THAÍS DANIELA SANT’ANA E PEREIRA
ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO:
espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan
ASSIS
THAÍS DANIELA SANT’ANA E PEREIRA
ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO:
espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras, na Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social.
Orientadora: Profa. Dra. Cleide Antonia Rapucci
Sant’Ana e Pereira, Thaís Daniela , 1972–
S232e Entre o porão e sótão: espaços de formação em The wives of Bath, de Susan Swan / Thaís Daniela Sant’Ana e Pereira. – Assis, 2013.
121 f. - fots.
Orientadora: Cleide Antonia Rapucci
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2013.
1. Literatura contemporânea – Canadá. 2. Ficção canadense –Crítica e interpretação. 3. Identidade de gênero na literatura. 4. Susan Swan (1945–). I. Título. II. Universidade Estadual Paulista. III. Faculdade de Ciências e Letras.
Dedico esta dissertação a Theodora e Baslute, pois, parafraseando Susan Swan:
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela vida.
À Professora Doutora Cleide Antonia Rapucci, pela confiança em meu trabalho e
posterior orientação e amizade.
Aos meus pais Theodora e Baslute pelo caminho de formação em que me conduziram.
Em especial a Baslute, que me apresentou muito cedo as Maravilhas do Mundo Antigo e me
fez pensar se os Deuses Eram Astronautas.
Às minhas “mulheres-filhas” Thaís Maria e Victória, por toda a compreensão,
cumplicidade com este projeto e por terem estado aqui.
Ao Fernando, fiel escudeiro, pelo companheirismo.
À Professora Doutora Ana Maria Domingues e à Professora Doutora Sandra
Aparecida Ferreira, membros da Banca de Qualificação deste trabalho, pelo incentivo e pelas
críticas e sugestões à dissertação.
À Professora Doutora Jeane Mari Sant’ Ana Spera, minha tia, pelo incentivo ao
retorno aos caminhos acadêmicos, mesmo que tardiamente.
E a todas as grandes mulheres que fizeram parte de minha construção, Márcias, Ledas,
Rejanes, Ivones, Marlis, Marizas, Kátias, Lucianas, Tânias, e Mazés... “Sisterhood is
Levante-te, filha! Sem mais demora, partamos ao Campo das Letras; é nessa terra
rica e fértil que será fundada a Cidade das Damas, lá onde se encontram tantos frutos
e doces rios, lá onde a terra abunda em tantas coisas boas.
SANT’ ANA e PEREIRA, T. D. ENTRE O PORÃO E O SÓTÃO: espaços de formação em The Wives of Bath, de Susan Swan. 2013. 121 f. Dissertação (Mestrado em Letras). –
Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
RESUMO
Baseada em recentes teorias sobre o Romance de Formação de autoria feminina – Female
Bildungsroman, esta dissertação objetiva estabelecer a relação entre espaço e o romance de formação na obra The Wives of Bath, publicado em 1993, pela autora Canadense Susan Swan. O romance, que revela seu aspecto intertextual em seu próprio título, pretende elucidar como o espaço - um internato para meninas nos arredores de Toronto – simbolicamente representado pelo sótão e pelo porão, é essencial para a construção do processo de formação feminino, através da subversão do gênero literário tradicional Bildungsroman. No primeiro capítulo, a vida e a obra de Susan Swan é estudada, assim como o romance em pauta e sua recepção crítica. No segundo capítulo, são apresentadas as teorias sobre espaço de Gaston Bachelard e de Michel Foucault, além de considerações sobre o romance de formação de autoria feminina. O terceiro capítulo é dedicado à análise, de acordo com as teorias previamente colocadas, e destaca-se, aqui, a relação entre o espaço da escola e o processo de formação de Mary Beatrice Bradford, a protagonista. Por último, mas não menos importante, esse estudo mostra o poder da literatura como forma de evidenciar a quebra do emudecimento das mulheres na formação de suas identidades femininas.
SANT’ ANA e PEREIRA, T. D. BETWEEN BASEMENT AND ATTIC: formation spaces in Susan Swan’s The Wives of Bath. 2013. 121 p. Dissertation (Master in Literature).
- Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
ABSTRACT
This dissertation is grounded on recent theories about Female Bildungsroman or novels of education in a feminist perspective. It aims at establishing the relationship between space and the novel of education in the novel The Wives of Bath, published in 1993 by the Canadian author Susan Swan. The novel, revealing its intertextual aspect by its title, focuses on shedding a light on how the space – a girls’ boarding school on the outskirts of Toronto – symbolically represented by the attic and the basement is essential to build a female formation process subverting the traditional genre itself. In the first chapter, life and work of Susan Swan are studied, as well as the novel and its critical reception. In the second chapter, the theories concerning spaces by Gaston Bachelard and Michel Foucault and also the theories on the female Bildungsromane are covered. The third chapter is focused on the analysis according to the relation observed between the spaces and the formative process of Mary Beatrice Bradford – the protagonist. At last but not least, the intention of this dissertation is to spread the power of literature as a way of evidencing the muting breaking of women in the formation of their feminine identities.
Key-words: Contemporary Canadian Literature; Susan Swan; The Wives of Bath; Female
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 10
CAPÍTULO 1: A escrita de Susan Swan... 15
1.1 Susan Swan, vida e obra... 16
1.2. Susan Swan e o romance The Wives of Bath ... 22
1.3. The Wives of Bath, o romance... 27
1.3.1. A recepção da obra... 30
1.3.2. The Wives of Bath & The Wife of Bath’s Tale: um diálogo no tempo e no espaço... 32
1.4. A obra, um resumo expandido... 38
CAPÍTULO 2: The Wives of Bath, um espaço no romance de formação de autoria feminina... 45
2.1. O espaço, um elemento fundamental no processo de formação... 46
2.1.1. O espaço para Bachelard e Foucault... 49
2.2. The Wives of Bath, uma possibilidade de Bildungsroman?... 52
2.3. O romance de formação de autoria feminina... 57
CAPÍTULO 3: De Mary Beatrice a Mouse, uma (trans)formação em processo... 64
3.1. O espaço (trans)formador em The Wives of Bath... 66
3.1.1. O espaço e as personagens: um entre-lugar para entre-mulheres... 70
3.2. Entre o porão e o sótão: territórios do pertencer... 76
3.2.1. O quarto... 77
3.2.2. A escada... 80
3.2.3. A enfermaria... 81
3.2.4. O porão... 83
3.2.4.1 Os túneis de aquecimento... 85
3.3. Sótão e porão: entornos... 86
3.3.1. A escola... 86
3.3.2. A ravina... 90
3.3.3. O cemitério... 92
3.3.4. O tribunal... 94
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 101
ANEXOS... 108
Anexo A... 109
Anexo B... 114
Anexo C... 118
De acordo com Linda Hutcheon (1988), a subjetividade é entendida como o produto
feminino das leituras. Tal produção de sentidos levou-me, como leitora de romances de
Língua Inglesa, à Literatura Canadense Contemporânea, especificamente a Susan Swan e suas
obras, por ser uma escritora de confirmado engajamento com as questões de gênero e da
mulher na pós-modernidade.
