se uma síntese histórica da IEMB, apontando aspectos de sua implantação e alguns aspectos de seu desenvolvimento, tentando-se perceber as motivações do movimento missionário e o processo de autogestão desenvolvido nestas últimas décadas.

Ao apresentar a síntese histórica da IEMB, tenta-se mostrar o desequilíbrio entre sua ênfase eclesial e o tamanho e porte da gestão político-administrativa das obras de seu serviço educativo, fruto das políticas e estratégias de implantação dos trabalhos da missão Metodista na Bolívia. Aponta-se a realidade demográfica boliviana que é majoritariamente urbana, constituindo-se no desafio que a IEMB deve atender com seus esforços, já que se autodefine como optando preferencialmente pelos pobres.

Esta descrição tem o propósito de criar uma compreensão de que a IEMB tem que se sintonizar com os processos demográficos que configuram o país e suas decorrências, isto é, a urbanidade, para conseguir responder como igreja de Cristo à missão para a qual Deus a convoca; sem abandonar as atuais bases rurais (fator importante na configuração do equilíbrio do poder institucional) fortalecer e diversificar a presença de comunidades locais nas áreas urbanas, atentando para as características dos centros urbanos e suas particularidades socioculturais.

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étnico-social, determinando a insurgência de novas classes ou categorias sociais que irrompem no novo cenário nacional. Assim, as questões que se descrevem neste capítulo constituem-se na realidade à qual a IEMB deve responder com sua missão.

Não é nossa intenção aprofundar as questões culturais, ainda que tenhamos que referir-nos a elas frequentemente. Também não é a intenção deste trabalho apresentar uma análise das considerações do desenvolvimento histórico da cidade, tratando seus estágios antigo, medieval, renascentista, moderno, capitalista e da contemporânea globalização. Assim, partindo da compreensão da realidade urbana, pretende-se refletir sobre uma possível resposta eclesiológica que articule a missão da IEMB em seu contexto urbano.

Num primeiro intuito, no terceiro capítulo, aborda-se o trabalho de Comblin, mostrando a relação da Igreja com a cidade. Tem-se a intenção de identificar a compreensão da natureza da Igreja olhando para o interior da cidade, isto é, em sua relação com a cidade, explicitar a natureza da Igreja no pensamento de Comblin. Quer-se, ainda, definir a Igreja enquanto sociedade humana em relação de comunhão e sua razão de ser na cidade, isto é, a sua missão (da Igreja) com respeito à cidade para revelar sua natureza.

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CAPITULO I

BOLÍVIA: DE QUE FALAMOS?

UM PROCESSO HISTÓRICO,

ASPECTO POLÍTICO-SOCIAL-CULTURAL

1. Substratos culturais: precedentes histórico-sociais

Aquele que visitar as principais cidades bolivianas não poderá deixar de perceber, em meio ao caos urbano, a evidência da presença da ancestralidade originária (indígena). Nesta última década, essa identidade originária andina está sendo reafirmada tanto pelas classes populares como pela classe média tradicional e pela nova classe média chola1 em ascensão, fruto do processo sociopolítico cujo ícone paradigmático é Juan Evo Morales Aima. Por isso, é preciso reiterar que uma das particularidades que a Bolívia compartilha com alguns países latino-americanos (não com todos) é o fato de uma alta porcentagem de sua população ser originária ameríndia e diversa, fator este de fundamental importância na hora de considerar os processos histórico-sociais atuais, como seus precedentes históricos.

A atual realidade boliviana, com suas mudanças radicais, que prevê um futuro não muito bem definido, porém de efeitos irreversíveis para seus atores étnico-sociais, requer uma noção do processo histórico que a forjou, dando-lhe suas particularidades

1 Cholo: A palavra cholo é uma classificação de qualificação racista e classista, criada no seculo16 para

denominar os escravos filhos de indígenas e afros descendentes na América hispânica. A origem etimológica mais plausível seria a que aponta para sua origem na língua Náhuatl falada até hoje no México e parte da Centro-América. A palavra cholo em seu sentido etimológico mais estrito derivaria de Xoloitzcuintli ou Xoloitzcuintle, que significa “cachorro sem pelo”, uma espécie de cachorro originária do México e considerada sagrada pelos indígenas, similares aos que existem no norte do Peru. No primeiro

período da conquista, os espanhóis utilizaram da contração xolo ou “perro” (cachorro) como

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idiossincráticas e formando assim um ethos e habitus próprios, isto é, suas particularidades étnico-culturais e político-sociais que constituem o espaço e a realidade à qual a IEMB tem que responder com seus esforços missionários e pastorais. É preciso, por conseguinte, que tenhamos uma noção panorâmica da história do período anterior à chegada de Colombo às costas do continente que hoje chamamos América. Procurarei, portanto, traçar um panorama geral do processo histórico boliviano que deriva no atual “Estado Plurinacional da Bolívia”.

1.1 Os povos das terras baixas do Leste

Os tratados clássicos de história sempre dão ênfase aos processos históricos da região andina, com destaque ao ocidente, a respeito de que Ruber Carvalho comenta:

América del Sur es en realidad, geográficamente hablando, más trópico que montaña; sin embargo, la antropología oficial da cuenta sobre todo de las civilizaciones que habitaron la región montañosa o andina, porque en esa área se centró la atención de la conquista territorial y la administración, ya la economía consistía principalmente en la extracción del oro, la plata y las piedras preciosas. De ahí el menor interés por la región amazónica y del Plata [...] Además, hay que señalar que el derrotero expedicionario de la conquista (del lejendario El Dorado) estuvo obsesionadamente dirigido a la búsqueda de metales y piedras, incluyendo la cruzada misional jesuítica que se esparcío sobre regiones llanas, desde Venezuela o Nueva Granada (Colombia), pasando por Mojos (leste boliviano), Chiquitos, Paraguay, Brasil y Argentina2.

Esta tendência claramente influencia a autocompreensão do imaginário nacional boliviano que projeta uma imagem andina da Bolívia que tenta invisibilizar a diversidade da Bolívia das terras baixas do leste.

A etnologia e a antropologia atualmente estabelecem que três grandes correntes culturais atravessaram as planícies ao leste dos Andes, desde o norte até o sul: a cultura arawuac, de origem caribenha – a essa família pertenceriam a maior parte das tribos que habitavam os territórios de Mojos e Chiquitos; os povos Chane, e povos de Ixiama e Apolobamba (nordeste da Bolívia). E por outro lado, a grande cultura dos povos tupi-guarani que povoavam as extensas planícies ao sul do sistema amazônico até o Uruguai, norte da Argentina e o sul da Bolívia. Outros povos pampeiros, como os praticamente exterminados povos do sul da Argentina e sul do Chile, conformavam o cenário social das planícies da América do Sul3, que na Bolívia, atualmente, compõem 33 grupos étnicos4.

