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Seguindo a perspectiva da Análise Textual dos Discursos, propusemos-nos a

estudar, neste trabalho, o fenômeno da Responsabilidade Enunciativa (RE) e constatar

como a assunção da fala, do dizer, apresenta-se ou materializa-se no relato de viagem de

Nísia Floresta: Itinéraire d’un Voyage en Allemagne (Itinéraire). Para chegarmos a uma

conclusão, traçamos um longo percurso, que atravessou diversas noções e teóricos.

Primeiramente, apresentamos uma discussão acerca da noção de gêneros

discursivos e dos gêneros que estão presentes no Intinéraire: relato de viagem, epistolar

e autobiográfico. Diante da fala de Bakhtin (2000, p. 283), que afirmou que “o

enunciado reflete a individualidade de quem fala/escreve”, acreditamos que essa

característica pode ser verificada em nosso corpus, uma vez que, apesar de

apresentarem características dos gêneros citados, apresentam-se de um modo

diferenciado, como se, de certa forma, “não respeitasse as regras” comuns aos gêneros.

É possível que essas diferentes características, que “fogem” às normas,

configurem-se de tal modo pelo momento de sua produção, assim como pela intenção

da autora, que era apenas de escrever cartas aos familiares para relatar/descrever os

lugares por onde passava, seus sentimentos e até mesmo seu estado de espírito.

À luz da ótica de Lejeune, vimos que, no Itinéraire, podemos identificar o

“pacto autobiográfico”, uma vez que Nísia Floresta representa a autora, a narradora e a

personagem de sua própria história, apresentando, portanto, mais uma característica de

assunção da RE. A partir das cartas analisadas, destacamos o fato de que a

Responsabilidade Enunciativa esteve presente em quase todos os enunciados proferidos

por Nísia Floresta.

Esse dado nos revelou que, apesar de o Itinéraire ser um relato de viagem de

cunho autobiográfico, ainda assim é possível encontrar algumas marcas de não assunção

de RE. Nísia Floresta assume constantemente a responsabilidade pelos seus dizeres, mas

em algumas circunstâncias, ao relatar fatos históricos, ela esclarece que a informação

transmitida é proveniente de outra fonte.

A partir disso, e diante da análise do nosso corpus, constatamos que, ao falar

sobre si, ao apresentar informações autobiográficas, o escritor assume a RE de sua fala.

Entretanto, uma obra como o Itinéraire, que não é apenas autobiográfica, mas que

também apresenta informações históricas, haja vista que relata uma viagem à Alemanha

no século XIX e uma das características de Nísia Floresta é expor muitos detalhes, seja

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sobre as cidades visitadas, sobre os monumentos contemplados ou sobre os costumes da

época, pode apresentar marcas de distanciamento por parte do locutor/enunciador.

Na perspectiva rabateliana, esse distanciamento é feito pelo enunciador, haja

vista que ele é o detentor do ponto de vista. Ao distanciar-se de seu enunciado, ou seja,

ao não assumir a RE pelo que está sendo proferido, o enunciador primeiro abre espaço

para um e2 (enunciador segundo), que se torna o responsável pelo ponto de vista.

Assim, vimos que quando ocorre a presença de e2, a autora está tratando de

acontecimentos históricos, o que justifica tratar-se de uma informação advinda de outra

fonte, uma vez que, se são históricos, não se estaria presente no momento em que

aconteceu para se ver com “os próprios olhos”.

No tocante à pessoa que narra/escreve sua própria história, a escritora norte-rio-

grandense se apresenta como uma mulie narrans, existindo para o outro e graças à

coletividade a qual ela pertence, como frisa Rabatel, construindo sua personalidade e

seus valores. Nas páginas do Itinéraire, observamos que Nísia assume sua opinião de

maneira explícita, o que faz com que o principal ponto de vista encontrado, a partir dos

pressupostos rabatelianos, seja o “afirmado”.

O que diferencia o ponto de vista “afirmado” dos outros: “representado” e

“contado”, é que, enquanto o “afirmado” apresenta uma opinião explicitamente

assumida, o “representado” é marcado pela disjunção do locutor e do enunciador e o

“contado” visa o desenrolar dos fatos a partir da perspectiva de um personagem que não

tem um espaço enunciativo particular.

Se o ponto de vista “afirmado” é o que pode ser encontrado com mais frequência

em nosso corpus, isso indica que Nísia Floresta é tanto locutora quanto enunciadora das

cartas que compõem o Itinéraire. Todavia, apesar de Nísia representar, geralmente, o

Locutor e o Enunciador primeiros, também encontramos algumas ocorrências em que a

autora se distancia do seu dizer, denotando, portanto, a presença de e2, detentor do

ponto de vista. Quando isso acontece, temos o ponto de vista “representado”.

