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2. Gêneros textuais/discursivos

2.5. Intergenericidade e genericidade

Marcuschi (2008, p. 161) admite que, assim como disse Bakhtin (1979), toda e

qualquer atividade discursiva se dá em algum gênero que não é decidido ad hoc. Isso

justificaria a

“imensa pluralidade de gêneros e seu caráter essencialmente sócio-

histórico”. Nesse âmbito de pluralidade de gêneros, há intergenericidade. Assim, que

nomes dar aos gêneros?

Como é que se chega à denominação dos gêneros? Com certeza, as designações que usamos para os gêneros não são uma invenção pessoal, mas uma denominação histórica e socialmente constituída. E cada um de nós já deve ter notado como costumamos com alta frequência designar o gênero que produzimos. Possuímos, para tanto, uma metalinguagem riquíssima, intuitivamente utilizada e, no geral, confiável. Contudo, é difícil determinar o nome de cada gênero de texto. Como já notaram muitos autores, em especial Bakhtin (1979), os gêneros se imbricam e interpenetram para constituírem novos gêneros. Como observamos anteriormente, não é uma boa atitude imaginar que os gêneros têm uma relação biunívoca com formas textuais. E isso fica comprovado no caso de um gênero que tem a função do outro [...]. (MARCUSCHI, 2008, p. 163).

Quando há uma mistura de gêneros, Marcuschi (2008) adota a sugestão da

linguista alemã Fix (1997, p. 97), que utiliza a expressão “intertextualidade tipológica”

para designar esse “aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero

assume a função de outro”. Porém, o termo adotado por Marcuschi é

“intergenericidade”, pois, para ele, é a expressão que melhor explica o fenômeno.

Marcuschi (2008, p. 166) atenta para o fato de que a intergenericidade de

funções e formas de gêneros diversos em um gênero específico deve ser diferenciada da

questão da heterogeneidade tipológica do gênero, que concerne ao fato de um gênero

realizar sequências de vários tipos textuais, como uma carta que pode conter uma

narrativa, uma argumentação, uma descrição, etc. Com isso, temos:

Intergenericidade – um gênero com a função de outro.

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Adam e Heidmann (2010, p. 20) também escrevem a respeito da genericidade.

Para eles, “a passagem do gênero à genericidade é uma mudança de paradigma”:

O relacionamento de um texto, considerado em seu fechamento, com uma categoria genérica constituída geralmente em essência, difere profundamente da dinâmica sociocognitiva que nos propomos a pôr em evidência. Nessa perspectiva, é “menos examinar o pertencimento genérico de um texto que atualizar as tensões genéricas que o informam. Esse deslocamento do gênero para a genericidade põe em suspense toda a visada tipológica [e] permite contornar o obstáculo existencialista” (Dion, Fortier e Hagueraert, 2001, p. 17). Trata-se de abordar o problema do gênero menos como o exame das características de uma categoria de textos, mas levando em conta a evidência de um processo dinâmico de trabalho sobre as orientações genéricas dos enunciados. (2011, p. 20).

Em outro trabalho, ao escrever sobre textualidade e intertextualidade dos contos,

Adam e Heidmann (2010, p. 19) propõem um conceito de genericidade:

A fim de solucionar a complexidade do impacto genérico sobre a conversação e de fazer dele um critério de análise eficaz, propomo-nos modificar a problemática do gênero como categorias de textos em direção a um conceito mais dinâmico: o de genericidade. Esse conceito designa o processo de inscrição de um enunciado em um ou vários gêneros de discurso praticados em uma dada comunidade discursiva. Ele permite “evitar o obstáculoessencialista” (Dion et al. 2001:17) que torna toda comparação interlinguística e intercultural impossível. A genericidade situa-se, com efeito, ao lado da “flutuação, da instabilidade, da constante recategorização” (2001:6); ela é inseparável da variação do sistema de gêneros de uma época ou de um grupo social.11

Heidmann (2010, p. 34) propõe designar por (re)configuração genérica a

transformação de uma cena de enunciação que se instituiu como característica de um

gênero. Ainda segundo a atora citada “uma obra reconfigura uma tal cena de enunciação

pela invenção de um outro dispositivo cenográfico para se diferenciar e para ‘melhor se

impor um novo modo de dizer’ (MAINGUENEAU, 2004, p. 43)”. Heidmann utiliza o

mesmo conceito de cena de enunciação utilizado por Maingueneau (2004, p. 42):

A obra, através do mundo que ela configura em seu texto, reflete, legitimando, as condições de sua própria atividade enunciativa. Disso, surge o papel crucial que deve desempenhar a “cena da enunciação”, que não é redutível, nem ao texto, nem a uma situação de comunicação que se poderia descrever do exterior. A instituição discursiva é o movimento pelo qual

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Afin de saisir la complexité de l’impact générique sur la mise en discours et d’en faire un critère d’analyse efficace, nous proposons de déplacer la problématique du genre comme catégorie de textes vers un concept plus dynamique : celui de généricité. Ce concept désigne le processus d’inscription d’un énoncé dans un ou plusieurs genres de discours pratiqués dans une communauté discursive donnée. Il permet « d’éviter l’écueil essencialiste » (Dion et al. 2001 : 17) qui rend toute comparaison interlinguistique et interculturelle impossible. La généricité se place en effet du côté « de la fluctuation, de l’instabilité, de la constante recatégorisation » (2001 : 6) ; elle est inséparable de la variation du

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passam um no outro, para fortalecer a obra e suas condições de enunciação. Fortalecimento recíproco que constitui o motor da atividade literária.12

Heidmann (2010, p. 34-5) afirma que o conceito de (re)configuração genérica

permite compreender a inscrição de enunciados nos sistemas de gêneros existentes

como uma tentativa de modular as convenções genéricas em vigor, melhor adaptadas

aos contextos socioculturais e discursivos que mudam de uma época e de uma esfera

cultural e linguística a outra.