2 CARVALHO, Ruber. Manual de História de Bolívia: Una visión desde la llanura. Santa Cruz: Editorial

Mavarú, 2010. p. 28.

3 Ibid. p. 30.

4 O Censo Indígena das Terras Baixas - Oriente, Chaco y Amazônia - realizado em 1994 utilizou-se dos

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Todos estes povos que habitam as terras baixas do leste tiveram vida nômade de coletores e caçadores com uma mínima prática de agricultura sedentária, porém, fortemente territoriais e com uma clara consciência de identidade étnica. A empreitada das missões jesuíticas aglutinou e homogeneizou diversos grupos, obrigando-os a sedentarizar-se, conformando as grandes parcialidades indígenas de mojos e chiquitos no centro-leste do território boliviano. Entretanto, não desenvolveram uma estrutura social e econômica tão complexa como a dos povos quechua e aymara nos Andes centrais. Podemos afirmar que a noção de terra e território é determinante para a identidade, isto é, a particularidade da idiossincrasia dos grupos étnicos é determinada por sua relação com o nicho ecológico que habitam o espaço geográfico de que usufruem e defendem.

1.2 Os substratos culturais dos Andes centrais

Na história dos povos que habitavam (e ainda povoam) os Andes centrais, podemos identificar uma continuidade histórica forjada pela permeabilidade de diferentes substratos culturais que não se desenvolveram isolados, mas provocaram uma continuidade que desenhou sua identidade histórico-cultural; por isso, é preciso dar atenção aos centros político-religiosos que deram forma às sociedades andinas, no que a arqueologia denomina horizontes regionais (I. horizonte antigo Chavin: 1500 - 100 a.C.; II. horizonte médio Wari Tiwanaku: 600 a.C - 100 d.C.; III. horizonte tardio Cusco Inca: 1430-1532 d.C.). A hegemonia destes centros foi tanto vertical como horizontal e, no caso de Chavin de Wantar, religioso-cultural antes de militar-política, onde se destaca a forte influência das grandes construções na conformação religioso-ideológico-cultural e aglutinante nos povos andinos5.

O presente e o passado dos diversos povos originários dos Andes centrais são o fruto de um longo processo histórico cultural de confronto e assimilação em que as diversas culturas dominantes (externas) como: Moche, Tiwanaku, Inca e ibérico-colonial interagiram agregando suas matrizes (culturais, sociais, econômicas, religiosas) às particularidades específicas das etnias locais.

5 ARNOLD, Denise Y. Algunos aportes de las ciencias sociales para El proyecto de la Teología Andina. in:

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1.2.1 Os Incas

Após o colapso do império Tiwanaku e o decorrente estabelecimento dos senhorios Aymara6, no século 12, surgem os Incas originários dos arredores de Cuzco (Peru). Os primeiros senhores da dinastia oficial Inca são lendários.

A expansão do senhorio quechua inicia-se a partir de Viracocha, oitavo, “Inca” (palavra doravante entendida como título de nobreza). Este começa a conquista dos territórios dos senhores Collas do altiplano (atual território compartido entre Bolívia e Peru). Pachacuti, o nono Inca, consolida a posse dos territórios e povos até os Andes orientais. A partir deste imperador, pode-se estabelecer uma cronologia histórica com fatos específicos7. Quando da morte de Pachacuti, por volta de 1407, as empreitadas militares deste imperador já haviam conquistado, para o império, mais de trezentas léguas de território.

Já o décimo primeiro Inca, Huayna Capac, formou um império quechua pan-andino; conquistou muitos territórios e submeteu diversos povos. Sua fronteira norte chegou até Quito, no Equador; a fronteira sul foi até ao norte do Chile e à Argentina, e a fronteira oriental até as terras baixas dos Andes orientais8.

A sociedade Inca caracterizava-se por uma forte estratificação social inamovível. Exemplos disso são as palavras pronunciadas por um “plebeu” (o habitante comum dos Andes, denominado jatunruna), ao nascer sua criança, segundo registra uma antiga canção folclórica9:

“¡Oh! Criatura ¡Oh chiquitito! Venido eres al mundo a padecer. ¡Sufre, padece y calla!”

O eixo que regia todas as sociedades eram os ayllus (clãs) e os pacanas, como eram chamados os ayllus de alta estirpe, formados pelos descendentes diretos de cada um dos Incas; dos pacanas saíam os militares e administradores imperiais, a respeito dos quais, Teresa Gisbert diz:

6 Aimara é a forma normativa no espanhol moderno. A grafiaaymara, é uma forma presente nos primeiros

textos colôniais, evidencia a maneira de escrever os ditongos que que terminam em i,que no espanhol moderno tem desaparecido no interior da palavra, e que só sobrevive nos ditongos que a rematam (como o caso de: ley,careye hayperoaceite,reinae caiga). Neste sentido, a grafia aymaraconstitui um arcaísmo, como é o caso de aceyte,reynaecayga, formas todas que tiveram plena vigência no passado. O uso desta grafia arcaica tende a adquirir conotações reivindicativas tanto linguístico indenitárias como reivindicações político-social (sem negar a ordem ideológica).

Por rações pragmáticas neste trabalho opta-se pela antiga grafia ‘Aymara’ ao invés de ‘aimará’ reconhecida pelos modernos dicionários de língua espanhola, por ser amplamente usada nos territórios da Bolívia Peru e Chile.

7 MESA, J. de; GISBERT, T; GISBERT,C. D. M. Historia de Bolívia. La Paz: Gisbert y Cia, 2007. p. 50. 8 Ibid. p. 50 - 55.

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La cabeza de esta sociedad se componía de aquellos que tenían sangre real. [...] El Inca estaba divinizado y sus poderes eran ilimitados, pues legislaba, administraba, era sumo sacerdote y general de los ejércitos. Como descendiente del Sol era adorado por sus súbditos; nadie podía mirarle la cara excepto sus mujeres y hermanas, y nadie podía acercársele sino descalzo. Después de la nobleza existia un grupo también pequeño de guerreros cuzqueños denominados de “incas de privilegio”. Estas dos castas se distinguían por llevar las orejas artificialmente deformadas por esto los españoles los llamaron de orejones10. Muy por debajo de estos estaba el pueblo que trabajaba las tierras e que en día,

y tiempo señalado, cultivaba las tierras del Sol y del Inca11.

Assim, no topo da pirâmide social, muito perto do nível do Simpainca (o “rei dos reis”), estava a Coya, mulher do Inca, e o Sacerdote do Sol, também chamado Inca de Urin. Abaixo vinham os pacana. Logo depois vinham os curacas (como eram chamados os “caciques” ou senhores dos povos conquistados), junto a outros membros inferiores dos pacanas ou clãs incas.

