UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
ALYANNE DE FREITAS CHACON
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM
ITINÉRAIRE D’UN VOYA
GE EN
ALLEMAGNE
ALYANNE DE FREITAS CHACON
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM
ITINÉRAIRE D’UN VOYAGE EN
ALLEMAGNE
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de doutor. Eixo temático: Estudos linguísticos do Texto.
Orientadora: Prof
a. Dr
a. Maria das Graças Soares Rodrigues
ALYANNE DE FREITAS CHACON
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA EM
ITINÉRAIRE D’UN VOYAGE EN
ALLEMAGNE
FOLHA DE APROVAÇÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de doutor. Eixo temático: Estudos linguísticos do Texto.
Data da defesa: 19 de junho de 2013
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profa. Dra. Maria das Graças Soares Rodrigues
–
UFRN
Orientadora
–
Presidente
___________________________________________
Prof. Dr. Luis Álvaro Sgadari Passeggi - UFRN
Examinador interno
___________________________________________
Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa - UFRN
Examinador interno
____________________________________________
Profa. Dra. Maria Elias Soares
–
UFC
Examinadora externa
______________________________________________
Prof. Dr. Acir Mário Karwoski
–
UFTM
AGRADECIMENTOS
Eu acredito em destino, assim como acredito em Deus. É por essa razão que eu
creio que nada acontece por acaso e que a história de nossas vidas foi traçada desde
sempre. Diante disso, eu sinto que a participação de Graça em minha qualificação
durante o mestrado foi decisiva, pois naquele momento foi criado um elo que nos uniu e
a tornou, portanto, minha orientadora durante o doutorado. Ela me fez escolher a
linguística e, assim, eu pude concorrer a um concurso que já mudou e que mudará ainda
mais minha vida dentro de poucos dias.
É bem possível que, não fosse Graça, eu não tivesse tido o apoio necessário para
concluir meu doutorado durante o pouco tempo que me foi ofertado. Mas, como tudo
está escrito, Deus encaminhou as coisas de tal modo que eu poderia concluir este sonho.
Agradeço a Deus, primeiramente, não apenas por esta conquista, mas por ter me
dado saúde e força de vontade suficientes para que eu pudesse lutar por todas as coisas
que quis.
Agradeço à minha orientadora pelos materiais emprestados e pelos maravilhosos
ensinamentos que me transmitiu, não apenas no âmbito acadêmico, mas em minha vida
como um todo. Ela me ensinou a não ter vergonha de lutar pelo que desejo. Obrigada
por lutar, juntamente comigo, pelo acontecimento desta defesa.
Minha família não poderia não ser citada. Sou muito grata pela ajuda que me
deram, pelo amor e carinho que sempre tiveram por mim e por estarem SEMPRE por
perto quando precisei. Amo vocês INCONDICIONALMENTE...
Meus amigos, vocês são extremamente IMPORTANTES para mim. Além da
gratidão que sinto por todos os desabafos e conselhos, não apenas durante esta etapa,
agradeço a Deus por ter colocado vocês em minha vida. Isso também não foi por acaso.
Agradeço a todos os professores que tive, em especial, aos que contribuíram
diretamente para minha formação enquanto profissional e, até mesmo, para minha
formação pessoal. A esses, parabenizo pelo dom de lecionar com uma pitada a mais de
dedicação e carinho.
Agradeço à UFRN, minha universidade querida, e ao PPgEL que
proporcionaram minha formação, desde a graduação.
Enfim, agradeço a cada uma das pessoas que contribuíram, de alguma forma,
para a conquista deste sonho tão desejado.
“Penso que, para narrar, é preciso, antes de tudo, construir um
RESUMO
A Responsabilidade Enunciativa em
Itinéraire d’un Voyage en Allemagne
Nossa pesquisa se baseia nos estudos da Análise Textual dos Discursos, proposta pelo
linguista Jean-Michel Adam. Nosso foco principal está voltado para o fenômeno da
Responsabilidade Enunciativa (doravante RE). Além das categorias de análise para se
estudar a RE, conforme Adam (2008, 2010, 2011), também discutimos os pressupostos
de outros estudiosos no assunto, como Ducrot (1984), os teóricos da Teoria
Escandinava da Polifonia Linguística, (2004), Guentchéva (1994), Desclés (2009) e
Authier-Revuz (1998, 2004). Utilizamos a abordagem proposta por Rabatel (2004,
2008, 2009, 2010), sobretudo, no que concerne às noções de locutor/enunciador, ponto
de vista ou vozes que podem ser encontradas em um texto. Para tanto, analisamos
algumas
cartas
de
um
relato
de
viagem,
Itinéraire d’un Voyage
en
Allemagne
(doravante
Itinéraire
), escrito em 1856 por Nísia Floresta, uma
norte-rio-grandense que residiu na França e é considerada uma das primeiras feministas do Brasil.
O relato de viagem é um gênero diferenciado para se analisar a RE, sobretudo
o
Itinéraire
, pois nele também podemos encontrar características de outros gêneros,
quais sejam: epistolar e autobiográfico. Discutimos como a RE se manifesta no
Itinéraire
, obra que apresenta esses gêneros, e investigamos se o escritor autobiográfico
assume constantemente/sempre a RE de sua fala. Assim, percorremos, primeiramente,
algumas abordagens sobre gêneros de discurso, utilizando-nos, principalmente, dos
pressupostos de Bakhtin (1992, 2003), Bordet (2011), Adam (2011) e Marcuschi
(2008). Posteriormente, apresentamos algumas características que envolvem os gêneros
citados: relato de viagem, epistolar e autobiografia. Para a análise dos dados, seguimos a
abordagem qualitativa de natureza interpretativista. Nossa pesquisa comprovou que o
Itinéraire
apresenta muitas marcas de assunção da RE, mas que, apesar de Nísia
Floresta ser locutora e enunciadora, é possível encontrar marcas de não assunção da RE,
ou seja, outros PDV.
