5. Análise de dados
5.1. A Responsabilidade Enunciativa à luz de Rabatel
5.1.1. Itinéraire d’un Voyage en Allemagne: um único ponto de vista?
Todo escritor tem um papel de destaque dentro de sua obra. Por mais que o
gênero textual escolhido por ele não o ponha em evidência, o leitor tem consciência de
que ele é o “responsável” pelos dizeres/pelas palavras escritas no texto.
Algumas vezes, o escritor assume a responsabilidade do que escreve, expressa.
Outras vezes, prefere não se “comprometer”, atribuindo o seu dizer a terceiros. Como
nosso corpus é um relato de viagem, é importante levar em consideração o papel do
125
autor dentro da obra, principalmente em um gênero textual em que o autor conta parte
de sua história e o uso da primeira pessoa (sobretudo do singular) está fortemente
marcado.
Em geral, nos relatos de viagem, o escritor (o viajante), tende a utilizar
pronomes de primeira pessoa, uma vez que uma das características do gênero é que esse
viajante narre sua própria viagem. No Itinéraire, a autora assume a responsabilidade de
sua fala, uma vez que ela usa quase que a todo tempo os pronomes de primeira pessoa
“je” e “nous”, o segundo usado quando está na presença da filha ou de amigos.
Vimos, a partir da perspectiva rabateliana, que o conceito de enunciador é
importante para que consigamos dar conta do implícito, dos pontos de vista (PDV) e de
todas as situações em que um locutor reporta um PDV ao qual ele empresta sua voz,
sem chegar a retomá-lo por sua conta, ou seja, o locutor profere a fala de outra pessoa,
fazendo com que o enunciador não seja E1, uma vez que ele não é o detendor do PDV,
mas e2.
Dentre as considerações de Rabatel sobre a noção de locutor (L) e enunciador
(E), é válido para nossa análise considerar o fato de que, para ele, todo locutor é
enunciador, mas todo enunciador não é necessariamente locutor. Assim, apesar dessa
possibilidade, a partir da leitura do Itinéraire, podemos observar que Nísia é L, uma vez
que é ela quem narra sua passagem pela Alemanha, assim como ela é E, pois em quase
todos os momentos ela traz o seu PDV.
A “voz principal” apresentada por Goffman, da qual Rabatel também faz uso,
que corresponde ao sincretismo do locutor e do enunciador, (L1/E1) também surge para
trazer mais um dado que denotaria a assunção da RE, pois Nísia Floresta representa a
“voz principal”, uma vez que ela é enunciadora e está nitidamente em sincretismo com
o locutor.
O fato de Nisia Floresta representar, no Itinéraire, L1 e E1 não quer dizer que
não haja a presença de um enunciador segundo (e2), pois, em algumas circunstâncias
ela está narrando fatos históricos e utiliza-se de termos como: “segundo”, “dizem”,
“disseram-me”, para esclarecer que a informação que está sendo transmitida é
proveniente de outra pessoa/fonte, portanto, representa outro PDV.
Quando isso acontece, temos uma situação de quase-RE (quase
Responsabilidade Enunciativa), ou seja, é apenas uma imputação. Rabatel considera
duas situações distintas, uma é a “Responsabilidade Enunciativa”, a outra é o que ele
126
sua própria conta. A segunda corresponde aos conteúdos proposicionais que L1/E1
atribui a um enunciador segundo (e2).
Vejamos alguns fragmentos onde podemos verificar a presença de e2:
(1)
Le palais de l’Industrie renferme une riche collection de modèles de tout genre, machine et instruments. Un des côtés est occupé par la bibliothèque royale, qui possède, m’a-t-on dit,
200,000 volumes imprimés, et presque autant de manuscrits [...].
O palácio da Indústria compreende uma rica coleção de modelos de todo gênero, máquinas e instrumentos. Um dos lados é ocupado pela biblioteca real, que possui, disseram-me, 200.000 volumes impressos e quase a mesma quantidade de manuscritos [...].
(carta I)
(2)
Un manteau orné de plumes, qui, dit-on, a appartenu à Montézuma, empereur du Mexique, y est encore conservé dans une salle particulière, ainsi que le berceau de Charles-Quit, et deux chevaux empaillés, que l’archiduc Albert et l’archiduchesse Isabelle montèrent au siége d’Ostende en 1602.