Vale ressaltar ainda, como um aspecto introdutório, que o meu interesse pelo trabalho
da romancista Susan Swan e sua obra teve início com o encontro, e posterior estudo, do conto
The Man Doll e seu viés androgênico. Após essa significativa relação, cujo fruto foi a
publicação de um capítulo de livro contendo um extrato do conto, autorizado pela autora,
senti-me motivada a escolher um dos romances de Swan como objeto de estudo.
A escolha recaiu em The Wives of Bath (1993), devido a seus personagens instigantes
e, principalmente, por promover uma possibilidade de leitura na esteira do romance de
formação de autoria feminina, um dos gêneros de minha preferência. Além disso, a obra é
pouco explorada academicamente, o que propicia a abertura de um leque de estudos ainda não
marcados por análises e subjetividades prévias.
O romance The Wives of Bath1 aborda em sua trama narrativa a questão da construção
da identidade da personagem Mary Beatrice Bradford. Esta dissertação pretende, pois,
verificar a possibilidade de transgressão do gênero literário Bildungsroman (romance de
formação) tradicional, por um romance de formação de autoria feminina, assumindo como
pressuposto para tal análise a ideia de que o Bildungsroman feminino adapta ou reescreve
topos geralmente masculinos, mas do ponto de vista marginalizado da escrita da mulher.
Com base nos estudos de Maas (2000) e Pinto (1990), fizemos uma leitura da forma
subversiva com que a autora tece o processo de formação – ou de aprendizagem – da
personagem Mary Beatrice Bradford, ou Mouse, ou ainda Mouse Bradford. Verificamos,
ainda, as estratégias de apropriação do gênero literário em uma perspectiva transgressora
sugerida por Swan em todos os seus escritos.
Nessas considerações, ganha destaque o exame da função que a relação com o espaço
exerce em tal processo de formação. Buscamos, nas autoras supracitadas, o embasamento
teórico para uma possibilidade de efetivação e revisão de tal gênero, sob o ponto de vista
denunciativo de uma sociedade canadense patriarcal, a partir da própria experiência da
personagem.
Sobre a autora e a obra em pauta, publicada em 1993, é consenso que Susan Swan
congrega suas observações objetivas e subjetivas sobre a condição da mulher. Assim,
ambientado em um internato chamado Bath Ladies College, nas redondezas de Toronto, na
década de 60, a adolescente Mouse Bradford relata o período em que experienciou a incerteza
e o conflito identitário de viver em uma época, nas palavras da adolescente, em que ser um
homem seria muito mais divertido.
Mouse carrega a incerteza de saber o que seria identidade e procura identificar-se nas
relações espaciais. O parágrafo a seguir destaca a ligação da identidade com sua questão
espacial:
Pelo menos essas pessoas da cidade de aparência triste sabem que pertencem a algum lugar. Eles tem uma identidade. Embora eu tenha que admitir que eu não entenda o que seja identidade. Por um lado, é o que faz você diferente do resto do mundo (que é o que Alice faz pra mim).2 (p.128)
A heroína pós-moderna de Susan Swan é retratada de tal forma que é perceptível a
existência de traços semânticos no texto que remetem a uma alteração da percepção
convencional de aspectos do mundo. Nesse sentido, destaca-se o estabelecimento das relações
2 “At least these sad-looking city people knew they belonged somewhere. They had and identity. Although I have to admit, I don’t really understand what an identity is. For one thing, it’s what makes you different from the rest of the world (which is what Alice does for me).” As traduções utilizadas neste trabalho foram feitas pela autora da pesquisa.
afetivas e suas significações alternativas, que permitem constatar a relação entre formação e
espaço em circunstâncias e lugares imaginários ou reais.
Com o objetivo de depreender a construção dos sentidos, a partir da ressignificação do
espaço cotidiano, espaço esse marcado ideologicamente pelos semas do patriarcalismo e do
inconformismo, o romance encaminha-se na contramão dessa via redutora e instaura o embate
desestabilizador das convenções, exemplificado na própria casa de Mary Beatrice. De fato, o
elemento desestabilizador aí observado está expresso por meio do domínio exercido pela
madrasta, Sal, sobre seu pai Morley. Para bem conduzir esse embate, o romance subverte o
espaço do colégio interno para meninas – inicialmente com objetivos de dominação masculina
– para a formação de fidalgas cristãs3, tornando tal espaço a antítese desse propósito: um
local em que mulheres questionam suas posturas, suas condições e suas aparências.
No primeiro capítulo desta dissertação, intitulado “A escrita de Susan Swan”, uma
trajetória biográfica de Susan Swan foi abordada, bem como a fortuna crítica de suas obras e
seu engajamento com o projeto feminista. Essa preocupação deve-se ao fato de a autora,
apesar de muito prestigiada, é ainda pouco estudada no Brasil. Ainda nesse capítulo, para
tratar da Literatura Canadense Contemporânea e do engajamento na crítica feminista, as
proposições de Linda Hutcheon e Susana Funck foram discutidas.
No segundo capítulo, “The Wives of Bath e o romance de formação de autoria
feminina”, discutiremos o embasamento teórico a respeito do tema. O gênero Bildungsroman
ou romance de formação é abordado desde seu surgimento, como tradicional, até a sua revisão
pela narrativa de autoria feminina em suas funções e elementos constituintes. Nesse ponto,
destaca-se o espaço e sua atuação preponderante na análise do processo de formação da
personagem Mouse Bradford. Para a discussão teórica do Bildungsroman tradicional e do
Romance de Formação de autoria feminina, foram utilizados os estudos de Mikhail Bakhtin,
Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas e Cristina Ferreira Pinto.
No terceiro capítulo, “De Mary Beatrice Bradford a Mouse Bradford, uma
escolha em processo”, foi feito o estudo do espaço como elemento constituinte no processo de
formação. A análise da personagem de Swan e a relação com os espaços do internato, para
seu processo de formação, têm por base os conceitos de Gaston Bachelard. Ainda neste
terceiro capítulo, aspectos intertextuais e simbólicos são abordados, em razão da relevância
que adquirem na análise da obra em sua totalidade.
Esta dissertação objetiva, enfim, destacar a forma como o espaço agirá sobre a
personagem em seu processo de formação. Entendemos esse processo como estratégia
intencional desenvolvida pela autora para, por meio do repertório criativo e literário adotado,
promover, além da intertextualidade, uma leitura do inconformismo, da insatisfação, da
ruptura deflagrada pela sociedade na qual a protagonista está inserida.
CAPÍTULO 1
1.1.
Susan Swan, vida e obraA criação literária não se realiza num universo adâmico, sob o signo de uma espontaneidade e de um primitivismo absolutos, em que apenas figurariam como factores necessários um instrumento linguístico e um desígnio expressivo. A criação literária perfaz-se no seio de uma tradição técnico-literária e histórico-cultural, cujos valores e cujas forças o escritor não pode desconhecer, quer para os aceitar e revitalizar, quer para os negar, os contestar, os alterar mais ou menos substancialmente.
Vitor Manuel de Aguiar e Silva
Em 1967, Susan Swan está prestes a escrever seu primeiro romance, fruto de seu
projeto de conclusão do Mestrado em Língua Inglesa, mas seu pai falece. Tal circunstância a
leva a abandonar a ideia de tornar-se escritora e optar por uma carreira que lhe rendesse
melhores condições de vida. Inicia, então, sua carreira jornalística, apenas com a graduação
em Escrita Criativa pela Universidade McGill. Mesmo atuando como jornalista, a escritora
Swan tem sua primeira obra de ficção publicada em 1975, The Waterbed Syndrome,
evidenciando, assim, seu atributo de romancista, anteriormente negado pelas circunstâncias da
vida.