O povo comum dos Andes (que recebia a denominação de jatunruna, como já se disse) era formado de membros de diversos ayllus (clãs). No mesmo nível encontramos os chamados “mitimanes de castigo”, povos conquistados usados na infantaria e na condição de colonos. Os mitimanes, oriundos de distintas regiões do império, constituíam a base da mita, o tributo que os imperadores exigiam em forma de trabalho12.

Finalmente, na base da pirâmide social, encontramos os yanaconas, que viviam em condição servil, dependentes da aristocracia Inca. Sua servidão era hereditária e vitalícia, ainda que não fossem escravos. E à margem do sistema social Inca ainda podemos encontrar dois grupos: os piñas, ou escravos, que eram propriedade do imperador e do Estado; e os grupos excluídos racialmente, considerados como intocáveis e subumanos, como os Uros, Cangos e Moyos13.

Os Incas possuíam as melhores terras, que eram cultivadas pelos yanaconas. O aproveitamento e a distribuição das terras eram desiguais, estabelecidos na seguinte ordem de privilégios: terras do Estado, pertencentes ao simpainca; terras dedicadas ao culto do Sol, usufruídas pelo sacerdote; terras pertencentes aos nobres e senhores locais; terras comunitárias ou dos ayllus (ou, ainda, dos mitimanes estrangeiros); parcelas de usufruto dos

10 Orejones ou orelhões eram incas nobres que mostravam seu poder usando pesados brincos de ouro maciço

que desfiguravam o lóbulo da orelha e causavam uma deformação craniana que provocava alongamento artificial do crânio.

11 MESA; GISBERT; GISBERT, 2007, p.57 e 58.

12 Mita: implantada pelos incas, consistia em serviços obrigatórios e escassamente renumerados, que em

períodos de quatro meses e por turno devia prestar todo habitante plebeu nas terras, minas e obras do Estado. Mitayos: povos que, por razões militares, geopolíticas ou econômicas, foram deslocados ou reagrupados. Mitiman, mitayo de mitmat: homem transposto, deslocado, mudado, adventício. Os incas deslocaram do sítio que lhes era próprio 42 nações distintas no território imperial. OLMEDO, 2006, p.199.

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yanaconas em terras do Estado ou dos senhores e, finalmente, lotes em usufruto dos piñas, contíguos às minas do Estado e às plantações de coca.

Assim, a dominação imperial dos incas, enquanto aplicação de políticas de controle político e social, padronizaram muitas características daquilo que a chegada dos ibéricos pôde se considerar o ethos e habitus originários andinos. Estes padrões respondem aos efeitos diretos das iniciativas das políticas imperiais como também à resistência das culturas locais que assimilavam aquilo que facilitava a vida em seus próprios padrões locais, fazendo assim a subversão daquilo que lhes era imposto, umas vezes e, em outras, convivendo as cosmovisões locais com a cosmovisão da elite imperial14.

Estas considerações trazem à tona controvérsias a respeito do valor do conceito de sincretismo para definir estas dinâmicas, sendo que isto denotaria um senso de impureza num substrato sociocultural genuíno. Porém, as considerações a respeito dos processos históricos e suas dinâmicas socioculturais evidenciam uma assimilação e sobreposição que denota uma continuidade num processo de acomodação de sua cosmovisão ao receber o impacto de novas realidades socioculturais na continuidade se seu entorno natural ou seu nicho ecológico, seja esta por efeitos de fluxos culturais e de comércio (troca) ou pela dinâmica política de conquistar e ser invadidos, identificado por Olmedo como “um ensamble entre a cosmovisão/vivência e entre o interesse e a utilidade que é inerente à continuidade pragmática”15. Assim, ambas as cosmovisões se combinam, encobrem-se e se cobrem mutuamente16. Numa relação ambivalente, não só do impacto de inimigos que mutuamente se desqualificam, senão em uma ambiguidade de duas fases em que, em função da conveniência, faz-se do inimigo o amigo, fazendo fluida a combinação; dessa forma, o conquistado e conquistador são impactados e simultaneamente impactam17, onde acontece não só a simbiose como o encobrimento do outro.

1.2.1.1 Sua religião

É um paradoxo que as fontes mais seguras a respeito da religião dos naturais dos Andes à época da chegada dos espanhóis devam-se às crônicas dos clérigos católicos incumbidos do cargo de “extirpadores de idolatrias”.

Tanto os incas como todas as culturas andinas anteriores tinham uma cosmovisão impactada e moldada pela consciência e onipresença de seus deuses sempre imanentes,

14 OLMEDO, 2006, p. 211 a 214 15 Ibid. p. 214

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forjando, assim, a concepção de seu mundo teogônico e teosófico. Eram perplexos pelo mundo que os rodeava, perante o qual se entendiam impotentes, assim procurando comunicar-se com escomunicar-ses espíritos. Buscavam-nos e pensavam que estavam nas colinas, na água, no vento, no sol, na lua, etc. Assim, o profundo respeito pela natureza moldava sua religiosidade e os impedia de questionar teologicamente sua condição no mundo, moldando no povo plebeu andino uma característica de passividade diante das forças cósmicas.

Um elemento importante da religião e da cosmovisão andina é a “dualidade anan e urin”18. Procuram conciliar-se com as antigas etnias e introduzem transmutações e novos elementos, como o culto às Huacas19 e o sacrifício da Capac-Cocha, que consistia em enterrar crianças vivas, a fim de manter afáveis os seus deuses20. A religião andina gradativamente se conforma à teodiceia das estruturas de poder. Duas características que perduraram e que são relevantes na religiosidade popular de nossos povos andinos, hoje, na compreensão de O. Olmedo são:

Si sus ídolos tienen una jerarquía con roles específicos acoplados a cómo ellos viven en su cotidianidad, donde se plasman grupos de poder claramente definidos. Y, paralelamente los pobladores inferiores (jatunrunas) tienen sus propios dioses distintos de los de la elite, lo que no contradice que ambos compartan determinados dioses.[...]. Se trata más bien de admitir una diferencia intracosmovisionaria o, la existencia de una(s) subcosmovisíon(es) coexistente(es) a su interior (se podría admitir también subculturas) [...]. Cuando ya en la religión global del incario, un de sus dioses no correspondía a sus ruegos, o no predecía el futuro correctamente se los elimina o cambia directamente por otros. Este es un ejemplo típico del ensamble entre la cosmovisión/vivencia, es decir del interés y la utilidad que es inherente además a su cotidianidad pragmática21.