RÉSUMÉ
La Prise en Charge Énonciative en
Itinéraire d’un Voyage en
Allemagne
Notre recherche est basée sur les études de l'analyse textuelle des discours, proposé par
le linguiste Jean-Michel Adam. Notre objectif principal vise le phénomène de la prise en
charge énonciative (désormais PEC). En plus des catégories d'analyse pour étudier la
PEC comme celles proposées par Adam (2008, 2010, 2011), nous avons étudié
également d’autres chercheurs de la Prise en Charge Énonciative tels que Ducrot
(1984), les théoriciens de la Théorie Scandinave de la Polyphonie Linguistique (2004),
Guentchéva (1994), Desclés (2009) et Authier-Revuz (1998, 2004). Nous avons utilisé
les hypothèses présentées par Rabatel (2004, 2008, 2009, 2010), surtout, en ce qui
concerne les notions de locuteur/énonciateur, point de vue ou des voix qui peuvent être
trouvées dans un texte. Pour ce faire, nous avons analysé un récit de voyage :
Itinéraire
d’un Voyage en
Allemagne
(désormais
Itinéraire
), écrit au XIX
esiècle par Nísia
Floresta, une norte-rio-grandense qui a habité en France et est considerée une des
premières féministes du Brésil. Le récit de voyage est un genre distingué pour analyser
l
a PEC, surtout l’
Itinéraire
, car nous pouvons y trouver des caractéristiques
d’autres
genres
: l’épistolaire et l’autobiographi
e. Nous avons discuté la façon dont la PEC se
manifeste dans l’
Itinéraire
, qui présente ces genres, et étudié
si l’écrivain
autobiographique prend constamment/toujours la PEC de son discours. Par conséquent,
nous avons visité, premièrement, quelques approches sur les genres des discours, en
utilisant, principalement, les présupposés de Bakhtin (1992, 2003), Bordet (2011),
Adam (2011) et Marcuschi (2008). Ensuite, nous avons présenté certaines
caractéristiques qui impliquent les genres cités : récit de voyage, épistolaire et
autobiographie. En ce qui concerne l’analyse des données, nous avons utilisé une
approche qualitative et interpretativiste. Notre recherche a attesté que l’
Itinéraire
présente plusieurs signes de prise en charge énonciative, mais, malgré Nísia Floresta
être locuteur et énonciateur, c’est aussi possible de trouver d’autres PDV.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
D.C.
–
Divulgação Científica
DI
–
Discurso Indireto
DIL
–
Discurso Indireto Livre
E
–
Enunciador
E1
–
Enunciador primeiro ou primário
e2
–
Enunciador segundo
elos
–
elos enunciativos
L
–
Locutor
L1
–
Locutor primeiro
LOC
–
Locutor enquanto construtor
MED
–
Mediativo
oc.
–
ocorrência(s)
quase-RE
–
quase Responsabilidade Enunciativa
ScaPoLine
–
Teoria Escandinava da Polifonia Linguística
s-d
–
ser discursivo
PDV
–
Ponto de Vista
1RE – Responsabilidade Enunciativa
1
LISTA DE QUADROS SINÓTICOS
Quadro sinótico da análise da carta I...131
Quadro sinótico da análise da carta II...140
Quadro sinótico da análise da carta III...145
Quadro sinótico da análise da carta IV...150
Quadro sinótico da análise da carta V...156
Quadro sinótico da análise da carta VI...159
Quadro sinótico da análise da carta VII...161
Quadro sinótico da análise da carta VIII...163
SUMÁRIO
1.
Introdução ... 11
2.
Gêneros textuais/discursivos ... 17
2.1.
A noção de gênero ... 17
2.2.
A noção de gênero à luz de Bakhtin ... 18
2.3.
A noção de gênero segundo Adam ... 20
2.3.1. Os gêneros e os textos ... 22
2.4.
A noção de gênero para Marcuschi ... 24
2.5.
Intergenericidade e genericidade ... 28
2.6.
Os gêneros consoante Bordet e outros estudiosos ... 32
2.7.
Relato/Narrativa de viagem ... 35
2.7.1. O papel do Homo narrans... 36
2.7.2. A estrutura narrativa laboviana ... 38
2.7.3. Narrativa e sequência narrativa ... 40
2.7.4. Narrativa, Narratividade, Gêneros narrativos ... 40
2.7.5. Os modos narrativos: contar ou mostrar ... 42
2.8.
Interação epistolar... 44
2.8.1. Estrutura composicional da carta ... 45
2.8.2. Interação entre locutor e interlocutor ... 48
2.8.3. Carta literária ... 53
2.9.
Gênero autobiografia ... 54
2.9.1. Origem da autobiografia ... 54
2.9.2. Autobiografia: definição ... 55
2.9.3. Veracidade no gênero autobiográfico ... 56
2.9.4. Marcas de primeira pessoa no gênero autobiográfico ... 57
3.
A Responsabilidade Enunciativa ... 60
3.1.
Enunciado e Enunciação ... 60
3.2.
Responsabilidade Enunciativa e a noção de Polifonia e Dialogismo ... 61
3.3.
As diferentes noções de Locutor e Enunciador ... 69
3.4.
Os tipos de ponto de vista ... 82
3.4.1. Os tipos de ponto de vista segundo Rabatel ... 82
3.4.2. Os pontos de vista segundo a Teoria Escandinava da Polifonia Linguística ... 86
3.5.
Marcas de não assunção da Responsabilidade Enunciativa ... 87
3.5.1. A noção de modalidade ... 87
3.5.2. Modalização Autonímica e as não-coincidências do dizer ... 89
3.5.3. A noção de mediativo ... 92
3.6.
Categorias para analisar a Responsabilidade Enunciativa ... 101
3.6.1.1. As instâncias do discurso à luz da ótica benvenistiana ... 103
3.6.1.2. Aparelho formal da enunciação ... 104
3.6.1.3. A noção de dêixis segundo Bühler ... 106
4.
Aspectos metodológicos da pesquisa ... 116
4.1.
Contextualizando a pesquisa ... 116
4.2.
A pesquisa qualitativa ... 116
4.3.
Questões da pesquisa ... 117
4.4.
Objetivos da pesquisa... 117
4.4.1. Objetivo geral ... 118
4.4.2. Objetivos específicos... 118
4.5.
Apresentação do
corpus
da pesquisa ... 118
4.5.1. Itinéraire d’un Voyage en Allemagne... 118
4.6.
CORPUS
: fonte e procedimentos de coleta ... 120
4.7.
Procedimentos de análise ... 121
5.
Análise de dados ... 124
5.1.
A Responsabilidade Enunciativa à luz de Rabatel ... 124
5.1.1. Itinéraire d’un Voyage en Allemagne: um único ponto de vista? ... 124
5.1.2. Itinéraire d’un Voyage en Allemagne: ponto de vista “representado”, “contado” ou “afirmado”? ... 128
5.1.3. A Responsabilidade Enunciativa sob a perspectiva de Adam ... 130
5.1.3.1. Índices de pessoa e os dêiticos espaciais e temporais em Itinéraire d’un Voyage en Allemagne ... 130
5.2.
Discussão acerca da análise ... 170
6.
Considerações finais ... 172
11
1.
Introdução
Nossa pesquisa se baseia nos estudos da Análise Textual dos Discursos, proposta
pelo linguista Jean-Michel Adam. Nosso foco principal está voltado para o fenômeno da
Responsabilidade Enunciativa (doravante RE). Dentro dessa temática, Adam nos
apresenta oito categorias de análise que podem ser utilizadas pelo
estudante-pesquisador. Ao apresentar essas categorias, o teórico supracitado também se baseia nos
pressupostos de outros autores, como Authier-Revuz, para tratar dos fenômenos de
modalização autonímica, e Guentchéva, para tratar da questão do quadro mediativo.