Nascida em Midland, Ontário, em 1945, Swan foi aluna de um internato em Toronto,
de 1959 a 1963, fato que mais tarde a inspiraria a produzir o romance The Wives of Bath. Nos
anos 80, Swan retorna à vida acadêmica, depois de publicar inúmeros romances, poemas e
artigos não ficcionais aclamados pela crítica internacional, e começa a atuar como professora
de Escrita Criativa na Universidade de York até 2007, quando se aposenta para se dedicar
exclusivamente à sua ficção. Susan consegue alçar altos voos e alcança a Presidência da
União dos Escritores do Canadá em 2006, posto que ocupa até 2008.
Nesse particular, vale lembrar que Hutcheon (1991) aponta a dupla colonização do
literatura pós-moderna canadense. Susan, realmente, irá confrontar-se com tais marcas e dar
voz às minorias de sua terra ao retratar, em suas obras, por exemplo, uma mulher gigante que
nunca havia sido nomeada na história de seu país4.
Dessa forma, comprova-se que a então escritora Swan faz eco a uma voz
contemporânea tradutora de um sujeito portador de uma voz minoritária: mulheres
duplamente colonizadas e descontentes com as imposições patriarcais.
Para contextualizar seu engajamento com a crítica feminista, de acordo com Xavier
(1999, p. 20), é preciso enxergar que foi necessário “interferir no estabelecido, questionando
hierarquias, valores, enfim, o tão propalado cânone” e promover, em consequência, a
flexibilização deste cânone. Swan intervém conscientemente na história literária e infere, em
uma série de observações, os valores de um determinado tempo histórico canadense,
deslegitimizando o papel subserviente atribuído ao colonizado. (FUNCK, 1997, p.126)
Rita Therezinha Schimdt, em seu artigo “Literatura e Feminismo”: propostas teóricas
e reflexões críticas, pode ser citada para reiterar as ideias de Swan sobre o cânone, sua
conceituação e, decorrente disso, das formas de extrapolação do mesmo.
[...] não se constitui, todavia, através de um processo espontâneo e gratuito, mas é resultado de valorações dentro de um contexto em que muitos fatores entram em jogo, como, por exemplo, gênero literário prestigiado e estilo predominante numa época, mas cuja base reside no discurso crítico proveniente de uma comunidade interpretativa homogênea e abalizada, ou seja, os críticos, o que significa dizer que a constituição de um cânone é, em larga medida, uma decorrência do poder do discurso crítico e das instituições que o abrigam. (SCHMIDT, 1999, p.38).
Nessa instância de criação, Swan publicou vários artigos e romances, dentre as quais
destacamos: A housewife with mean memories (1970), Sluts (1987), Why Feminism is the
word (1994), Re-inventing Men (1994), Feminist Humor – the new Black satire (1996), For
Sappho’s Women (1997), Casanova the feminist (1998) e tantos outros que remetem à não
alimentação da tradição crítica androcêntrica.
A romancista, jornalista e professora Susan Swan teve sua prática literária
declaradamente engajada na crítica feminista, consagrada a partir de sua obra Unfit for
Paradise, uma coletânea de contos publicada em 1982.
Em 1983, Susan publica seu primeiro romance, The Biggest Modern Woman of World,
obra destacada na carreira da autora. Conforme informado pelo website do Festival de
Literatura de Berlim de 2012:
Seu primeiro romance The Biggest Modern Woman of the World, agora um clássico canadense, é sobre uma mulher nada comum. Ele retrata a história de vida da gigante Anna Swan (1846-1888), que é colocada em exibição em Nova York como a “maior mulher no mundo” e se torna internacionalmente famosa. Mas quando ela mais tarde quer levar uma vida “normal” no Meio-Oeste, ela percebe que não está satisfeita com as convenções de seu tempo. Swan descreve a mulher gigante como uma figura mítica, muito mais que literalmente “grande demais” para a limitação do papel de mulher em um mundo dominado pelos homens.5
Em 1989, publica The Last of the Golden Girl, um romance em que três adolescentes
canadenses descobrem o sexo em 1959 e continuam a se comportar como adolescentes
descontroladas em seus impulsos sexuais até o final dos anos 60; em 1992, publica Mothers
Talk Back, uma coletânea de 15 entrevistas com mulheres canadenses, mães brancas e negras,
pobres, lésbicas e, até mesmo, um homem que diz ter assumido o papel de mãe. Essas pessoas
compartilham suas frustrações e dificuldades sobre o processo de maternagem, o que, de
5Her first novel 'The Biggest Modern Woman of the World', now a classic in Canada, is indeed about an unusual
woman. It tells the life story of the giant Anna Swan (1846–1888), who is put on exhibition in New York as the “largest woman in the world” and becomes internationally famous. But when she later wants to lead a “normal” life in the Midwest, she realizes that she is not satisfied with the conventions of the time. Swan describes the giant woman as a mythical figure, who is more than just literally “too big” for the confines of a woman’s role in a male-dominated world.
acordo com o blog da autora, “celebra o heroísmo calado das mães.” Em 1993, The Wives of
Bath – obra analisada nesta dissertação; em 1999, a coletânea de contos Stupid Boys Are
Good to Relax With – obra em que a autora retoma a personagem Mouse do romance
anteriormente citado e aqui estudado.
Em 2000, a autora é convidada para ser a roteirista do filme Lost and Delirius, uma
adaptação fílmica de The Wives of Bath, lançado em 32 países e distribuído no Brasil com o
título de Assunto de Meninas6. Em 2012, The Wives of Bath é lançado no formato de livro
eletrônico e, ainda no mesmo ano, seu mais recente romance, The Western Light, é lançado
como uma história anterior a de The Wives of Bath. The Western Light compartilha a mesma
protagonista, a heroína Mouse Bradford, apontada por Susan Swan, em 2012, como sua
autorrepresentação.
Em 2004, Swan publica o romance What Casanova Told Me, obra que ilustra a
influência do passado no presente através de lições de viagem de uma dupla que sai de
Veneza e vai a Istambul.
No Brasil, a despeito dos poucos trabalhos sobre a autora, destacam-se estudos feitos
por Susana Bornéo Funck, primeiramente com a tradução de The Man Doll, em 1998, texto
incorporado à obra Ficções do Canadá Contemporâneo – Contos Escolhidos, e o capítulo
Apropriações do grotesco e do picaresco em Susan Swan e Aritha Van Kerk, no livro
Recortes Transculturais, de 1997. Nesse estudo, Funck analisa a obra The Biggest Modern
Woman in the World. Há, ainda, os estudos e publicações de André Pereira Feitosa,
destacando-se sua tese de doutorado intitulada Mulheres-monstro e espetáculos circenses: o
grotesco nas narrativas de Angela Carter, Lya Luft e Susan Swan e os estudos da
pesquisadora desta dissertação sobre o conto The Man Doll, publicado em Stupid Boys Are
Good to Relax With. Esse estudo gerou o capítulo 7 do trabalho: Uma tentativa androgênica
em “The Man Doll”, de Susan Swan, publicado no livro Mundos Gendrados
Alternativamente, pela Edufal – Editora da Universidade Federal do Alagoas, em 2011. Nessa
publicação, como parte de nossa análise, foi publicada, com a licença da autora Susan Swan,
um excerto original do conto.