Com relação ao conceito de genericidade o qual recorremos para designar mais geralmente a dinâmica e as flutuações a qual depende toda inscrição (autorial, editorial e leitorial) de um enunciado em um sistema de gêneros, o conceito de (re)configuração deve permitir distinguir nessas flutuações gerais, frases e contornos mais precisos. (2010, p. 35).13

Sobre essa mistura/junção de diferentes gêneros que podem ser encontradas em

alguns textos, Adam e Heidmann (2009, p. 10) afirmam que todo texto participa de um

ou de vários gêneros: “Desde que haja texto, ou seja, reconhecimento do fato que de

uma sequência de enunciados forma um todo de comunicação, há efeito de

genericidade”.

De acordo com os autores acima citados, os gêneros nomeados como contos,

história trágica, epopeia, etc., funcionam como “etiquetas de pertencimento e tendem a

reduzir um enunciado a uma única categoria ou família de textos”. Assim, Adam e

Heidmann defendem que a genericidade permite pensar na participação de um texto em

vários gêneros.

Em um texto relacionado, geralmente, a vários gêneros, a questão não é classificá-lo numa categoria – seu pertencimento –, mas de observar as potencialidades genéricas que o atravessam – sua participação em um ou vários gêneros –, levando-se em conta pontos de vista tanto autoriais quanto autoriais e leitoriais. Analisar uma participação em vez de se limitar a um pertencimento classificatório permite entrar na complexidade dos fatos de discurso. À exceção de gêneros socialmente bastante constritivos, a maior parte dos textos não se conforma a um só gênero e opera um trabalho de transformação de um gênero a partir de vários gêneros (mais ou menos próximos). (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 21).

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L’oeuvre, à travers le monde qu’elle configure dans son texte, réfléchit en légitimant les conditions de sa propre activité énonciative. De là le rôle crucial que doit jouer la « scène de l’énonciation », qui n’est réductible ni au texte ni à une situation de communication qu’on pourrait décrire de l’extérieur. L’institution discursive est le mouvement par lequel passent l’un dans l’autre, pour s’étayer, l’oeuvre et ses conditions d’énonciation. Étayage réciproque qui constitue le moteur de l’activité littéraire

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Par rapport au concept de généricité auquel nous recourons pour désigner plus généralement la dynamique et les fluctuations dont relève toute inscription (auctoriale, éditoriale et lectoriale) d’un énoncé dans un système de genres, le concept de (re)configuration doit permettre de distinguer dans ces fluctuations générales des phrases et des contours plus précis.

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Para Adam e Heidmann (2011, p. 25), os gêneros só existem em meio a um

sistema de gêneros e afirmam que o julgamento da pertinência de um texto a um (ou

vários) gênero(s) é, ao mesmo tempo, “flutuante e sistêmico”, como a maioria das

outras operações humanas de categorização. A categorização e a definição de categorias

são “operações fundamentais que permanecem, na maior parte do tempo, intuitivas. A

identificação de um gênero não é um raciocínio abstrato, fundado na recuperação de

conjuntos de propriedades definidas”. (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 25). Trata-se,

mais propriamente, segundo Adam e Heidmann, de agrupamentos por “ares de família”,

isto é, que possuem características semelhantes.

Os autores acima citados também afirmam que, no nível semântico, o regime de

interpretação dos enunciados depende, além das bases temáticas e das configurações de

padrão, dos gêneros considerados.

No nível enunciativo, além do estatuto dos (co)enunciadores, seu grau de implicação e de responsabilidade dos enunciados, a coerência polifônica ligada à sucessão dos pontos de vista está, em grande parte, sob a influência direta do(s) gênero(s) ao(s) qual(is) o texto é remetido. (ADAM; HEIDMANN, 2011, p. 28).

Assim, observamos que no nível enunciativo, os gêneros aos quais o texto

pertence, são, em sua maioria, responsáveis pelo grau de implicação e de

responsabilidade dos enunciados.

Para Todorov (1980, p. 46) “os gêneros surgem a partir de outros gêneros e um

novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos, seja por

inversão, deslocamento ou combinação”. Assim, ele (1980, p. 43) também escreve a

respeito da união/junção de diferentes gêneros, acreditando que se uma obra tem um

pouco de dois gêneros, por exemplo, deve-se chamá-la de “um ser híbrido”.

O que assegura o sucesso da obra é a coerência interna e não a conformidade de

uma regra externa. Para o autor citado, seria até um sinal de modernidade autêntica num

escritor o fato de ele não mais obedecer à separação dos gêneros.

De acordo com Todorov (1980, p. 37), o gênero consiste na lógica das relações

mútuas entre os elementos constitutivos da obra. O sistema de gêneros não é fechado e,

por isso, ele não preexiste necessariamente à obra. O gênero pode nascer ao mesmo

tempo em que o projeto da obra e quem consegue criar com sucesso gêneros novos pode

ser considerado um “homem de gênio”.

De um modo geral, acreditamos na perspectiva bakhtiniana (2000), na qual os

gêneros se “imbricam” e “interpenetram” para constituírem novos gêneros.

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