Por essa razão, além de Adam (2008, 2010, 2011), abordamos também os
pressupostos de outros estudiosos. Citaremos apenas alguns, como Ducrot (1984),
Guentchéva (1994), Rabatel (2004, 2008, 2009, 2010), os teóricos da Teoria
Escandinava da Polifonia Linguística (2004), Desclés (2009), e Authier-Revuz (1998,
2004).
Dentro da temática da RE, há várias perspectivas que podem ser enfocadas. Um
dos aspectos que nos chama a atenção dentro da teoria da RE é a noção de Ponto de
Vista (doravante PDV), que parece ter grande relevância para um tipo de análise tal qual
nos propomos fazer aqui. Temos como objetivo, investigar como se materializa a RE
em um relato de viagem:
Itinéraire d’un Voyage en Allemagne
2.
Nossa escolha em estudar a obra supracitada se deu pelo fato de buscarmos
analisar a RE em um
corpus
literário, pois em nosso grupo de pesquisa sobre a Análise
Textual dos Discursos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a maior parte
dos estudos empreendidos não se dedica à análise da RE em
corpora
literários. Eis um
dos motivos que nos conduziu a empreender esta pesquisa.
Além disso, nossa análise contribuirá para futuros pesquisadores que tenham
interesse em abordar a RE, tendo em vista que trouxemos uma nova perspectiva para o
estudo dessa temática, pois expusemos nossa interpretação, nosso olhar, no momento da
análise. Consideramos que o fato de esse relato de viagem ter sido escrito por Nísia
Floresta, uma escritora norte-rio-grandense, também trará contribuições no âmbito da
literatura potiguar para pesquisadores que se interessem pela obra da autora citada,
considerando que poucos foram os estudos realizados sobre a obra de Nísia Floresta.
12
O
Itinéraire
nos parece de grande relevância para nossa pesquisa pelo fato de
encontrarmos nele características de gêneros que pode(ria)m contribuir para a assunção
da RE, quais sejam: relato de viagem, epistolar e autobiografia. Apesar das poucas
pesquisas realizadas acerca da obra de Nísia Floresta, Duarte (1995) empreendeu um
grande estudo sobre a vida e a obra de Nísia.
Nesse estudo, Duarte atenta para o fato de que, apesar de o
Itinéraire
ser um
relato de viagem, ele apresenta características de outros gêneros:
Esta oscilação entre “diário íntimo”, “diário de viagem” e mesmo “carta”
vem caracterizar a narrativa desta escritora que parece não tratar um tema objetivamente, sem se colocar no centro da questão. Em praticamente toda sua obra, os sentimentos e pensamentos mais íntimos são divulgados, pois a autora não hesita em apresentar dados autobiográficos e revelar seus pontos de vista em letra impressa. Esta subjetividade poderosa também vai estar presente neste texto, pontuando-o com reflexões, opiniões e, principalmente, referências a sua vida particular. (DUARTE, 1995, p. 289).
Assim, vemos que Duarte também observou que há uma confluência de gêneros
no
Itinéraire
, que apresenta características até mesmo de um diário íntimo.
Nísia Floresta ficou conhecida como uma das primeiras feministas do Brasil e, a
partir da leitura do
Itinéraire
, verificamos que, realmente, ela foi uma mulher que esteve
um passo à frente da maioria das mulheres da sua época e, por que não dizer que até
mesmo de muitos homens, pois, além de ser uma brasileira em terras estrangeiras,
inovou dinamizando a relação entre esses gêneros em seu relato.
Em nossa pesquisa de mestrado, realizamos um estudo que explora essa questão
dos gêneros que podem ser verificados no
Itinéraire
3. Como o nosso propósito é fazer
uma análise da RE, não entramos no mérito, neste estudo, de comprovar através de
teorias, se o
Itinéraire
apresenta, de fato, características dos três gêneros citados.
Destarte, nossa pesquisa se caracteriza pela escolha de se trabalhar uma teoria
linguística em um
corpus
literário. Os teóricos da Teoria Escandinava da Polifonia
Linguística consideram importante essa junção da linguística e da literatura.
De um lado, os literários fornecem frequentemente, para a boa surpresa dos linguistas, numerosos exemplos provenientes de interpretações bem sutis que, para os linguistas, representam novos fatos. Do outro lado, os linguistas revelam aos literatos a importância sistemática que têm os fatos linguísticos, ajudando-os assim a descobrir, às vezes, interpretações e leituras ainda mais ricas. (NØLKE et al., 2004, p. 22).4
3 Vide referências.
N.B.: Salvo menção contrária, todas as traduções são de nossa autoria. 4
D’une part, les littéraires fournissent souvent à la bonne surprise des linguistes de nombreux exemples
13
Portanto, enfatizamos a importância de se unir Linguística e Literatura, pois
literatos e linguistas podem se ajudar, cada um com suas especialidades, colaborando
para uma melhor interpretação/análise de textos.
Segundo Rabatel, (2008, p. 30), que fez análises da RE em textos literários,
“
multiplicar os centros de perspectiva, mostrar seu papel na construção dos percursos
interpretativos é enriquecer as vias de acesso aos textos
”
. O autor citado acredita que a
análise enunciativa das narrativas, baseada na abordagem enunciativa/referencial dos
diferentes PDV, permite ao leitor penetrar
“
o mais próximo das apostas dramáticas, dos
conflitos éticos e das belezas estéticas da obra
”
, contribuindo, desse modo, para unir as
perspectivas que podem ser, tanto a dos diferentes personagens como a do narrador, e
ficando, assim, o mais próximo das fontes enunciativas e das apostas que resultam
dessas maneiras de “sentir, falar, agir ou contar”.
A respeito das relações entre pesquisas linguísticas e literárias, Adam e
Heidmann (2009, p. 8) reconhecem que essa dinâmica de pesquisa é confrontada por
algumas dificuldades, pois, de um lado, os trabalhos linguísticos, cada vez mais técnicos
e especializados, privilegiam voluntariamente mais os
corpora
orais que os escritos,
enquanto que alguns professores de literatura ignoram cada vez mais a língua e a
questão
da linguagem em proveito do amplo e vago domínio dos “estudos culturais”.
Para dizer de outro modo, o “e” que une “linguística e literatura” exprime,
muito raramente, o contínuo de um pensamento da linguagem que foi o de Wilhelm von Humboldt, de Roman Jakobson ou do Círculo de Bakhtin. Esse pensamento do contínuo não se encontra mais hoje, a não ser nos trabalhos de
Henri Meschonnic e de Harald Weinrich. Esse “e” tornou-se, de fato, a linha de uma descontinuidade acentuada por uma lógica institucional que divide os saberes e os fixa nas disciplinas autônomas, preocupadas – para não dizer enciumadas – com o traçado de suas fronteiras. Como deplorava Jean-Louis
Chiss, num colóquio interdisciplinar consagrado às relações entre “literatura e ciências humanas”, “Apesar das tentativas de ‘articulação’, da vontade ‘interdisciplinar’ [...], não se chega a pensar e a ensinar a relação da língua (das línguas) com a literatura (as literaturas) numa teoria da linguagem”
(Chiss, 2001, p. 149). Essa pesquisa de um pensamento do contínuo da linguagem passa, em nossa opinião, pelo reconhecimento da natureza discursiva do fato literário e, mais amplamente, da linguagem humana em geral. Pensamos, como Henri Meschonnic (1999, p. 222) que a literatura
“faz-se na ordem do discurso e requer conceitos do discurso”. A extensão do
campo da análise de discurso aos textos literários exige competências cruzadas que convidam o linguista a deixar a estreiteza de seus corpora e o comparatista a situar suas análises interlinguísticas e interculturais o mais próximo da língua de cada texto. (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 14-5).