Atualmente, a autora é considerada uma grande mentora da Literatura Canadense,
atuando como colunista do jornal canadense The Globe and Mail e da revista Chatelaine.
Swan tem sido citada e publicada mundialmente. Importante ressaltar que pudemos
estabelecer uma relação virtual com Susan Swan e enviando textos e emails.
De acordo com Funck (apud PEREIRA, 2011, p.135), Susan Swan pertence a uma
geração de escritores cuja ficção experimental e inovadora provou ser vital para o projeto de
re/des/construção da prática narrativa. Em suas palavras: “o romance de Susan é instrumental
no projeto contemporâneo de questionar a natureza da representação através do desafio,
através da paródia, dos dogmas do realismo”.7 (FUNCK, 1994, p.16).
De fato, Susan Swan se enquadra no que Kamuf (apud HUTCHEON, 1991, p.35)
aponta em A Poética do Pós-Modernismo: “as mulheres ajudaram a desenvolver a valorização
das margens e do excêntrico como uma saída com relação à problemática de poder dos
centros e às oposições entre masculino e feminino.”
Funck (1997; p.116) ainda levanta a afirmação de que “não é de surpreender, portanto,
que, na literatura canadense contemporânea, a questão da subjetividade nacional se encontre
intimamente ligada ao projeto feminista”. Dessa forma, entendemos tratar-se de um sujeito
emergente do feminismo que, de acordo com Hutcheon (1991), tem seu enfoque nas
representações culturais e apresenta paralelos com as preocupações da literatura pós-colonial.
Tal luta anticolonialista nos fornece dados para o entendimento de uma dupla colonização
canadense – o sistema patriarcal de exploração de mulheres pertencente ao sistema colonial e
também, no caso específico do país, ao sistema indígena canadense8 – que promove o
engajamento da autora na perspectiva feminista, lançando mão de uma literatura como medida
de autoafirmação do país e da materialidade do discurso enquanto repositório de valores.
Nas palavras de Hutcheon, na obra The Canadian Postmodern (apud FUNCK, 1997,
p.116), “as mulheres escritoras em geral, como as romancistas canadenses, sentem a
necessidade de retornar ao passado, conhecer seus mitos históricos para poderem
contestá-los”. De fato, Swan revisita, especificamente em The Wives of Bath, o internato onde declara
ter estudado, imprimindo, assim, matizes autobiográficos a sua obra.
Swan congrega em suas obras suas observações objetivas, subjetivas, enfim, seus
sistemas de ideias que constituem uma rede de intenções sobre um topos sempre revisitado – a
condição da mulher -, argumentando sobre questões engajadas, tais como aspectos da
sexualidade, identidade sexual e representação da mulher. Fato esse que, para Elódia Xavier,
(1999), é denotativo da subjetividade feminina e sua escritura, como se pode constatar em:
O feminismo instaurou um modo particular de ver o mundo, que revela o princípio arbitrário, não natural da realidade; masculino e feminino, em sua historicidade dinâmica, passam a ser identidades sociais, configuradas ao longo de processos de significação. (XAVIER,1999)
De acordo com Pinto (1990, p.19), citando Gilbert e Gubar, “a mulher escritora, em
geral, sempre enfocou em sua obra experiências eminentemente femininas e a partir de uma
perspectiva feminina.” Em tal esteira, podemos notar a preocupação de Swan em refletir
sobre a condição da mulher, sobre como situar sua presença como sujeito, sobre uma
identidade feminina e sua integração social, que foca o distanciamento do modelo masculino,
principalmente, quanto ao desfecho das narrativas tradicionais nos romances de formação.
Esse fato reitera o engajamento da autora no projeto feminista e na intencionalidade de inserir
suas obras em uma perspectiva subversiva contemporânea dos gêneros canônicos.
1.2. Susan Swan e o romance The Wives of Bath
Susan Swan registra no cânone da Literatura Canadense a experiência de uma
adolescente e seu crescimento identitário na obra The Wives of Bath, um romance para fora do
universo falocêntrico, subvertendo, desta forma, a estrutura canônica tradicional e
masculinizada de literatura de formação.
Essa obra representa a experiência, sensibilizando-a sem propor hipóteses
totalizadoras, mas, de acordo com os conceitos de Hutcheon (1991, p.19) sobre a
pós-modernidade, se enquadra na proposição de constituir a contradição aos padrões. Tais
transgressões às normas são traços caracterizadores do pós-modernismo, e cujo período de
surgimento coincide com a própria história no romance de Swan, visto que a autora contesta
também em sua obra “as noções ingênuas de representação”.
De acordo com o artigo We So Seldom Look on Love, de Laurei Muchnick (1994, p.4),
publicado na revista Belles Lettres: A review of Books by Women, o romance descreve um
contexto da protagonista Mouse da seguinte forma:
uma mulher, e ela segue Paulie, sobretudo em um recém-descoberto deleite em quebrar as regras da escola.9
Ao discorrer sobre questões que abordam o tema da identidade sexual e da
representação da mulher, o autor destaca, nessa argumentação, uma possibilidade
transgressora do romance de formação, ou Bildungsroman.
Nesse sentido, e de acordo com Funck (1994), Susan é possuidora de um engajamento
consciente em seu contexto histórico e social: objetiva desestabilizar e subverter modelos de
crença aceitos, por meio da reconceituação da narração de possíveis subjetividades.10 Assim,
propomos discutir a tessitura do romance de formação suscitada pela personagem Mary
Beatrice Bradford. Nessa discussão, esperamos apontar uma flagrante inversão de papéis de
gênero e uma desestabilização dos padrões sócio-históricos, marcadamente patriarcais, por
meio da subjetividade promovida pela autora. Tal procedimento pode ser verificado na
construção da personagem que vem sendo dominada por uma imperativa existência
masculina, além de ser portadora de expressão singular, uma garota de 13 anos que questiona
sua construção identitária.
Nesse particular, em seu website11, Susan Swan comenta sua obra e seu diferente
estilo de representação, afirmando que o romance, de humor negro, envolve um assassinato
em um internato dos anos 60. Devido ao fato de as personagens Mouse e Paulie, colegas de
9“ The teachers are lesbians, the janitor is a dwarf, and one of her roommates, Paulie, dresses up like a boy and convinces everyone that she is bet own brother. In masculine garb, Paulie dates her roommate, Tory, and Mouse is never really sure whether Tory knows that her boyfriend and her roommate are the same person. But Paulie is not interested in being a lesbian; she really wants to be a boy, and Mouse falls in with her cult of masculinity, which worships King Kong as the apex of manhood. Like many girls her age, Mouse is afraid of her own body, and her horror is fueled by the fact that she really is misshapen. She does not want to be a boy as much as she want to avoid becoming a woman, and she follows Paulie mostly out of a newfound zest for breaking school rules.”