1.2.1.2 A queda do império Inca e a conquista (1531-1535)

Francisco Pizarro, em 1532, chega ao território Inca em meio a uma guerra civil22. Este conquistador, num primeiro momento, foi tratado como um deus. Pizarro e seus 168 homens, em um ato de ousadia, conseguiu derrubar o arrogante e confiante Atahuallpa, que estava

18 OLMEDO, 2006, p. 208 e 209.

19 Huacas: é a denominação que recebe todo objeto sagrado, seja um morro, uma lagoa, uma cova, um produto

da terra de forma singular, etc. Também eram huacas as múmias de um patriarca fundador ou monumento funerário de seus antepassados. MESA; GISBERT; GISBERT, 2006. p. 62.

20 Ibid., p. 51

21 OLMEDO, 2006, p. 213 e 214.

22 Os cronistas relatam que o imperador inca Huayna Capac teve um filho com a princesa quitenha Tupac Palla,

dando-lhe o nome de Atahuallpa. Este filho herdou a parte norte do império, com sua capital Quito, no atual Equador. Huayna Capac também teve um filho com uma princesa Inca, em Cuzco, chamado Huascar, que herdou a parte sul do império, da qual Cuzco era a capital.

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acompanhado de mais de 2 mil homens. Aproveitando-se desta situação, proclamou-se intermediário para reunir os irmãos Atahuallpa e Huascar (tudo estava planejado para submeter os Incas).

Atahuallpa, refém de Pizarro, ordenou a execução de seu irmão preso em Cuzco. Após a morte de Huascar, e a execução de Atahuallpa (que fora batizado sob o nome de Francisco), alguns filhos de Huascar e Athauallpa facilitaram a administração colonial. O sistema Inca de senhores tributários e de cobrança da mita foi usado e adaptado brutalmente durante a ocupação colonial espanhola.

1.3 A sociedade durante o governo dos vice-reis espanhóis (1544-1821)

Passado o período da conquista e consolidada a colonização, estabelece-se o período do vice-reinado (virreinal). Os vice-reinados foram criados para dar coesão e firmar a autoridade e garantir os direitos reais em suas, cada vez mais, extensas posições ultramarinas.

O Consejo de Indias ou Real Consejo de Indias foi o organismo máximo que se incumbia da política administrativa, a justiça e o exército no Real Patronato de Indias, e tudo o que tivesse a ver com as terras da América hispânica. Este conselho respondia diretamente ao rei. Assim, todo o ordenamento social, religioso e econômico estava normatizado desde o conselho de índias e desde a Real Casa de Contratación de Sevilla que se incumbia das questões do comércio, coleta de tributos, alfândega e migrantes.

No período dos vice-reis espanhóis, a sociedade, que já estava dividida em classes sociais, é atingida ainda mais fortemente pela discriminação determinada pela cor da pele e etnia. Os espanhóis que participaram da conquista dos novos territórios ganharam terras do rei da Espanha, com a incumbência de cristianizar os povos que as ocupavam, em troca do usufruto de seu trabalho no estilo da mita, instituindo-se, assim, a “encomienda”23 (esta só era válida para duas gerações; depois, a coroa podia cedê-las a um outro possuidor24).

Para garantir os direitos reais nos territórios americanos, tanto como para controlar as desavenças e abusos dos capitães conquistadores, Carlos I criou o cargo de vice-rei25. No

23 Encomienda: em virtude do padroado régio, o Papa outorga a evangelização dos naturais das terras

colonizadas pela coroa espanhola ao rei da Espanha. Por sua vez, o rei encomenda a tarefa de evangelização dos índios àqueles que receberam as novas terras em usufruto. Estes encomenderos seriam recompensados por ‘este grande bem’ com o serviço dos índios. MESA; GISBERT; GISBERT, 2007. p. 117.

24 Ibidem.

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topo dessa estrutura social estava o Rei da Espanha, logo abaixo, o vice-rei. Todos os cargos políticos, militares e administrativos estavam ocupados por espanhóis chegados da Europa, enquanto os criollos, europeus nascidos em terras americanas (os brancos americanos), ocupavam cargos subalternos, o comércio e eram donos das minas e fazendas.

Os corregidores, por mandado real, deveriam aplicar as leis de Índias de proteção aos índios e o direito real. De fato, foram os principais usufruidores de taxas arbitrárias e abusivas, que vitimavam os índios, chegando a se opor à autoridade legal do vice-rei27, estabelecendo-se o princípio implícito de que “a lei se respeita, mas não se cumpre”.

Na sociedade vice-real, os cholos28 eram os mestiços, filhos de espanhóis com índias. Eles eram considerados a camada mais alta da população indígena e a mais baixa da classe média urbana29, porém não inclusos nem nas “repúblicas de castellanos” nem nas “repúblicas de índios”30. Logo abaixo vinham os mulatos, filhos de brancos e africanos, seguidos dos zambos, filhos de índios e negros. Tal como os mulatos e os zambos, os cholos não tinham acesso à educação (sendo a educação universitária o sinônimo de fidalguia branca) nem à burocracia administrativa. Porém, os cholos podiam se dedicar ao artesanato, indústria e agricultura. Pouco a pouco lhes foi permitido o comércio de produtos agrários.

No vice-reinado do Peru, em 1572, após a execução de Tupac Amaru, o vice-rei Francisco de Toledo ordenou aos homens e mulheres indígenas trocarem suas tradicionais vestes por outras à semelhança dos camponeses peninsulares. A vestimenta masculina consistia em uma calça curta até os joelhos e chapéus; as mulheres vestiam uma simples túnica regularmente curta chamada “Anacu”, cingida por uma faixa chamada “Chumpi”. Cobriam seus ombros com uma prenda de abrigo chamada "Lliclla". Algumas vezes cobriam suas cabeças com una faixa dobrada em pregas que caía sobre as costas e a enfeitavam com tocados de flores. No entanto, os indígenas adaptaram estas prendas criando uma estética que seria posteriormente a marca identitária da pertença a uma classe social e a uma etnia.

Com a Conquista e seus sistemas social e religioso, eliminaram-se as hierarquias que ordenavam o mundo pré-hispânico; os trajes guerreiros, os trajes de sacerdotes e reis desapareceram, e todos os indígenas, sem importar sua origem, classe social ou sua

26 CARVALHO, 2010, p. 47. 27 Ibid. p. 39.

28 Consultar nota 2.

29 CARVALHO, 2010, p. 48.

30 Vilas e bairros urbanos governados por uma autoridade indígena aos quais não tinham acesso os espanhóis,

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ascendência imperial, eram vistos da mesma maneira pelos espanhóis, por isso todos tinham que vestir igual.

A maneira como os conquistadores vestiam-se era totalmente diferente da dos indígenas. A seda, e em menor grau o algodão, eram materiais de uso exclusivo da elite colonial; de lã e cânhamo e, dependendo da região, de algodão eram os materiais com que os indígenas teciam suas roupas.