D’autre part, les linguistes révèlent aux littéraires l’importance systématique qu’ont les faits linguistiques,
14
Desse modo, notamos que, de acordo com os autores citados, o trabalho que une
literatura e linguística requer por parte de quem se propõe a fazê-lo diferentes
competências, tendo em vista que ele terá que fazer sua análise não apenas no nível da
língua ou da fala, mas trabalhando conjuntamente com a língua e a fala.
Assim, diante da problemática que envolve a
“
união
”
linguística e literária, e a
partir das leituras empreendidas sobre a temática da Responsabilidade Enunciativa,
visando a uma análise em nosso
corpus
, surgiram as seguintes questões de pesquisa:
i.
Como se materializa a assunção da Responsabilidade Enunciativa em
Itinéraire
d’un Voyage en Allemagne
?
ii.
Uma obra que apresenta os gêneros relato de viagem, epistolar e autobiográfico
contribuiriam para uma maior assunção da Responsabilidade Enunciativa?
iii.
Nos gêneros autobiográficos que, em geral, tratam da subjetividade do sujeito, é
possível encontrar apenas um PDV, ou seja, o escritor autobiográfico assume
constantemente/sempre a Reponsabilidade Enunciativa do que fala/escreve?
Logo, haja vista os questionamentos apontados, além do nosso objetivo geral,
que é analisar como se manifesta a Responsabilidade Enunciativa (RE) em
Itinéraire
d’un Voyage en Allemagne
, buscamos responder aos seguintes objetivos específicos:
(i)
Investigar, identificar e descrever, se há a presença de mais de um PDV
(mais de uma voz) em
Itinéraire d’un Voyage en Allemagne
;
(ii)
A partir dos pressupostos rabatelianos, verificar, identificar e explicar em
qual/quais tipo(s) de PDV (representados, contados ou afirmados)
nosso
corpus
está inserido;
(iii)
Descrever e interpretar como as categorias de índices de pessoas, de
dêiticos espaciais e temporais, propostas por Adam, manifestam-se em
nosso
corpus
.
15
Após essa discussão, trazemos alguns conceitos que envolvem os gêneros presentes em
nosso
corpus
: relato de viagem, epistolar e autobiográfico.
O terceiro capítulo traz uma exposição acerca dos conceitos que envolvem a RE.
Abordamos as concepções de locutor/enunciador, os pressupostos que marcam as
definições de dialogismo e polifonia, pontos de vista, pluralidade de vozes, tipos de
ponto de vista e as marcas que denotam a (não) assunção da Responsabilidade
Enunciativa.
16
GÊNEROS
17
2.
Gêneros textuais/discursivos
2.1.
A noção de gênero
A partir das leituras empreendidas ao longo de nossa pesquisa, pudemos
observar que a preocupação com o gênero não é recente. Estudos apontam que desde a
antiguidade greco-latina é possível notar uma preocupação sobre essa temática.
Segundo Bordet (2011, p. 53), a questão do gênero foi posta, a princípio, como
ligada ao folclore e à transmissão de uma narrativa codificada. O gênero está associado,
ao mesmo tempo, à norma de redação e à classificação das narrativas. Assim, Bordet
nos traz a definição de gênero para Malinowski (1968), citado por Swales (1990), que
diz que o gênero é definido “não pela forma d
a narração, mas pelo modo como a
narração é recebida pela comunidade”.
Após passar pela etnografia e pelo folclore, o gênero passou pela caracterização
literária e pelo respeito da norma estética. Até o século XIX, as diferentes formas da
realização literária obedeceram a normas precisas que permitiram sua inserção em um
gênero reconhecido.
Assim, abordamos algumas perspectivas teóricas para discutir a questão dos
gêneros. Para tanto, utilizamos os pressupostos de Todorov (1980), Bakhtin (2000),
Marcuschi (2008), Adam e Heidmann (2010), Adam (2011), Bordet (2011), entre
outros.
Os pressupostos teóricos adotados por diferentes autores que se dedicam ao
estudo dos gêneros são variados, logo, podemos notar algumas divergências
terminológicas que dependerão do autor e do quadro teórico adotado.
Alguns autores, como Bakhtin, adotam a expressão gêneros do discurso, outros
se referem a gêneros textuais, como Marcuschi, ou gêneros de texto, como Bronckart.
No entanto, ressaltamos que utilizamos, indistintamente, as expressões gêneros de
discurso e gênero textual, tendo em vista que se trata de uma flutuação terminológica e
nosso objetivo não é discutir essas diferentes nomenclaturas. Portanto, enfatizamos que,
ao fazermos referência a esses termos, utilizamos o adotado pelo teórico em discussão.
18
2.2.
A noção de gênero à luz de Bakhtin
A partir dos estudos realizados sobre o Círculo de Bakhtin, a noção de gênero foi
sendo estudada e desenvolvida. Muitos estudiosos se basearam nos pressupostos
bakhtinianos para desenvolver a temática dos gêneros.
Segundo Bakhtin (2000, p. 279),
“
a utilização da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou
doutra esfera da atividade humana
”
. Ele também afirma que um enunciado
“
considerado
isoladamente é individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus
tipos
relativamente estáveis
de enunciados
”
, sendo isso o que ele denomina
“
gêneros do
discurso
”
.
Para o teórico citado (2000, p. 282)
“
o estudo da natureza do enunciado e da
diversidade dos gêneros de enunciados nas diferentes esferas da atividade humana tem
importância capital para todas as áreas da linguística e da filologia.
”
Bakhtin acredita
que:
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Cumpre salientar de um modo mais especial a
heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos), [...]. (2000, p. 279).
Bakhtin (2000, p. 280) acredita que é possível pensar que a diversidade dos
gêneros do discurso é tão imensa que não seria possível haver um
“
terreno comum
” para
estudá-lo e se pergunta como faria para colocar no mesmo terreno de estudo fenômenos
tão diferentes como a réplica cotidiana, que pode ser reduzida a uma única palavra, e o
romance, composto por vários tomos.
Ele afirma que os gêneros mais estudados foram os literários, sempre no âmbito
artístico-literário de sua especificidade. Não levavam em consideração os tipos
particulares de enunciados que se diferenciavam uns dos outros, o que eles têm em
comum é a natureza verbal, ou seja, linguística.