10“ aims at destabilizing and subverting accepted patterns of belief by reconceptualizing and narrating possible subjectivities.”
quarto, não quererem crescer como mulheres, Paulie força Mouse a uma série de testes para
provar sua masculinidade, o que acaba indo longe demais.12
A obra, de fato, subverte o conceito do Bildungsroman tradicional, razão pela qual
Susan sugere que situações circunstanciadas podem também definir e apontar vidas para
novas direções. O romance é marcado por uma postura corrosiva e irônica na representação
dos desvios à norma efetuados por uma sociedade estruturada em bases patriarcais, mas sob
uma camada tênue de civilidade. A obra empreende, ainda, a análise do comportamento de
Mouse – Mary Beatrice Bradford – por meio de uma abordagem psicológica e social, própria
da narração de costumes contemporâneos.
Na trama narrativa homodiegética, temos a sugestão da instauração da criatura dupla,
dual, e o processo de desencadeamento da personagem, na permanência hesitante dessas
personificações.
Nessa produção de Susan Swan, observamos sua máxima eficiência de expressão da
dimensão feminista da obra, sobretudo devido ao fato de o título da mesma ser a forma
pluralizada do conto de Chaucer, The Wife of Bath Tale, do livro The Canterbury Tales.
Importa observar que esse conto é evidenciado como um dos primeiros contos a se configurar
como feminista, devido ao fato de a personagem do título A Mulher de Bath ser a única
representante feminina na caravana de homens; além disso, dá projeção ao caráter subversivo
assumido pela protagonista/narradora.
Ora, conforme afirmações de Brait (1996), o título funciona como signo de uma
proposição, como um emblema que será reiterado e ampliado na narrativa. De fato, o romance
em análise deflagra a pretensão de romper com a unicidade do ser, propondo a alternância e,
ao mesmo tempo, a coexistência da dualidade feminino/masculino por um período de tempo
em um determinado espaço. No entanto, o nome da personagem Mary Beatrice Bradford –
“A darkly humorous story involving a murder in a girls’ boarding school in the 1960’s. Neither Mouse
Mouse – assume uma função identitária, no qual podemos depreender alguns significados:
mouse, em português, é rato, cujo conceito se funde no texto, por meio da figura simbólica do
rato. Para Chevalier e Gheerbrant (1994, p.770), é considerado animal “esfomeado, prolífico e
noturno, caracterizador da subversividade no sentido de corroer a ordem e estabelecer o caos e
o terror”. É justamente esta a nossa hipótese interpretativa de significar na obra a negação da
ordem do feminino, o que, para Oliveira (1992), seria “o avesso ou a imitação do masculino”.
Essa seria uma leitura legitimada pela obra e pelo projeto de escritura feminista da autora,
pois evoca inúmeras vozes pós-modernas que, de acordo com Hutcheon (1991), não são
inteiramente localizáveis no universo textual. Mas o que essa suposição também faz, de forma
literal, é começar a “teorizar” sobre o instigante rótulo de heroína problemática que pode ser
aplicado à personagem.
A adolescente de Swan deseja remodelar uma realidade ruim por uma realidade outra
que seja boa e, nesse quadro, se configura em um processo de dúvida sobre sua própria
identidade, podendo até ser considerada uma utopista que “não aceita o mundo que encontra,
não se satisfaz com as possibilidades atualmente existentes: sonha, antecipa, projeta,
experimenta.” ( SZACHI,1972, p.12), ou até mesmo uma anti-utopista que almeja o caos, ou
uma existência distópica.
Condizente com os conceitos de gênero formulados por Oliveira (1992), a personagem
parece ser constituída pela dualidade masculino/feminino, no início de seu processo de
formação, pela ilusão da delicadeza e fragilidade feminina, pela sensibilidade e intuição e,
durante o processo, pela ambição masculina de poder e de dominação, em um movimento
revelador da precariedade humana. A única configuração que possibilitaria uma reconciliação
entre este duplo ser, entre feminizar e masculinizar, é o fato insólito da negação do espaço
público feminino para o espaço privado masculino, ou seja, Mary Beatrice Bradford – a
masculino, o menino Nick, seu alter-ego, – continuaria perambulando pelas sombras do
porão, espaços esses que se configurarão como seus espaços de formação.
Nick, o Grego, reveste-se dos atributos caracterizadores do universo masculino,
através do vestuário usado nos ambientes sombrios da escola e em suas saídas noturnas pelo
caminho da ravina na companhia da figura de seu mentor, Lewis. Em vários excertos da obra,
é possível confirmar tal consideração: “Eu era um menino. Minhas roupas diziam isso.”
(SWAN, 1993, p.121)13, ou em:
Roupas de mulheres, como dizia Lewis, eram como não usar nada, mas roupas de homens eram encomendadas, sob-medida, e faziam você se sentir fortalecido. E ele estava certo. Apenas colocar um terno e uma gravata muda você. Você se sente no controle e em paz com o mundo. E os sapatos de homem ajudam também. Eles são mais pesados, daí você se sente sólido – enraizado no chão. (SWAN, 1999, p.120)14
Mediada pelas articulações do acontecer, a personagem, em busca de sua totalidade,
cindida e desassossegada por sua dualidade, envolvida em alguns acontecimentos nada
casuais e da ordem do medo, começa a questionar sua alternância hesitante de identidade. E o
centro disso se dá na afirmação da personagem: “Tenho 16 anos agora, quase uma adulta,
embora ser uma garota seja a coisa mais difícil na terra verde de Deus, não é de todo ruim
uma vez que você pegue o jeito.”15 . A personagem começa a ser consumida pela sua própria
dúvida identitária, e o processo de formação se dá à medida que a unificação de ambos os
espaços, porão e sótão, acontece com a morte do jardineiro do colégio. Essa morte é uma
consequência do ato de sua mentora Pauline, o que promove em Mary Beatrice o desejo de
13 “I was a boy. My clothes said so.” (p. 121)
14 “Girl’s clothes, Lewis said, were like wearing nothing, but men’s clothes were tailored and made you feel propped up. And he was right. Just putting on a suit and tie changes you. You fell in control and at ease with the world. And men’s shoes help, too. They’re heavier, so you feel solid – rooted to the ground.” p.121
assumir sua identidade como mulher no espaço público, visto que, anteriormente, o espaço de
negação de sua identidade era apenas o privado porão.
1.3. The Wives of Bath, o romance
O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento.
Georg Lukács
Lukács (2009, p.55) define o romance como “a epopeia de uma era para a qual a
totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do
sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.”
Em relação à sua constituição, o autor afirma que:
A composição do romance é uma fusão paradoxal de componentes heterogêneos e descontínuos numa organicidade constantemente revogada. As relações que mantêm a coesão dos componentes abstratos são, em pureza abstrata, formais: eis por que o princípio unificador tem de ser a ética da subjetividade criadora que se torna nítida no conteúdo.” (LUKACS, 2009, p. 85)
Tal ética da subjetividade criadora tem norteado, a nosso ver, a construção da trama
narrativa em Swan, pois, em sua trama narrativa – que abarca a forma teatral, um núcleo
epistolar e a forma dramática – a autora constrói uma transformação do código, ou do
romance, historicamente masculino, plasmando elementos heterogêneos de ambos os gêneros.