Muitos caciques collas31 e incas (chamados pelos espanhóis de mandones de indios), seguindo as práticas do império Inca mantiveram seus bens, privilégios e posição, garantindo a mão de obra para a exploração dos recursos dos novos territórios e para o transporte destas riquezas até Lima, capital do vice-reinado espanhol do Peru.

A listagem seguinte mostra, em escala de importância descendente, as classes, ou categorias étnico-sociais, estabelecidas na sociedade colonial (e mantidas até 1952):

I) Classe dos Espanhóis (nascidos na Europa e chegados a terras americanas)

II) Classe dos Criollos (filhos de espanhóis ‘raça pura’ nascidos em terras americanas) III) Classe dos Cholos ou Mestiços (filhos de espanhóis com índias)

IV) Classe dos Índios

O vice-rei Toledo (1569-1581) implantou o tributo indígena. Os impostos a que os indígenas estavam sujeitos eram diferenciados segundo as possibilidades do grupo. Toledo também reorganizou o sistema da mita32. Esta legislação converteu-se na justificativa de inúmeros abusos arbitrários, até muito depois de instalada a República. A mita constituiu-se no instrumento essencial da exploração dos índios, junto às encomendas que não eram mais que a escravidão encoberta. J. de Mesa reporta:

Estaban sujetos a la mita los indígenas de 16 provincias, desde Cuzco hasta Potosí, correspondiendo a 10 grupos étnicos [...] Estos grupos debían sumar 4.500 Mitayos que trabajarían en las minas de Potosí durante 4 meses. Así, tres grupos anuales completaban los 13.000 mitayos que el Collasuyo entregaba anualmente al inca para diferentes trabajos33.

A exploração das ricas minas de prata do ‘cerro rico de Potosi’ obrigou a criação da ‘Real Audiência de Charcas’34 em 1559. Esta teve sua sede na cidade de La Plata, chamada

31 Cacique collas ou caciques dos senhorios andinos. 32 Conferir a referencia 11

33 MESA; GISBERT; GISBERT, 2007, p. 117.

34 Ibid. p. 126, 164, 225. A Audiencia y Cancillería Real de La Plata de los Charcas, conhecida simplesmente

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também Chuquisaca ou Charcas (hoje Sucre desde 1839). Esta organização determinou uma forte centralidade burocrática e administrativa circunscrita à região mineradora andina até os dias de hoje, marcando uma constante econômico-política que determinara a vida colonial e republicana timidamente alterada a partir da metade do século passado (muito importante para a compreensão dos processos político-sociais com que nos incumbimos neste trabalho).

As condições sociais determinadas pelo fato do poder conquistador e mantido no processo colonizador não mudaram essencialmente com o advento da independência e o estabelecimento da República, apesar das leis em favor dos índios ditadas (mas logo abolidas) por Simon Bolívar, primeiro Presidente da República de Bolívia.

1.3.1 Padroado Régio e Igreja

O padroado implicou que a Coroa35 tivesse um papel importante na construção do cristianismo colonial latino-americano. Os reis espanhóis moldaram a política eclesiástica a seus interesses, designando bispos, dioceses, vetando bulas e instrumentos papais, impondo condições às ordens religiosas e até podendo impedir seu estabelecimento.

Em fins do século 16, estabeleceu-se o Vicariato Real, segundo o qual o rei e seus representantes exerciam tarefas de vigários ou delegados pontificais sobre a Igreja nas colônias hispano-americanas. Isto foi possível pela debilidade do papado, o caráter absolutista dos monarcas e pelo fato de que os interesses do papado concentravam-se no combate à “heresia luterana”.

O Papa concedeu aos reis de Portugal e Espanha as terras descobertas com seus habitantes, junto com a incumbência da evangelização do povo nativo. Assim, os reis estavam obrigados a impulsionar a evangelização e a assegurar a remuneração do clero, a edificação de igrejas, catedrais, conventos e hospitais.

No caso da colônia espanhola, a aliança entre a Igreja e o Estado foi central para manter a coesão e homogeneidade de uma sociedade pluriétnica e pluricultural ao redor do sistema de valores católico-hispânicos. Por isso, a aplicação do que estabeleceu o Concílio de Trento nos territórios coloniais espanhóis foi o eixo central de uma política que procurou evitar a fragmentação dos interesses dos vassalos.

riquíssima mina de prata de Potosí. Desde a criação da Intendência de Chuquisaca, em 1782, o presidente da Real Audiência era também o governador intendente da mesma.

35 A este respeito conferir: DUSSEL, Enrique.Historia general de la Iglesia en America Latina: Introduccion

general a la historia de la Iglesia en America Latina. Salamanca: Sigueme/CEHILA, 1983. p. 198,245 a

259; DUSSEL, Enrique. Desintegracion de la cristandad colonial y republicana: Perspectiva

latinoamericana. Salamanca: Sigueme, 1978. p. 160,161; GONZALEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: a era dos reformadores até a era inconclusa. Tradução de Itamir Neves de Souza, Adiel

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Um elemento importante, e muitas vezes pouco destacado, é a definição de que os índios tinham alma e, portanto, eram suscetíveis de serem catequizados. Esse conceito implicou uma incorporação dos indígenas como subordinados servis ao sistema religioso e político colonial e não em seu extermínio, como aconteceu nas colônias britânicas.

1.3.2 Fazendas feudais

Ciente que nos estudos econômicos e sociais ainda se debatem a tipologia feudal ou capitalista da fazenda na época colonial ibérica, optamos pela tipificação que faz José Carlos Mariátegui no capítulo V, em sua obra Economía agrária y latifundio feudal36, em que categoriza o sistema de fazendas nos Andes centrais como um sistema feudal.

A conquista é um fato eminentemente militar com consequências políticas que formataram as futuras repúblicas. Sob os resíduos do anterior sistema, a empreitada militar e evangelizadora hispânica institui a encomenda, base de uma economia feudal. As realidades que evidenciam a sobrevivência do feudalismo até metades do século 20 são duas: o latifúndio e a servidão do camponês indígena.

O sistema de fazendas é derivado do sistema senhorial hispânico (decorrente do latifundi do século XI); o antecedente do sistema de fazendas nos Andes centrais, como em outros locais da América hispânica, está na encomienda estabelecida no século XVI, que teoricamente (ou juridicamente), foi implementada pela coroa espanhola para viabilizar a evangelização como a coleta de tributos que não outorgava direitos sobre a terra, mas sobre os índios. O ecomendero tinha a obrigação de recolher os impostos, proteger os índios e catequizá-los em troca de uma porcentagem dos tributos. O sistema de encomenda logo foi abolido pelos graves abusos, porém o sistema de serviço gratuito que dele derivara, perpetuou-se no sistema de fazenda e da servidão perpétua dos indígenas.