Não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado. Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo). (BAKHTIN, 2000, p. 281).
19
secundários do discurso, segundo Bakhtin (2000, p. 281), estão o romance, o teatro,
enquanto texto, e o discurso científico e ideológico, entre outros, enquanto discurso
5.
Eles aparecem em
“
circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e
relativamente mais evoluída
”
(BAKHTIN, 2000, p. 281). Já os gêneros primários, ao se
tornarem componentes dos gêneros secundários, ainda de acordo com Bakhtin,
“
transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: eles perdem sua
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios
”
.
Estes são caracterizados por tipos de enunciados caracterizados pela espontaneidade no
momento de produção.
É importante fazer essa distinção entre gêneros primários e secundários, de
acordo com Bakhtin, uma vez que a natureza do enunciado deve ser elucidada e
definida por uma análise de ambos os gêneros,
“
pois somente com essa condição a
análise se adequaria à natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeria seus
aspectos essenciais
”
. O autor citado também afirma que o estilo está estritamente
relacionado ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do
discurso.
Consoante Bakhtin (2000, p. 283), o enunciado reflete a individualidade de
quem fala/escreve, seja ele oral, escrito, primário ou secundário.
“Mas nem todos os
gêneros são igualmente aptos para refletir a individualidade na língua do enunciado
”
, o
que quer dizer que
“
nem todos são propícios ao estilo individual
”
. O estudioso afirma
que os gêneros mais propícios a exprimir esse estilo individual são os literários, pois
neles
“
o estilo individual faz parte do empreendimento enunciativo enquanto tal e
constitui uma de suas linhas diretrizes
”
.
As condições menos favoráveis para refletir a individualidade na língua são oferecidas pelos gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, tais como a formulação do documento oficial, da ordem militar, da nota de serviço, etc. Nesses gêneros só podem refletir-se os aspectos superficiais, quase biológicos, da individualidade (e principalmente na realização oral de enunciados pertencentes a esse tipo padronizado). Na maioria dos gêneros do discurso (com exceção dos gêneros artístico-literários), o estilo individual não entra na intenção do enunciado, [...]. A variedade dos gêneros do discurso pode revelar a variedade dos estratos e dos aspectos da personalidade individual, e o estilo individual pode relacionar-se de diferentes maneiras com a língua comum. (BAKHTIN, 2000, p. 283).
A definição de um estilo em geral e de um estilo individual em particular requer
um estudo aprofundado de natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do
20
discurso. Além disso, Bakhtin (2000, p. 284) afirma que uma dada função, seja ela
científica, técnica, ideológica, oficial ou cotidiana, e dadas condições, específicas para
cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado
tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e
estilístico. Assim, vê-se que, para Bakhtin, enunciado e gênero são o mesmo objeto.
Quando há estilo, há gênero. Quando passamos o estilo de um gênero para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero. (BAKHTIN, 2000, p. 286).
Para Bakhtin (2000, p. 293), quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a
composição, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicação verbal,
características estruturais que lhes são comuns, e, acima de tudo, fronteiras claramente
delimitadas.
Destarte, de acordo com as considerações do autor supracitado, os gêneros do
discurso se constituem de três elementos básicos: o conteúdo temático, o estilo e a
construção composicional, que se fundam no todo de um enunciado e todos eles são
marcados pela especificidade de uma esfera da comunicação. Os gêneros discursivos, de
acordo com a visão bakhtiniana, são formas distintas de enunciados que refletem a
variedade da língua e manifestam o estilo próprio de cada indivíduo.
2.3.
A noção de gênero segundo Adam
Adam (2011) também escreve a respeito dos gêneros discursivos, que ele
aborda, também, a partir dos pressupostos todorovianos. Adam (2011, p. 13) apresenta
uma consideração feita por Todorov (1980) que declara que os gêneros literários
representam apenas uma parte do “sistema de gêneros” de uma sociedade e que a
questão dos gêneros não depende exclusivamente da poética literária:
Cada tipo de discurso qualificado habitualmente como literário tem
“parentes” não literários que lhe são mais próximos que qualquer outro tipo de discurso “literário”; [...] Assim, a oposição entre literatura e não-literatura cede lugar a uma tipologia dos discursos.
21
“departamento de literatura” (francesa, inglesa ou russa). (TODOROV, p. 25).6
Adam (2011, p. 14) fala que, assim como Todorov, o número de estudiosos que
não limitam a noção de gênero somente à literatura é cada vez maior. Isso se dá pelo
fato de que os gêneros literários “não são nada além de uma escolha entre as
possibilidades do discurso, tornado convencional por uma
sociedade.” (TODOROV,
1980
, p. 23). As “possibilidades do discurso”, ao que
fala Todorov, definem-se em meio
a diferentes “sistemas de gêneros” que os grupos sociais elaboram durante sua evolução
histórica, feita de contatos e de empréstimos com e para ou
tros grupos sociais: “A
escolha operada por uma sociedade entre todas as codificações possíveis do discurso
determina o que se chamará seu sistema de gêneros”
. (TODOROV, 1980, p. 23).
A partir da citada fala de Todorov, Adam conclui que os gêneros se definem por
contrastes em meio a um sistema de gêneros, eles só se compreendem no interior de um
conjunto de semelhanças e diferenças entre gêneros e sub-gêneros definidos por um
grupo social em um dado momento de sua história.
À diversidade sincrônica das diferentes práticas sócio discursivas humanas, acrescenta-se, portanto, uma diversidade diacrônica. Os sistemas de gêneros evoluem e os gêneros desaparecem com as formações sócio discursivas e as práticas às quais eles estavam associados. (ADAM, 2011, p. 14).7
Adam (2011, p. 15) admite preferir o termo “gêneros do discurso” ao de
“gêneros de textos”, e explica que sua escolha por esse conceito vem de suas primeiras
leituras da tradução francesa da obra de Bakhtin
Esthétique de la création verbale
. Para
ele, a tese de Bakhtin é essencial para a teoria discursiva dos gêneros, pois ela une os
domínios classicamente separados dos estudos literários e linguísticos através do que ele
nomeia as “esferas” sociais de uso da fala.
6Chaque type de discours qualifié habituellement de littéraire a des « parents » non littéraires qui lui sont
plus proches que tout autre type de discours « littéraire ». [...] Ainsi l’opposition entre littérature et non -littérature cède la place à une typologie des discours.
[...] À la place de la seule littérature apparaissent maintenant de nombreux types de discours qui méritent au même titre notre attention. Si le choix de notre objet de connaissance n’est pas dicté par de pures raisons idéologiques (qu’il faudrait alors expliciter), nous n’avons plus le droit de nous occuper des seules
sous-espèces littéraires, même si notre lieu de travail s’appelle « département de littérature » (française, anglaise ou russe).
7 À la diversité synchronique des différentes pratiques socio-discursives humaines s’ajoute donc une
22
2.3.1.