The Wives of Bath inicia com uma epígrafe, extraída do prólogo do The Wife of Bath
Tale, de Geoffrey Chaucer, que insere instantaneamente a obra em um contexto pelo menos
em um exemplum profano: “Diga-me também, para que finalidade foram os órgãos
reprodutores feitos e projetados por tão generoso criador?”16
Após a epígrafe, o volume é dividido em três fragmentos, o Fragmento Um, que
compreende os capítulos 1 a 35; o Fragmento Dois, os capítulos 35 a 41, e o Fragmento Três,
os capítulos 42 a 52. A narradora e personagem principal, Mouse, inicia a obra com a
proposição de alternância identitária traduzida pelas variações de seu nome e das quatro
formas como aparece na obra. Meunome é Mouse – Mouse Bradford. Mary Beatrice
Bradford, se eu quiser ser prolixa sobre isso. (SWAN, 1998, p.5).17 A garota, agora com
dezesseis anos, relata seu trajeto, sua via-crucis pelo processo de formação que se instaura, ao
ser sutilmente forçada pela madrasta a entrar aos 14 anos para o quadro de meninas de Bath
Ladies College – um colégio interno nos arredores de Toronto – e ter como colegas de quarto
a jovem Pauline Sykes e seu duplo, o jardineiro Lewis, além de Victoria Quinn, a namorada
de Lewis.
Mouse carrega consigo as marcas de um pai vivo e ausente; e de uma mãe morta,
porém presente em suas rememorações e em sua corcunda, que tem o mesmo nome de sua
mãe, Alice. Além disso, funciona como seu superego, em uma espécie de diálogo consigo
mesma. A diferenciação se apresenta apenas pelo fato de que mães não contam piadas
indecentes: “Até então eu tenho que permanecer aqui em Point Edward com meu tio e minha
companheira Alice, que é como uma mãe para mim. Exceto pelo fato de que nenhuma mãe
que eu conheço conta piadas indecentes. (SWAN, 1993, p.8)18. Alice pode ser entendida
como um desdobramento de sua entidade mental, um interlocutor virtual ou imaginário.
Para tanto, a protagonista considera sua marca não como uma alteração em seu corpo, mas como um ser que lhe faz companhia e que, por muitas vezes, reaviva a sua ideia inicial
sobre as dificuldades em ser mulher, o que se pode verificar nos diálogos estabelecidos com esse propósito.
- Alice, você sabe que eu nunca quis me tornar uma mulher. - Eu sei, mas você também não quis ser um homem.
- Bem, não exatamente. Eu queria tudo o que um homem tem, exceto seu pênis.19 (SWAN, 1993, p.47)
E também, na seguinte passagem, afirma que a madrasta Sal, em seus preceitos e
provérbios cheios de senso comum, não ocupa o lugar da mãe Alice:
- Isso me lembra algo. Por que as garotas contam piadas sobre as partes íntimas dos garotos - Isso não ajuda muito. Sabendo que eu não tenho uma mãe de verdade. Você sabe que eu não posso contar com Sal. (SWAN, 1993, p.47)20
A interação com suas colegas de quarto é então estabelecida e Mouse passa a conhecer
quem verdadeiramente é Pauline, a sua tentativa de ser outra pessoa e as razões para isso.
Mouse constata que Pauline ama Victoria, e esse amor só poderia ser aceito pela família da
garota se Pauline fosse um rapaz. Esse fato desencadeia os atos desesperados de Pauline:
traveste-se em um baile na presença de todos os pais da escola, mas não tem êxito na tentativa
de anunciar o namoro com Victoria; após brigar com o zelador (anão) da escola, no espaço do
porão, e empurrá-lo pelos canos aquecidos, Pauline corta o pênis do anão já ferido, para
posterior implantação em si mesma com uma espécie de cola. Depois disso, começa a gritar
que “agora” era um menino. Interessante observar que Mouse, filha de um médico, carregava
consigo a maleta de instrumentação cirúrgica de seu pai e um manual de anatomia. São,
portanto, encontrados em posse de Pauline um bisturi e uma página do livro de anatomia que
trata do órgão sexual masculino e da forma como os procedimentos de extração deveriam ser
executados.
19 “- Alice, you know I never wanted to become a woman. - I know, but you didn´t want to become a man, either.
- Well, not exactly. I wanted everything a man has except his penis.” 20 “- That reminds me. Why don’t girls tell jokes about boys’ private parts?
O final do romance é relatado, pela protagonista, como lembranças recentes de uma
ocorrência. Pauline é condenada e julgada insana, mas sem um acordo dos psiquiatras sobre o
que seria tal doença. E Mouse afirma que Pauline não fez aquilo por ter inveja dos homens,
mas por não respeitar as mulheres.
1.3.1. A recepção da obra
O romance, publicado em 1993, obteve, ainda no mesmo ano, várias críticas positivas.
Em “Publishers Weekly”, de 19 de Julho de 1993, o romance é visto como um descritor de
um ano crucial na vida de duas garotas canadenses ao iniciarem a jornada tempestuosa em
direção à vida adulta. Aponta ainda que a autora descreve a desorientação das jovens e
sensíveis mulheres lutando para entender seus papéis sexuais em um ambiente hostil.
Ainda no mesmo ano, Julie Wheelright, em sua resenha publicada na página 40 do
“New Statement &Society”, em 15 de Outubro de 1993, afirma que o romance, em
decorrência de seu clímax dramático, evidencia uma conclusão inevitável para as frustrações
de Pauline, sobretudo após a exclusão do “privilégio” masculino, e a deixa com as
observações espirituosas de Mouse, resultando em uma trama que propicia uma reflexão sobre
os dilemas de ser mulher.
O apontamento reincidente sobre a obra é sempre o mesmo. Afirma-se o conteúdo
corrosivo da temática feminista e a forma como é tratada, além do talento narrativo da autora
na construção das personagens e na multiplicidade de discursos que as compõem: registro
linguístico de adolescentes, cartas, linguagem forense, jargão médico e os repertórios musical
No artigo “Really much nicer than men”, publicado no The Times, em 29 de
Novembro de 1993, Christina Koning descreve The Wives of Bath como pertencente a “um
mundo em que os homens tornaram-se, se não totalmente prescindíveis, então certamente
periféricos à ação”, e afirma ainda que o romance permitiu à autora “fazer observações
cáusticas sobre a diferença de gênero”.
Com o lançamento recente do livro The Western Light que, segundo a autora, antecede
The Wives of Bath, o website do Festival de Literatura de Berlim de 2012, apresenta a
seguinte menção à obra, quando anuncia o recém-publicado romance:
Seu último trabalho foi fortemente influenciado pelos anos que passou em um internato para meninas, onde cresceu experienciando a tensão entre os conservadores anos 50 e os movimentos de protesto da década subsequente. (…) De forma provocativa e divertida, ela primeiramente explora a questão dos papéis de gênero. Criando “personagens femininas fortes com poderes míticos”, que “mostram novas formas de ser mulher” é como ela mesma descreve sua inquietação literária. 21
Podemos depreender também que a inquietação pulsante em todas as obras da autora,
ou as tensões propostas por ela, em especial no romance em análise, expressa a conexão
indissolúvel entre um espaço revestido de sentido e o processo de formação que descortinarão
um movimento único no transcorrer dos dias em Bath College: a superação de Mouse
Bradford através da escrita.