Assim, a encomenda, para os espanhóis em terras americanas (não para a legislação real), constituía-se em senhorios com indígenas perpetuamente vassalos, o que logo conferiu àqueles a fidalguia da aristocracia da terra.

As fazendas constituem-se em unidades econômicas autossuficientes que só dependem do comércio externo de artigos de luxo. Essas comunidades rurais estão sob a autoridade do amo que rege também como juiz e protetor de seus colonos. Pelo direito do usufruto de parcelas, os indígenas contraem obrigações com o patrão, como o serviço com suas próprias ferramentas e animais nas terras da fazenda (do patrão), geralmente por três dias semanais

36 MARIÁTEGUI José Carlos. 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana.

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ou uma semana de trabalho por uma de descanso sem salário (ou minimamente mínimo), ademais o serviço dos moços e moças e as mulheres nas residências do fazendeiro (na cidade ou na fazenda) a suas próprias custas.

Estas e outras onze obrigações estão descritas na obra de VAZQUEZ, Mario C.37, como também os diversos mecanismos legais que permitiram o estabelecimento da propriedade de extensos latifúndios (alguns com 100 mil hectares ou mais). Mesmo que a condição intrínseca da terra como bem, mercadoria (capitalista), muitas fazendas não são vendidas, porque representam não só a memória familiar, mas, acima de tudo, a unidade familiar ao redor deste bem imóvel que é fatualmente o elemento de sua superioridade social e a qualidade nobre, acima de considerações de segurança econômica.

1.4 Das guerrilhas independentistas até a República (1808-1825)

Com a desculpa da ocupação napoleônica da Espanha, em 1808, as oligarquias criollas gestaram movimentos armados focalizados que culminaram com a derrota dos exércitos espanhóis em Junín, em 1824, e a formação da República da Bolívia, em 1825. Assim, os interesses dos criollos enfrentavam as políticas de discriminação que, em matéria de economia, comércio e política, sofriam da parte da corte de Madri. A este movimento Ruber Carvalho denomina guerra civil, afirmando:

[...] en realidad, fue una guerra civil entre criollos, dado que tanto las tropas realistas como las patriotas estaban compuestas por soldados nacidos en el continente, y sólo los mandos eran peninsulares, aunque también muchas veces, esos mandos fueron ejercidos por oficiales nacidos en el continente y racialmente mestizos. Y entre los mandos realistas y patriotas, muchos dos oficiales habían sido parte del mismo ejército español en campañas contra la ocupación napoleónica38.

A exploração dos “inferiores”, que normatizava a ordem imperial inca e espanhola, prolonga-se nas ideias liberais da Revolução Francesa adotadas pelos oligarcas e pelos doutores criollos, filhos da “mãe Espanha” e gestores da independência hispano-americana. A rebelião contida dos índios sujeitos à mita, ao pongaje39 e a outras formas de exploração foi capitalizada pelos “libertadores revolucionários”.

Los revolucionarios no se sienten rebeldes, sino herederos de un poder caído, probablemente para siempre: no hay razón alguna para que marquen disidencias frente a ese

37 VAZQUEZ, Mario C. Hacienda, peonaje y servidumbre en los Andes peruanos. Lima: Editorial estudios

andinos. 1961 P. 66. Disponível em: <http://ufdc.ufl.edu/UF00087310/00001/1x>

38 CARVALHO, 2010, p. 71.

39 Pongeaje é outro tipo de tributo, aplicado aos chamados “pongos”. Os pongos deviam trabalhar sem

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patrimonio político-administrativo que ahora consideran suyo e al que entienden hacer servir para sus fines40.

Esta é a natureza dos patriotas criollos. Nestes sentimentos, interesses e mentalidade nacionalistas patrióticas criollas frustraram os ideais de uma nação americana com uma ordem social mais racional e justa, aspirados pelo libertador Simon Bolívar. E geraram repúblicas incapazes de organizar governos sobre bases democráticas, com sentido de equidade e justiça, pregadas durante as façanhas libertárias. Afirma o senso comum que, para que não se mude nada, é preciso haver mudanças. Ruber Carvalho, comentando este período, diz:

Es sólo cuando arriban los grandes ejércitos libertadores, las fuerzas colombianas, capitaneadas por Simón Bolívar, después de las batallas definitorias de Junín y Ayacucho que aparecen los nuevos líderes, casi todos prefabricados a última hora, al calor y color del oportunismo y el transfugio: los coroneles realistas se vuelven generales patriotas y los doctores de la Audiencia y asesores o escribanos de las gobernaciones y subdelegaciones fungen como rabiosos patriotas para cubrir su pasado inmediato. De ahí nace el patrioterismo vacío que campea a lo largo y ancho de la historia republicana41.

Na “nova ordem republicana”, a oligarquia negou todo direito de protagonismo aos heróis e verdadeiros gestores da independência que, como Bolívar, o grande “libertador de doze nações”, morreram no esquecimento como pobres vítimas de conspirações das oligarquias criollas. A “nova” ordem que, na prática, nada muda gerou grande frustração

popular. E essa insatisfação seria o elemento catalisador constante das várias revoltas indígenas tanto no oriente como no ocidente boliviano, como as aspirações por autonomia regionais de mestiços e criollos do oriente, que culminaram no atual processo de transformações e conflitos políticos e sociais em que vive o atual “Estado Plurinacional de Bolívia”.

1.5 A República mineiro - feudal (1825 -1952): mudança para não mudar

O protótipo dos primeiros 50 anos da República é o governo do general Mariano Melgarjo Valencia (1864-1871), 15º presidente da República, a quem Ruber Carvalho caracteriza da seguinte maneira:

[...] otro producto de cuartel altoperuano, como lo fueron buena parte de los presidentes de Bolivia, se desarrolló a medida y figura de la oligarquía de los doctores y mineros, terratenientes agrarios que disponían de la suerte del país, como parte de su hacienda personal. Ellos representaban la patria, administraban sus instituciones, y bajo el concepto

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feudal de su derecho colonial a la tierra, administraban la esclavitud de los indios. Se matiza la presidencia de Melgarejo como un acto de simple machismo cuartelero, en que lo anecdotario de lo frívolo ocupa la mayor parte de su administración,[...] Encumbrado por la oligarquía de entonces, que buscaba en los cuarteles a generales ignorantes con vocación de sargentos, de origen humilde para tenerlos como siervos, Melgarejo cumple a cabalidad el papel que le asignaron, como lo cumplieron a lo largo de la historia de ayer y de ahora muchísimos de sus iguales.[...] 42.