Os gêneros e os textos
Para Adam (2011, p. 20), o texto
“
é uma unidade de interação humana de grau
superior
” e
é, também,
“
o traço linguageiro de uma interação social, a materialização
semiótica de uma ação sócio-histórica de fala
”
. Sobre os gêneros, afirma que são
“
matrizes sócio-comunicativas e sócio-históricas que os grupos sociais se dão para
organizar as formas da língua em discurso
”
. A narração, por exemplo, é uma das formas
textuais que pode compreender algumas dessas realizações discursivas, segundo Adam.
O teórico acredita que, se há texto, ou seja, se alguém reconhece que uma
sequência de enunciados forma uma unidade de comunicação, ou seja, um evento
comunicativo,
há “efeito de genericidade”. Esse efeito de genericidade significa que há
uma inscrição dessa sequência de enunciados em uma classe de discurso. Isso significa
que, para Adam (2011, p. 20),
“
não há texto sem gênero
e é pelo sistema de gênero de
uma dada formação sócio-histórica que a textualidade se articula com a discursividade
”
.
Nesse sentido, ele nos traz uma citação de Rastier (1989, p. 40), para quem
Um discurso se articula em diversos gêneros, que correspondem igualmente a práticas sociais diferenciadas no interior de um mesmo campo. Por essa razão, um gênero é o que une um texto a um discurso. Uma tipologia dos gêneros deve dar conta da incidência das práticas sociais sobre as codificações linguísticas.8
Podemos notar que, além de considerar que um discurso se articula em diversos
gêneros, Rastier considera que um gênero é o que une um texto a um discurso.
Adam esclarec
e que a linguística textual alemã distingue classicamente os “tipos de
texto” e os “gêneros de textos” e que essa separação “
deixa de lado
”
o conceito de
“gêneros literários”, mas Adam não faz essa separação entre gêneros literários e gêneros
do discurso. O autor supracitado considera
o termo “gêneros do discurso”
no qual estão
inseridos os gêneros literários e os gêneros de textos.
Para Adam (2011, p. 21), o conceito de
“
tipos de texto
”
parece mais
“
um
obstáculo epistemológico que uma ferramenta heurística
” e acrescenta
:
Os teóricos e os práticos que falam de tipos de textos se inscrevem em uma corrente classificatória que, ao lado da colocação dos gramáticos do texto, acreditou poder reduzir a diversidade dos textos a um pequeno número de categorias relativamente estáveis. Um certo número de autores, como
8Un discours s’articule en divers genres, qui correspondent à autant de pratiques sociales différenciées à
l’intérieur d’un même champ. Si bien qu’un genre est ce qui rattache un texte à un discours. Une
typologie des genres doit tenir compte de l’incidence des pratiques sociales sur les codifications
23
Wolfgang U. Dressler, pronunciam-se a favor das tipologias funcionais oupragmáticas que são manifestadamente mais graduais: “As funções são
representadas com degraus diferentes em textos reais” (1984:87-88). Certamente, a unidade “texto” é muito mais complexa e bem mais
heterogênea para apresentar regularidades linguisticamente observáveis e codificáveis, ao menos nesse nível elevado de complexidade.9
Por essa razão, ele propôs situar os fatos de regularidade chamados de
“narrativa” e, do outro lado, “descrição”, “argumentação”,
“explicação” e “diálogo”,
que sugeriu
chamar de “sequencial”.
O modelo da estrutura composicional dos textos sobre o qual Adam se apoia
afasta
a ideia de “tipologia de textos”.
Esse modelo está inserido na perspectiva global
de uma teoria dos níveis de organização e dos níveis de tratamento da textualidade e da
discursividade.
A maioria dos gêneros discursivos fixa o tipo composicional dominante. Assim, os gêneros do conto e da fábula são narrativos (narrativo incluindo segmentos descritivos e dialogais), enquanto que o gênero epistolar (com seus subgêneros: carta pessoal, administrativa, carta dos leitores na imprensa, etc.), a entrevista, o teatro, devem ser considerados como gêneros conversacionais (dialogal incluindo blocos narrativos, explicativos, etc.) e o guia turístico, o retrato, o anúncio de venda de uma casa ou de um apartamento, o inventário, etc., como gêneros com dominante descritiva. Os gêneros e subgêneros de discurso fixam essas relações de dominante que são suscetíveis de ser modificadas em textos singulares, atualizando sempre mais ou menos um gênero. (ADAM, 2011, p. 22).10
Adam afirma que a genericidade
“
afeta os diferentes componentes da
textualidade e, em troca, esses diferentes componentes ou planos de textualização
manifestam a genericidade de um texto
”
. (2011, p. 22).
Além de Adam, Bronckart (1999) é outro teórico que parte dos princípios
bakhtinianos para definir sua própria concepção acerca de texto e gênero. No entanto,
9Les théoriciens et les praticiens qui parlent de types de textess’inscrivent dans un courant classificatoire
qui, à côté de la mise en place des grammaires de texte, a cru pouvoir réduire la diversité des textes à un
petit nombre de catégories relativement stables. Un certain nombre d’auteurs, comme Wolfgang U.
Dressler, se prononcent pour des typologies fonctionnelles ou pragmatiques qui sont manifestement plus graduelles : « Les fonctions sont représentées à des degrés différents dans les textes réels » (1984 :
87-88). En effet, l’unité « texte » est beaucoup trop complexe et bien trop hétérogène pour présenter des régularités linguistiquement observables et codifiables, du moins à ce niveau élevé de complexité.
10
La plupart des genres discursifs fixent le type compositionnel dominant. Ainsi les genres du conte et de la fable sont-ils narratifs (narratif enchâssant des segments descriptifs et dialogaux) tandis que le genre épistolaire (avec ses sous-genres : courrier personnel, administratif, courrier des lecteurs dans la presse,
etc.), l’interview, le théâtre doivent être considérés comme des genres conversationnels (dialogal
enchâssant des îlots narratifs, explicatifs, etc.) et le guide touristique, le portrait, l’annonce de vente d’une maison ou d’un appartement, l’inventaire, etc. comme des genres à dominante descriptive. Les genres et
sous-genres de discours fixent ces relations de dominante qui sont susceptibles d’être modifiées dans des
24
como já mencionamos, Bronckart não utiliza a noção de gênero do discurso, como
Bakhtin, ele utiliza a de gênero de texto, para evidenciar a relação estabelecida entre
texto e gênero, pois, para ele (1999, p. 75),
“
todo texto se inscreve em um conjunto de
textos ou em um gênero
”
. Os estudos de gêneros realizados por Bronckart
fundamentam-se no quadro teórico do interacionismo sócio-discursivo.
2.4.
A noção de gênero para Marcuschi
Marcuschi (2008, p. 146) nos apresenta um estudo sobre os gêneros textuais. Ele
afirma que esse tipo de estudo não é recente, pois sua observação sistemática iniciou-se
desde Platão. A
expressão “gênero”
, segundo Marcuschi, esteve, na tradição ocidental,
especialmente ligada aos gêneros literários e, atualmente, essa noção não se vincula
somente à literatura. O referido teórico nos apresenta uma citação de Swales (1990, p.