21 “Her later work was strongly influenced by the years she spent at a girl’s boarding school, where she grew up
1.3.2. The Wives of Bath & The Wife of Bath’s Tale: um diálogo no tempo e no espaço
Um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição.
Dominique Maingueneau
Para a filósofa húngara Julia Kristeva (1974, p.64), a linguagem poética surgiu através
de diálogos entre textos, como um “mosaico de citações” evocadoras de outras escritas.
Apoiada nos pressupostos de Mikhail Bakhtin, e ao resgatar o conceito bakhtiniano de
dialogismo, Kristeva elaborou uma estrutura literária não mais estática, mas relacional. A
teórica, que integra as linhas de pensamento estruturalista e pós-estruturalista, conceitua a
intertextualidade como uma operação de assimilação de outros textos situados na história e na
sociedade, transformando-os através de um texto centralizador do sentido.
De acordo com Koch & Travaglia (1989), “todas as questões ligadas à
intertextualidade influenciam tanto o processo de produção como o de compreensão de
textos” (p. 91) e constituem um dos fatores mais relevantes na construção da coerência
textual.
Essas vozes entreouvidas no texto são reveladas de diversas formas, segundo os
autores citados, seja por meio do desenvolvimento de um mesmo tema – pensemos em “Bola
de Sebo”, de Maupassant, um exemplo de mulher, que estando em caravana de homens e
mulheres reprodutores da visão patriarcal, consegue subverter uma realidade ruim por uma
outra boa por meio de suas atitudes – seja pela citação explícita da fonte. No primeiro caso,
temos a intertextualidade de conteúdo; no segundo, a intertextualidade explícita. A
intertextualidade implícita diz respeito ao reconhecimento, no texto, de frases, expressões,
clichês que o leitor recupera na memória no intento de ajudar a construir o sentido do texto.
Neste particular, o leitor é também considerado um coautor, desde que tenha o conhecimento
São igualmente construtores do sentido do texto o que Koch e Traváglia (2000)
denominam de intertextualidade das semelhanças e intertextualidade das diferenças. Na
intertextualidade das semelhanças, o texto absorve os elementos de outro texto para
confirmá-lo, resultando, assim, em um texto que segue a mesma direção argumentativa do texto fonte. É
o caso das paráfrases, muito comuns nos textos que usam frases ou fragmentos de pessoas que
se destacam em suas áreas. Trata-se, neste caso específico, do chamado “argumento de
autoridade”. Perelman (2002) refere-se a ele como uma forma de “argumento de prestígio”, na
seguinte passagem de sua obra: “o argumento de prestígio mais nitidamente caracterizado é o
argumento de autoridade, o qual utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de
pessoas como meio de prova a favor de uma tese.” (p.348)
A intertextualidade das diferenças, ao contrário, busca evocar outros textos para
ridicularizá-los ou contestá-los, e a orientação argumentativa é, obviamente, contrária. Resulta
quase sempre nos textos parodísticos e, como figura de linguagem, na ironia.
Expostas rapidamente algumas características mais importantes da intertextualidade,
cabe-nos verificar em que medida a abordagem desse instrumento de construção de sentido se
justifica na análise de The Wives of Bath.
Em primeiro lugar, o romance The Wives of Bath apresenta inúmeros intertextos nas
vozes de algumas escritoras – Jane Austen, Virginia Woolf, Charlote Bronté 22– entre outros.
Já no capítulo três, Virginia Woolf é mencionada para ilustrar os momentos em que a
protagonista estava depressiva; lembrar a morte de Woolf era lembrar que alguém pudesse
estar ainda mais depressiva que ela mesma:
Eu sempre pensava em Virginia quando eu estava mal, porque ela estava tão depressiva a ponto de se afogar em um riacho com os bolsos cheios de pedras. Em minha opinião, isso sempre ajuda a lembrar que há alguém ainda mais triste que você. (p.11)23
22 As autoras citadas aparecem nominalmente no texto da obra em análise.
A obra Jane Eyre de Charlote Bronte, é mencionada também no capítulo três, quando
Mouse se aproxima pela primeira vez do internato, e seu pai comenta com a madrasta sobre a
construção. Para tentar minimizar o fato amedrontador da escola para garotas ter grades nas
janelas, Mouse relembra que a escola Lowwod, que ficava em um pântano, poderia tê-la
impressionado mais, pois fora descrita por Bronte como um local onde muitas garotas
morriam de febre tifóide:
Há grades nas janelas, Morley disse. Eu me senti convencida. A escola não me impressionou. Não era decrépita o suficiente. E não ficava em um pântano fedorento como Lowwod, a escola em Jane Eyre onde as garotas caíam mortas como moscas com a febre tifóide. (p.15)24
Já no título, um dos elementos funcionais da obra, por ser orientador da leitura, The
Wives of Bath incita a curiosidade dos leitores por introduzir a dimensão feminista em que a
obra se insere. De fato, The Wives of Bath recobre o universo feminino e pressupõe a
discussão de elementos pertencentes a um espaço desvalorizado do cânone culturalmente
aceito (se considerarmos os espaços definidos socialmente para homens/mulheres). Porém,
para o leitor mais afeito à literatura inglesa, o título estabelece, de imediato e em primeiro
lugar, um movimento dialógico com a obra de Geoffrey Chaucer, The Canterbury Tales,
escrito entre 1386 e 1400, especificamente com um dos vinte e quatro contos da obra, o
décimo terceiro, intitulado The Wife of Bath’s Tale.
Temos, portanto, a) uma intertextualidade de conteúdo, visto serem as duas obras
pertencentes ao mesmo gênero literário, narrativas; no caso de Chaucer, um poema narrativo;
b) uma intertextualidade explícita em razão das obras citadas de Austen, Woolf e Brontë, que
são tipificadas por leituras de jovens em formação; c) uma intertextualidade das semelhanças,
já que o título da obra remete a uma outra obra, cuja orientação argumentativa é semelhante,
apesar da distância temporal entre as duas obras. Em ambas, a questão do gênero é discutida
pelas narradoras personagens. Em Chaucer, a personagem Alisoun busca romper a barreira
entre os gêneros, superando a hierarquização. Em Swan, a personagem Mouse também tenta,
ainda, no século XX, superar essa mesma hierarquia. Interessante ressaltar que o nome da
Mulher de Bath, apresenta-se em diversas variantes, em diferentes traduções da obra, tais
como: Alisoun, Alison ou Alice – sendo o último dado também à corcunda de Mouse; esse
fato não nos parece mera coincidência. Devido à função que exerce na narrativa, a corcunda
de Mouse é carregada de significados, a mesma pode ser entendida como a voz das mulheres
universais ou, especificamente, a da Comadre de Bath e de sua própria mãe.
Ainda na instância da intertextualidade das semelhanças, podemos considerar as
autoras explicitamente citadas como um exemplo de argumento de autoridade ou, como se
expressa Perelman, um exemplo de argumento de prestígio. De fato, Austen, Brontë e Woolf
são autoras de prestígio e emprestam suas vozes para justificar o empenho da personagem em
transformar-se em um ser verdadeiramente completo.