Assim, constatamos que nosso corpus apresenta dois tipos de ponto de vista, o

“representado”, quando Nísia Floresta expõe algumas informações históricas,

provenientes de outra fonte, e o “afirmado”, que predomina no Itinéraire, uma vez que

Nísia assume sua opinião de modo explícito e representa Locutor e Enunciador

primeiro.

No que se refere às categorias propostas por Adam, os índices de pessoa e os

dêiticos espaciais e temporais, que conduzem à marcação da assunção da

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Responsabilidade Enunciativa, pudemos encontrar nas cartas analisadas uma grande

ocorrência, contribuindo, portanto, para assinalar que Nísia estava no centro da

enunciação, indicando suas percepções, opiniões, a data e os lugares onde esteve

presente.

Vimos que, de acordo com Benveniste, a pessoa enuncia num determinado

espaço e tempo e que os dêiticos, indicadores de subjetividade no discurso, “refletem” a

existência dos signos que constituem a enunciação, que são locutor (eu), alocutário (tu),

lugar (aqui) e tempo (agora).

As marcas dêiticas estão fortemente presentes em nosso corpus, seja pelo fato de

Nísia Floresta relatar sua própria viagem, fazendo referência ao eu, seja por escrever

cartas direcionadas aos familiares, em que a presença do tu-você está a todo tempo

marcada, seja ainda por registrar sua passagem pelos lugares que percorreu, aqui-agora.

Além das marcas do eu-tu-aqui-agora, encontramos no Itinéraire aspectos de

dêixis no imaginário. Nesse tipo de dêixis não há qualquer evidência real que viabilize o

ato de mostrar, ela ocorre através de uma “evidência”, um “pensamento” compartilhado

por locutor e interlocutor. Trata-se de uma mostração in absentia, portanto, de uma

mostração fictícia. Uma vez que Nísia Floresta estava distante de seus familiares, a

dêixis no imaginário se fez presente em várias passagens desse itinerário pela

Alemanha, pois a norte-rio-grandense “se transportou”, em pensamento, para seu país

natal ou para alguma época do passado ou do futuro.

Logo, respondendo às questões de pesquisa que nos conduziram a empreender

este trabalho, podemos dizer que: i) a assunção da Responsabilidade Enunciativa se

materializa de forma clara no Itinéraire; ii) Uma obra que apresenta os gêneros relato de

viagem, epistolar e autobiográfico contribui para uma maior assunção da

Responsabilidade Enunciativa, como vimos a partir de nosso corpus; iii) O escritor

autobiográfico assume constantemente a RE do que fala ao escrever/discursar sobre sua

vida. Mas, se a obra também abordar outros temas, como a que estamos estudando, é

possível encontrar marcas de não assunção da RE, sendo, portanto, possível encontrar

outro ponto de vista.

Sentimos que o Itinéraire pode servir de base para ser estudado sob outras

perspectivas dentro da temática da RE. Trabalhamos com duas categorias de Adam,

mas, como vimos, o teórico citado nos apresenta oito: 1) os índices de pessoas; 2) os

dêiticos espaciais e temporais; 3) os tempos verbais; 4) as modalidades; 5) os diferentes

tipos de representação da fala; 6) as indicações de quadros mediadores; 7) os fenômenos

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de modalização autonímica; 8) as indicações de um suporte de percepções e de

pensamentos relatados.

Todas essas categorias podem, de alguma forma, ser encontradas em nosso

corpus. Além de abordar o Itinéraire a partir do prisma das categorias de Adam, alguns

pesquisadores poderão investigar a questão dos gêneros presentes nessa obra,

verificando como esses gêneros se apresentam, se o Itinéraire pode ser considerado uma

obra genérica ou intergenérica, pelo fato de apresentar características de diferentes

gêneros, entre outros prismas que podem ser enfocados por futuros pesquisadores.

Com relação à RE, nossa pesquisa apresentou contribuições no que diz respeito

ao estudo dessa temática em um relato de viagem, ou seja, um corpus literário. Esse

estudo se diferencia das pesquisas empreendidas em nosso grupo de estudo sobre a

Análise Textual dos Discursos, da UFRN, que, geralmente abordam a RE em gêneros

acadêmicos ou jurídicos.

Ademais, o fato de o Itinéraire apresentar características de três gêneros

diferentes: relato de viagem, epistolar e autobiografia, fez com que nossa pesquisa

identificasse e descrevesse como a RE se manifesta em três gêneros distintos,

apresentando, portanto, uma maior visão acerca da materialização da RE em diferentes

gêneros.

Destarte, finalizamos esta pesquisa que se propôs a analisar a Responsabilidade

Enunciativa (RE) em Itinéraire d’un Voyage en Allemagne. Concluímos que as marcas

de assunção da RE estão muito presentes e que os gêneros relato de viagem, espistolar e

autobiográfico contribuiram para esse engajamento por parte da escritora norte-rio-

grandense, Nísia Floresta.

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REFERÊNCIAS

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