33): “hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria distintiva de discurso
de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias”.
O estudo dos gêneros textuais
“
está na moda
”
, segundo Marcuschi (2008, p.
148), que nos apresenta uma citação de Bhatia (1997), ao afirmar que a expressão
“gênero” vem sendo atualmente usada de maneira cada vez mais frequente e em número
cada vez maior de áreas de investigação. Marcuschi também considera que isso está
tornando o estudo de gêneros textuais
“
um empreendimento cada vez mais
multidisciplinar
”
. Por essa razão, a análise de gêneros engloba uma análise do texto e do
discurso, uma descrição da língua e uma visão da sociedade.
De acordo com Marcuschi (2008, p. 149), o gênero pode englobar ideias como
sendo:
“
uma categoria cultural, um esquema cognitivo, uma forma de ação social, uma
estrutura textual, uma forma de organização social e, por fim, uma ação retórica
”
.
Certamente, o gênero pode ser isso tudo ao mesmo tempo, já que, em certo sentido, cada um desses indicadores pode ser tido como um aspecto da observação. Isso dá uma noção mais aproximada da complexidade da questão e o porquê da ausência de trabalhos sistemáticos que até recentemente dessem conta do problema na perspectiva didática. (2008, p. 149).
25
conteúdo, mas sua determinação se dá basicamente pela função e não pela forma
”
. É por
essa razão que ele considera falhos os estudos muito formais ou estruturais do gênero.
Marcuschi acredita que o estudo dos gêneros textuais é hoje uma área
interdisciplinar muito ampla, que está voltada para a linguagem em funcionamento e
para as atividades sociais e culturais.
Desde que não concebamos os gêneros como modelos estanques nem como estruturas rígidas, mas como formas culturais e cognitivas de ação social (Miller, 1984) corporificadas na linguagem, somos levados a ver os gêneros como entidades dinâmicas, cujos limites e demarcações se tornam fluidos. [...]. É quase impossível hoje dominar com satisfatoriedade a quantidade de sugestões para o tratamento dos gêneros textuais. (MARCUSCHI, 2008, p. 151).
Observamos que, segundo Miller, os gêneros estão relacionados com a ação
social e é juntamente com a sociedade que eles, os gêneros, sofrerão alterações em sua
estrutura; por essa razão, não é possível concebê-los como estruturas pré-determinadas e
torna-se difícil ter o domínio sobre todos os pressupostos teóricos que envolvem a
noção de gêneros.
Para Marcuschi (2008, p. 154),
“
toda manifestação verbal se dá sempre por meio
de textos realizados em algum gênero
”
, ou seja, a comunicação verbal só é possível
através de algum gênero textual. Ele nos apresenta as diferenças entre tipo textual,
gênero textual e domínio discursivo. Vejamos o que ele fala a respeito de cada um
deles:
Tipo textual designa uma espécie de construção teórica {em geral uma sequência subjacente aos textos} definida pela natureza linguística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas, estilo}. O tipo caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas [...] do que como textos materializados, a rigor, são modos textuais. Em geral, os
tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. (2008, p. 154-5).
Marcuschi também afirma que o conjunto de categorias para designar tipos
textuais é limitado e não tende a aumentar. Quando há predominância de um modo num
texto, diz-se que esse é um texto argumentativo ou narrativo ou expositivo, etc.
26
Em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo, em princípio, listagens abertas.Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, [...] e assim por diante. Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas. (MARCUSCHI, 2008, p. 155).
O domínio discursivo, consoante Marcuschi (2008, p. 155), representa mais uma
“‘
esfera da atividade humana
’
, no sentido bakhtiniano do termo do que um princípio de
classificação de textos e indica
instâncias discursivas
”
, como por exemplo, o discurso
jurídico, jornalístico ou religioso. Como afirma Marcuschi (2008, p. 155), o domínio
discursivo não abrange um gênero específico, mas dá origem a vários deles, já que os
gêneros são institucionalmente marcados. Os domínios discursivos constituem práticas
discursivas
“nas quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às
vezes lhe são próprios ou específicos, como rotinas comunicativas institucionalizadas e
instauradoras de relação de poder
”
. (MARCUSCHI, 2008, p. 155).
Marcuschi (2008, p. 155) admite defender essas posições a partir dos
pressupostos bakhtinianos, os quais dizem que todas as atividades humanas estão
relacionadas ao uso da língua, que se efetiva por meio de enunciados orais ou escritos,
concretos e únicos, que provêm dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade
humana. Para Marcuschi, não é possível tratar da noção de gênero de discurso sem levar
em consideração sua realidade social e sua relação com as atividades humanas.
Na realidade, o estudo dos gêneros textuais é uma fértil área interdisciplinar, com atenção especial para o funcionamento da língua e para as atividades culturais e sociais. Desde que não concebamos os gêneros como modelos estanques, nem como estruturas rígidas, mas como formas culturais cognitivas de ação social corporificadas de modo particular na linguagem, temos de ver os gêneros como entidades dinâmicas. Mas é claro que os gêneros têm uma identidade e elas são entidades poderosas que, na produção textual, nos condicionam a escolhas que não podem ser totalmente livres nem aleatórias, seja sob o ponto de vista do léxico, grau de formalidade ou natureza dos temas, como bem lembra Bronckart (2001). Os gêneros limitam nossa ação na escrita. Isto faz com que Amy J. Devitt (1997) identifique o gênero como nossa “linguagem estândar”, o que por um lado impõe
restrições e padronizações, mas por outro lado é um convite a escolhas, estilos, criatividade e variação. (MASCUSCHI, 2008, p. 155-6).
27
As definições apresentadas por Marcuschi em relação a gênero, tipo e domínio
discursivo estão bem próximas à posição bakhtiniana.
Assim, para a noção de tipo textual, predomina a identificação de sequências linguísticas como norteadora; e para a noção de gênerotextual, predominam os critérios de padrões argumentativos, ações, propósitos e inserção sócio-histórica. No caso dos domínios discursivos, não lidamos propriamente com textos e sim com formações históricas e sociais que originam os discursos. [...].
As distinções entre um gênero e outro não são predominantemente linguísticas e sim funcionais. Já os critérios para distinguir os tipos textuais seriam linguísticos e estruturais, de modo que os gêneros são designações sociorretóricas e os tipos são designações teóricas. Temos muito mais designações para gêneros como manifestações empíricas do que para tipos. (MARCUSCHI, 2008, p. 158-9).
Marcuschi nos apresenta algumas considerações provenientes de estudos
realizados por Maingueneau (2004), e afirma que este
“
sempre foi cético quanto à
classificação dos gêneros
”
(2008, p. 159-60). Em 1999, Maingueneau propôs uma
divisão dos gêneros em três grandes conjuntos de
acordo com o seu “regime de
genericidade”, são eles: gêneros autorais, gêneros rotineiros e gêneros conversacionais.