Como em toda América Latina, durante o século XIX, na Bolívia, o surgimento do liberalismo seria inspirado pelo Iluminismo europeu com uma grande confiança de que o progresso seria gerado pelo progresso material, porém seria o estado que teria que intervir para guardar a ordem política e social e intervir fortemente para gerar a proteção dos interesses econômicos nacionais garantindo o progresso43; este relativo contrassenso ao laissez-faire foi mais radicalizando porque o liberalismo se circunscrevia a certas elites com raízes no latifúndio feudal e no minério que construíram governos centralizados e despóticos, os quais preservavam o status colonial.

Nos séculos XIX e XX, o liberalismo político não consegue as benesses do progresso positivista. Antes, como já se disse, adapta o Estado ao serviço do feudalismo e aos interesses mineiros, gerando descontentamento nas classes populares.

Entretanto, nesta época é que começa a surgir uma tímida classe de profissionais e comerciantes não pertencentes às oligarquias tradicionais que poderíamos considerá-la como classe média urbana dependente da oligarquia mineradora feudal. Neste primeiro período da vida republicana, o papel da burguesia ou da classe media é insignificante (ou inexistente) na economia e a burocracia estatal e todos os interesses econômicos, sociais, culturais e políticos se articulavam ao redor das oligarquias minera e agrário-feudal.

1.6 A revolução nacional de 1952: mudança cooptada

O status social e político dos índios e dos mestiços despossuídos que se mantêm nos mesmos patamares da sociedade colonial, só será de fato, e com certa radicalidade, mudado a partir dos movimentos sociais que se iniciam após a guerra com o Paraguai (1931-1937). Esses movimentos culminaram na Revolução Nacionalista de 1952, na qual os setores mais despossuídos tiveram papéis protagonistas e decisórios. Para alguns, início do populismo, para outros, início da mobilização social. Mas, sob qualquer ótica, foi uma revolução que

42 CARVALHO, 2010, p. 124.

43 GONZÁLEZ, Ondina E.; GONZALEZ, Justo L. Cristianismo na América Latina: uma história. Tradução

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marcou profundas mudanças, eliminando a servidão feudal da realidade social e econômica nacional.

As classes camponesas índias ganharam status de cidadãs livres da República, ainda que a plena efetivação deste princípio legal tenha sido lentamente conquistada, atravancada pelo logro do paternalismo, persistindo os fortes preconceitos e segregação cultural e racial coloniais.

A partir da revolução, aplicou-se uma reforma agrária sob o princípio de que “a terra é daquele que trabalha nela”, eliminando os latifúndios criados pela colônia e pela república. Foram nacionalizados os recursos petroleiros e a grade mineradora, suporte do poder oligarca. Aplicou-se, também, uma reforma na educação que a tornou básica, livre, gratuita e obrigatória. Nasceu a consciência de que a Bolívia também compreende os dois terços de seu território, as terras baixas do leste, iniciando-se a conexão com estradas.

Contudo, as conquistas da Revolução Nacionalista de 52 foram neutralizadas pelas pressões exercidas pelos EUA que temiam a expansão da Revolução Cubana. Em 1964, um golpe militar instaurou duas décadas de regimes militares de cunho populista. Estes fortaleceram o capitalismo estatal e implantaram políticas econômicas simpáticas aos interesses americanos. Para contrariar a influência do falido intento da guerrilha de Che Guevara, foram reprimidos os movimentos sindicalistas de esquerda44, exacerbou-se o nacionalismo “patriótico”. Também foram manipuladas e corrompidas as organizações sindicais trabalhistas e camponesas (indígenas agrárias).

Neste período, em decorrência da queda do regime feudal mineiro, os mestiços e criollos pobres que obtiveram educação conseguiram conformar-se à classe média urbana que monopolizou a vida nacional e se serviu do Estado (burocracia e empresas). Será desta nova classe média burguesa que surgirão os intelectuais que gestarão a nascente indústria, o comércio e a nova burocracia estatal.

Muitos dos intelectuais orgânicos oriundos da classe média branca e a classe dominante receberam a influência dos ideais de igualdade e justiça na sociedade republicana através dos esforços educacionais dos missionários metodistas por terem sido educados no American Institute de La Paz e Cochabamba, ainda influenciados pelo ranço do ideário liberal de educação para o progresso.

44 Os primeiros núcleos sindicais se organizaram entre os mineiros das grandes minas, chegando a constituir o

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1.7 A democracia refém do criollaje (o “jeitinho boliviano”)

Pela pressão do governo de James Carter e dos setores populares e intelectuais de esquerda, restabeleceu-se a democracia em 1979.

A partidocracia de esquerda e de direita (de uma minoria branca) logo se descaracterizou na corrupção imoral do Estado prebendalista, herança dos regimes militares, gerando uma elite socioeconômica que se enriqueceu à sombra do governo e afirmando-se o adágio popular de que a “Bolívia é um país pobre de novos ricos”. O narcotráfico estabeleceu vínculos com os partidos no governo, sejam de direita ou de esquerda (sendo este um fornecedor de liquidez monetária na fortíssima economia informal).

A emergência da economia no oriente do país (os departamentos de Santa Cruz e Tarija) ameaçava ferir os interesses atrelados ao estado centralizador (herança da colônia mineira), que resistia às reivindicações e pedidos de autonomia administrativa e de gestão, exacerbando os regionalismos entre cambas e collas45 (oriente e ocidente).

O descrédito e a desilusão com a classe política tradicional e suas pouco honoráveis alianças fomentaram a militância crescente de diversas organizações populares e camponesas. Estas mostraram seu poder em protestos nas ruas, forçando (a custo de muitas vidas) o aparato do Estado a fazer concessões independentemente de sua legalidade. A falência da partidocracia foi marcada com a dramática fuga do país de Gonzalo Sánches de Lozada, no dia 17 de outubro de 2003.

1.8 Constatação e demanda

Os já descritos processos políticos e econômicos que vão desenvolver-se a partir da segunda metade do século XX derivarão nas dinâmicas socioculturais que atualmente vive a Bolívia.

1.8.1 Os movimentos sociais

Um novo fator sensibilíssimo para a governabilidade do Estado é o protagonismo dos “movimentos sociais”, como esquema mais direto e participativo de representação

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democrática, com papel mais importante para a mobilização social dos grupos previamente excluídos (a população originária46).

Os métodos de ação direta (ostentação de força), usada com grande efetividade, incluem marchas, bloqueios de estradas e greves de fome para impor uma pauta à “autoridade pública”. Assim, as pressões populares atropelam o Estado e os movimentos sociais reclamam para eles mesmos o nome de democracia popular, o que, para alguns, põe em risco o “Estado de direito”.

1.8.2 A Etnicidade

Hoje, em tempos de globalização, com o ressurgimento da etnicidade na sociedade boliviana, inicia-se uma busca de identidade nacional. Os descendentes dos povos indígenas constituíram-se numa nova classe ou categoria social “popular”, conscientes da nova realidade. Eles participam da política e possuem cargos administrativos, os quais, num passado não muito distante, pareciam impossíveis de se alcançar47.