Um manto ornado de plumas que, dizem, pertenceu a Montezuma, imperador do México, ainda é conservado lá em uma sala particular, assim como o berço de Carlos V e dois cavalos empalhados, que o arquiduque Alberto e a arquiduquesa Isabel subiram na sede de Ostende em 1602.
(carta I)
(3)
En face de l’hôtel de ville, se trouve un vaste édifice, nommé la Halle au pain, et plus vulgairement Maison du roi. Ce fût là, m’a-t-on dit, dans une petite salle, que les comtes de Horn
et d’Egmont passèrent la nuit qui précéda le supplice auquel les avait fait condamner le duc d’Albe, ce farouche ministre de Philippe II.
Diante do hotel da cidade, encontra-se um amplo edifício, nomeado Halle au pain, e mais vulgarmente Casa do rei. Foi lá, disseram-me, em uma pequena sala, que os condes de Horn e Egmont passaram a noite que precedeu o suplício o qual os tinha feito condenar o duque de Albe, esse feroz ministro de Filipe II.
(carta I)
(4)
Au bas de cette montagne, de jeunes filles paysannes nous attendaient pour nous vendre des souvenirs, tels que le panorama du pays, des aigles, des balles françaises et des balles anglaises trouvées, disaient-elles, dans les champs de Waterloo [...].
Embaixo desta montanha, jovens camponesas nos esperavam para nos vender lembranças, como o panorama do país, águias, balas francesas e balas inglesas encontradas, diziam elas, nos campos de Waterloo [...].
(carta II)
(5)
Bacharach, où, selon quelques antiquaires, exista
l’Ara des Romains. Bacharach, onde, segundo alguns antiquários, existiu a Ara dos Romanos. Carta V
(6)
On montre également aux visiteurs, moyennant la somme dont j’ai parlé plus haut, le bras énorme de cet homme extraordinaire, qui, selon l’expression
Mostra-se igualmente aos visitantes, cobrando a soma da qual eu falei mais acima, o braço enorme desse homem extraordinário, que, segundo a
127
du grand poëte français, a tenu la boule du monde, et dont le crâne a été le moule de toute une Europe nouvelle.
expressão do grande poeta francês, segurou a bola do mundo e cujo crânio foi um molde de toda uma nova Europa.
(carta V)
(7)
L’or et les pierreries brillent sur les reliquaires gothiques et byzantins qui contiennent ces précieux objets. Une châsse d’une valeur et d’une beauté extraordinaires contient le reste des os de Charlemagne ; on dit que cette châsse ne s’ouvre jamais.
O ouro e as pedrarias brilham sobre os relicários góticos e bizantinos que contêm esses preciosos objetos. Um relicário de um valor e de uma beleza extraordinárias contém o resto dos ossos de Carlos Magno. Dizem que esse relicário nunca é aberto. (carta V)
(8)
C’est sur cet emplacement, dans lequel on voit encore les restes de la vieille et fameuse tour romaine de Gracchus, transformé en beffroi ; c’est là, dit-on, qu’est né Charlemagne.
É sobre este lugar, no qual se vê ainda os restos da velha e famosa torre romana de Gracchus, transformada em campanário. Foi lá, dizem, que nasceu Carlos Magno.
(carta V)
(9)
On dîne à table d’hôte dans les hôtels, au son d’une bonne musique ; c’est, dit-on, l’usage e Allemagne [...].
Janta-se na mesa de hóspedes nos hotéis, ao som de uma boa música. É, dizem, o uso na Alemanha [...].
(carta V)
(10)
On aperçoit au sud, sur la hauteur, les débris des châteaux Sternberg et Liebestein, surnommés les
deux frères. La légende dit que l’un de ces châteaux servit de résidence à une famille issue de Roland.
Percebe-se ao sul, no alto, as ruínas dos castelos de Sternberg e Liebestein, apelidados de dois irmãos.
A lenda diz que um desses castelos serviu de
residência a uma família proveniente de Roldão. (carta VI)