Os gêneros autorais são os textos que possuem um caráter de autoria pelos traços
de estilo, caráter pessoal e se situam em especial em textos literários, jornalísticos,
políticos, religiosos, etc. Os gêneros rotineiros são os que estão presentes em nosso dia a
dia, como entrevistas televisivas, consultas médicas, entre outros. De acordo com
Maigueneau (1999), seus papéis
“
são fixados
a priori
e não mudam muito de situação
para situação e neles as marcas autorais se manifestam menos
”
.
Os gêneros conversacionais apresentam uma menor estabilidade e não possuem
uma organização temática previsível como, por exemplo, as conversações. De um modo
geral, é difícil distingui-los e dividi-los como gêneros em categorias bem definidas.
Marcuschi nos alerta que essa classificação foi mudada por Maingueneau, uma
vez que este considerou que a tripartição feita por ele mesmo não era pertinente.
O próprio termo “rotineiro” não parece adequado, já que daria a impressão de
que as conversações não seriam rotineiras quando elas são rotinas muito comuns. Mas o mais complicado era distinguir de maneira tão rigorosa entre os gêneros autorais e os gêneros rotineiros, pois uma crônica jornalística tem sem dúvida marcas autorais e não poderia ser incluída no primeiro conjunto. (MARCUSCHI, 2008, p. 160).
28
interdiscursividade. Isso nos revela que a escolha de um outro gênero em nossa
atividade discursiva não é uma escolha aleatória, pois vai depender de interesses
específicos.
2.5.
Intergenericidade e genericidade
Marcuschi (2008, p. 161) admite que, assim como disse Bakhtin (1979), toda e
qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero que não é decidido
ad hoc
. Isso
justificaria a
“
imensa pluralidade de gêneros e seu caráter essencialmente
sócio-histórico
”
. Nesse âmbito de pluralidade de gêneros, há intergenericidade. Assim, que
nomes dar aos gêneros?
Como é que se chega à denominação dos gêneros? Com certeza, as designações que usamos para os gêneros não são uma invenção pessoal, mas uma denominação histórica e socialmente constituída. E cada um de nós já deve ter notado como costumamos com alta frequência designar o gênero que produzimos. Possuímos, para tanto, uma metalinguagem riquíssima, intuitivamente utilizada e, no geral, confiável. Contudo, é difícil determinar o nome de cada gênero de texto. Como já notaram muitos autores, em especial Bakhtin (1979), os gêneros se imbricam e interpenetram para constituírem novos gêneros. Como observamos anteriormente, não é uma boa atitude imaginar que os gêneros têm uma relação biunívoca com formas textuais. E isso fica comprovado no caso de um gênero que tem a função do outro [...]. (MARCUSCHI, 2008, p. 163).
Quando há uma mistura de gêneros, Marcuschi (2008) adota a sugestão da
linguista alemã Fix (1997, p. 97), que utiliza a expressão “intertextualidade tipológica”
para designar esse
“
aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero
assume a função de outro
”
. Porém, o termo adotado por Marcuschi é
“intergenericidade”, pois, para ele, é a expressão que melhor
explica o fenômeno.
Marcuschi (2008, p. 166) atenta para o fato de que a intergenericidade de
funções e formas de gêneros diversos em um gênero específico deve ser diferenciada da
questão da heterogeneidade tipológica do gênero, que concerne ao fato de um gênero
realizar sequências de vários tipos textuais, como uma carta que pode conter uma
narrativa, uma argumentação, uma descrição, etc. Com isso, temos:
Intergenericidade
–
um gênero com a função de outro.
29
Adam e Heidmann (2010, p. 20) também escrevem a respeito da genericidade.
Para eles,
“
a passagem do gênero à genericidade é uma mudança de paradigma
”
:
O relacionamento de um texto, considerado em seu fechamento, com uma categoria genérica constituída geralmente em essência, difere profundamente da dinâmica sociocognitiva que nos propomos a pôr em evidência. Nessa
perspectiva, é “menos examinar o pertencimento genérico de um texto que
atualizar as tensões genéricas que o informam. Esse deslocamento do gênero para a genericidade põe em suspense toda a visada tipológica [e] permite contornar o obstáculo existencialista” (Dion, Fortier e Hagueraert, 2001, p. 17). Trata-se de abordar o problema do gênero menos como o exame das características de uma categoria de textos, mas levando em conta a evidência de um processo dinâmico de trabalho sobre as orientações genéricas dos enunciados. (2011, p. 20).
Em outro trabalho, ao escrever sobre textualidade e intertextualidade dos contos,
Adam e Heidmann (2010, p. 19) propõem um conceito de genericidade:
A fim de solucionar a complexidade do impacto genérico sobre a conversação e de fazer dele um critério de análise eficaz, propomo-nos modificar a problemática do gênero como categorias de textos em direção a um conceito mais dinâmico: o de genericidade. Esse conceito designa o processo de inscrição de um enunciado em um ou vários gêneros de discurso praticados em uma dada comunidade discursiva. Ele permite “evitar o
obstáculoessencialista” (Dion et al. 2001:17) que torna toda comparação interlinguística e intercultural impossível. A genericidade situa-se, com
efeito, ao lado da “flutuação, da instabilidade, da constante recategorização”
(2001:6); ela é inseparável da variação do sistema de gêneros de uma época ou de um grupo social.11
Heidmann (2010, p. 34) propõe designar por (re)configuração genérica a
transformação de uma cena de enunciação que se instituiu como característica de um
gênero.
Ainda segundo a atora citada “u
ma obra reconfigura uma tal cena de enunciação
pela invenção de um outro dispositivo cenográfico para se diferenciar e para ‘melhor se
impor um novo modo de dizer’ (MAINGUENEAU, 2004, p. 43)”. Heidmann utiliza o
mesmo conceito de cena de enunciação utilizado por Maingueneau (2004, p. 42):
A obra, através do mundo que ela configura em seu texto, reflete, legitimando, as condições de sua própria atividade enunciativa. Disso, surge o papel crucial que deve desempenhar a “cena da enunciação”, que não é
redutível, nem ao texto, nem a uma situação de comunicação que se poderia descrever do exterior. A instituição discursiva é o movimento pelo qual
11
Afin de saisir la complexité de l’impact générique sur la mise en discours et d’en faire un critère
d’analyse efficace, nous proposons de déplacer la problématique du genre comme catégorie de textes vers
un concept plus dynamique : celui de généricité. Ce concept désigne le processus d’inscription d’un
énoncé dans un ou plusieurs genres de discours pratiqués dans une communauté discursive donnée. Il permet « d’éviter l’écueil essencialiste » (Dion et al. 2001 : 17) qui rend toute comparaison interlinguistique et interculturelle impossible. La généricité se place en effet du côté « de la fluctuation,
de l’instabilité, de la constante recatégorisation » (2001 : 6) ; elle est inséparable de la variation du