La etnicidad ha reforzado las divisiones sociales en Bolivia desde los tiempos de la Colonia, pero sólo emergió como una fuerza política potente y conciente de sí misma en los últimos treinta años. El aumento de la conciencia étnica no es una característica exclusiva del altiplano, donde el pueblo aymara ha abierto el camino que dio fuerza política al indigenismo, sino también se ha enraizado en los pueblos de las tierras bajas de Bolivia. La defensa de la etnicidad se ha unido a la defensa de los recursos naturales y a la defensa de las condiciones de vida en un sentido más amplio. La conciencia étnica también se ha relacionado con la política de clases, produciendo una nueva amalgama, muy diferente a la tradición sindicalista anterior [...]48.

1.8.3 Uma nova demografia

Com a emancipação dos camponeses originários após a Revolução de 52, ganhando assim o direito cidadão da liberdade de transitar em todo o território nacional (antes negado pela sua condição de servos das fazendas-feudos), as cidades começaram a transformar-se pelo êxodo rural. Assim, Santa Cruz, que no início do século 20 era uma vila interiorana sem importância econômica e política na vida nacional, tornou-se um polo de desenvolvimento e

46 Para os nativos das terras andinas bolivianas, tornou-se pejorativo e politicamente incorreto o uso de

“índio, índios, indígena”, ainda que para os povos das terras baixas do oriente, não. Assim, quando tratarmos da conjuntura político-social-cultural atual, tentaremos usar o termo “originário”, que é mais aceito.

47 NINA AGUILAR, Eunice Dalia. Religião e Cultura: A Igreja Evangélica Metodista da Bolívia, suas

interações sócio-culturais e correspondentes reflexões em sua organização – Dissertação (Mestrado). 2010. São Bernardo do Campo – SP, Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. p. 24.

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uma das três cidades do chamado eixo troncal do país. O caso mais notável é o surgimento da cidade do El Alto, que no início do século 20 era área agrícola rústica da periferia da cidade de La Paz e hoje já conta com mais de um milhão de habitantes (a estimativa do censo para 2010 era de 1.184.942 habitantes).

O novo mapa demográfico reconfigura as forças do equilíbrio político e a governabilidade do país. Pela irrupção no mapa geopolítico nacional de novos setores que disputam espaço político em virtude de seu protagonismo econômico, assim, os interesses políticos e econômicos como as aspirações sociais cidadãs de departamentos como Santa Cruz confrontam-se com os interesses do Estado centralizado na cidade de La Paz.

Conforme as estatísticas publicadas pelo Instituto Nacional de Estatísticas da Bolívia, o censo de 2001 demonstrava que, dos 8.274.325 habitantes contabilizados no censo, 5.165.882 viviam na área urbana, e 3.108.443, na área rural. Em relação a 1992, a população da Bolívia havia aumentado em 1.471.036 habitantes na área urbana e 382.497 pessoas na área rural. Temos que relembrar que, no caso boliviano, camponês rural é quase sempre sinônimo de ser pertencente a uma etnia indígena e sempre subalterna, assim, estes dados se carregam de maior relevância política e cultural na hora de tentarmos uma rápida compreensão da atual realidade boliviana.

O censo de 1950 mostrava que a população rural (porém, indígena) representava 73,8% do total, e 26,2% era a população urbana. O censo de 2001 já apresenta um quadro oposto: 37,57% é população rural, e 62,43% é população urbana.

BOLÍVIA: POPULAÇÃO TOTAL POR ÁREA SEGUNDO OS CENSOS DE 1950, 1976, 1992 E 2001

CENSO TOTAL ÁREA URBANA ÁREA RURAL

1950 2.704.165 708.568 26,2% 1.995.597 73,8%

1976 4.613.486 1.925.840 2.687.646

1992 6.420.792 3.694.846 2.725.946

2001 8.274.325 5.165.882 62,43% 3.108.443 37,57%

Fonte: INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA DA BOLÍVIA (INE)

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encontrada nos chamados ‘departamentos del eje central’–os “estados do eixo central”, com a seguinte distribuição: 27% da população em Santa Cruz, 18%, em Cochabamba, e 27%, em La Paz. No restante do país, distribuíam-se os demais 28% da população. Dos 10,4 milhões de habitantes, estimava-se que 6,9 morariam em áreas urbanas e 3,5, nas áreas rurais49.

A Bolívia tem levado a efeito poucos censos nacionais, apenas dez em seus 188 anos de história. A leitura histórica dos censos permite-nos apreciar como determinadas tendências estão fortemente ligadas aos ciclos e fluxos da economia e a algumas iniciativas de planificação estatal. A Bolívia, nesse tempo, multiplicou por dez sua população, de 1,01 milhão a 10,4 milhões.

Em 1831, o Departamento de La Paz representava 34% da população do país, seguido por Cochabamba, que tinha 22% da população. Contrastando com Mojos, com 0,8% dos habitantes, e Tarija, com 1,8%.

O Departamento de La Paz converteu-se no mais povoado da colônia, já desde a segunda metade do século 18, consequentemente, no mais relevante econômica e politicamente. Ao longo de todo o período republicano, foi o Departamento com mais habitantes do país, desde 1825 até 2012. O censo de 2012 mostra que La Paz deixa de ser o primeiro de Bolívia, superado por Santa Cruz, por uma diferença insignificante, pouco mais de 34 mil habitantes, porém, expressa uma óbvia tendência demográfica. O índice de crescimento atual de Santa Cruz é do 37%, enquanto o de La Paz é de 17%, mais que o dobro. Estima-se que esta tendência também persista no futuro.

Deve-se destacar o caso de Santa Cruz. La Paz passou de 343 mil habitantes em 1831 a 2.741.000 em 2012, multiplicando seu tamanho oito vezes em 180 anos. Santa Cruz passou de 41 mil habitantes em 1831 a 2.776.000 em 2012, multiplicando sua população 68 vezes nesse mesmo período. Pode-se perceber que La Paz teve um crescimento regular no período de 1831 a 1900 e intenso entre 1900 e 1976. Santa Cruz manteve um crescimento moderado até 1950, todavia, destacadamente geométrico desde esse ano até 2012; em 1950, contava com 286 mil habitantes, percebendo-se um crescimento de dez vezes em 60 anos; neste mesmo período, La Paz cresceu somente três vezes.

Em 1831, as cidades de La Paz, Oruro, Potosi e Cochabanba, acima dos 2 mil metros de altitude, concentravam 92% dos habitantes do país. Em 2012, essa porcentagem cai para 63%;

49 Fonte: Proyecciones Poblacionales del Instituto Nacional de Estadística, Bolivia: Distribucion de la

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