Cabem agora algumas considerações a respeito dos contos de Chaucer. Vizioli (1991,
p.xv) assinala, na apresentação e tradução da obra, que “cada história de Os Contos da
Cantuária ilustra um gênero literário diferente (em geral adequado ao narrador), e focaliza
com certa minúcia uma ciência e atividade humana”, ampliando, assim, a visão cultural da
época (século XIV). O autor registra ainda que: “Os contos de Chaucer oferecem-nos,
portanto, um precioso referencial para a avaliação de nosso progresso e para a compreensão
de nossa sociedade. Mesmo porque a época retratada pode ser medieval, mas a humanidade é
a de sempre”. (VIZIOLI, 1991, p.xvii). Nesse sentido, o diálogo entre os dois textos é
perfeitamente possível.
É preciso destacar ainda que O Conto da Mulher de Bath apresenta uma narradora
que, mesmo sem contestar abertamente os conceitos morais predominantes, demonstra, com
abundância de argumentos, que os prazeres do sexo não devem ser prerrogativa exclusiva dos
homens.” (VIZIOLI, 1991, p. xix). Também nesse particular é impossível deixar de constatar
a aproximação entre as personagens de ambas as obras.
Retomamos o título da obra pluralizado The Wives of Bath, de Swan e o singularizado
The Wife of Bath’s Tale, agora para novas considerações. Essa diferença não pode ser gratuita.
O plural de Swan remete a uma classe generalizada, não apenas a Mouse, Pauline, Tory e
Miss Vaughan, todas figuras que, assim com a Mulher de Bath, sobrevivem aos modelos
misóginos . É nesse pormenor que a obra se insere na narrativa de autoria feminina, visto que
procura argumentar a favor da inserção da mulher no mundo “dos homens”: Alisoun, em sua
caravana masculina; e Mouse, nos espaços escuros dos trabalhadores da escola e no bar
frequentado por estudantes da escola masculina. O singular Wife of Bath referencia uma
personagem que, embora não represente propriamente uma classe, expressa o desejo de
também pertencer ao mundo prazeroso e dominante dos homens. As seguintes passagens de
ambas as obras nos fornecem informações a respeito disso: “- Você não vê isso, Alice? Se as
pessoas pudessem se conciliar com isso de forma que essa protuberância não se
desenvolvesse, não precisaríamos de dois sexos. Isso nos pouparia de muitos problemas.”
(SWAN, 1993, p. 94)25. E Alisoun pondera no prólogo do conto:
Ainda que neste mundo não existissem os ensinamentos da autoridade, a mim bastaria a experiência para falar dos males do matrimônio: e isso, cavalheiros, porque desde os meus doze anos de idade (louvado seja Deus, que tem a vida eterna, por ter-me permitido casar-me tantas vezes) tive já cinco maridos à porta da igreja, _ e todos homens de bem, à sua maneira. (CHAUCER, 1988, p. 137)
- Don’t you see, Alice? If somebody could only arrange it so that lump didn’t develop, we wouldn’t need two
sexes. It would save us all so much trouble. (SWAN, 1993, p. 94)
Outro ponto de contato entre as duas obras diz respeito à questão do espaço. Embora
em Chaucer a questão do espaço não se estabeleça como um elemento construtivo da tessitura
textual, não se pode desconsiderar a trajetória significativa de uma caravana de homens para a
visita ao túmulo de Santo Tomás Beckett. É exatamente o que acontece com a trajetória de
Mary Beatrice: de sua casa a Bath Ladies College, onde encontra sua identidade. Alisoun é de
Bath e Mouse vai a Bath. E Bath, para Mouse, pode ser considerado um feudo, substantivo
que remete ao mundo de Alisoun:
Sim, eu sei como Jack deve ver a mim e a cada uma das meninas e mulheres na minha escola porque todas nós somos Mulheres de Bath – das professoras que nos aterrorizavam com suas sinetas e punições, as internas superalimentadas, as garotas esnobes não internas, a Paulie e eu que tentávamos praticar nosso próprio conjunto de regras. Mas não importa a dificuldade que qualquer uma de nós enfrentou, nós ainda pareceremos estúpidas aos olhos de alguém como Jack porque Bath Ladies College era apenas um feudo no reino dos homens.26 (SWAN, 1993, p.217, grifos nossos).
Enquanto Alisoun, a protagonista de Chaucer, elabora estratégias para solucionar seus
problemas de solidão em um contexto histórico patriarcal, Mouse elabora, de forma
idealizada, estratégias para não sucumbir ao mundo das mulheres. Interessante ressaltar que
ambas apresentam uma marca física permanente: Alisoun, uma surdez leve, e Mouse, uma
corcunda, sinais estes que apontariam para o fato de serem transformadas pela mesma magia
da velha senhora do conto de Chaucer e terem seus desejos alcançados.
Nas personagens, pode-se constatar a arbitrariedade da representação masculina da
mulher e a idealização de uma outra realidade, por meio da fantasia. Em ambos os casos,
portanto, a idealização de serem outra solucionaria a questão do poder masculino: Alisoun,
tentando dominar o corpo masculino com seus dotes sexuais, e Mouse, tentando dominar seu
Yes, I knew how Jack must see me and every other girl and woman at my school because, we were all Wives
corpo feminino ao transformá-lo em um corpo masculino através não de um projeto
deliberado, mas de uma imposição de Pauline por meio de um ritual iniciático.
1.4. A obra, um resumo expandido
Sem mencionar quem ela é, a narradora Mouse Bradford se apresenta e menciona ter
se envolvido com um ato de autoafirmação no mínimo estranho cometido por Paulie. Mouse
comenta sobre seu pai desafetuoso, Morley, e sua madrasta crítica e alcóolatra, Sal. Ela
também conta ao leitor sobre sua corcunda no ombro esquerdo, como resultado de um surto
de poliomielite na infância, que se desenvolveu em uma cifose, ou curvatura da coluna
vertebral. “ Eu não nasci com uma grave curvatura espinal, ou cifose, como os médicos como
Morley chamam. A pólio fez com que meus músculos das costas se atrofiassem e minha
espinha entortasse para a esquerda,...”27 (p.06). Mouse nominou sua corcunda de Alice, em
homenagem à mãe também chamada Alice, por ocasião de sua morte, e diz que essa saliência
é como uma amiga. Durante todo o romance, os diálogos, ou as piadas com Alice, fornecem
um certo tom irônico, um alívio cômico aos esclarecimentos sobre eventos negativos da
história de Mouse.
Ainda no segundo capítulo, Mouse interrompe a narrativa em curso e ensaia uma
digressão para recuperar detalhes sobre o julgamento no qual Paulie figura como ré. Com a
retomada intermitente dessas digressões durante o romance, o leitor é levado a pensar que
Paulie cometeu algum tipo de assassinato.
Mouse reconta a forma como foi mandada ao internato nos arredores de Toronto –
Bath Ladies College – e justifica a ação de seu pai afirmando que ele tinha “um complexo de
inferioridade infeliz sobre educar fêmeas28”, e porque a diretora, Vera Vaughan, era uma
prima distante.
Mouse tem consciência de sua timidez e de sua imperfeição física, e é aturdida pela
estranha atmosfera da escola antiquada desde a primeira vez que adentra esse espaço. A
primeira pessoa com quem se relaciona é o amigável zelador, Sergeant (que é um anão), e
depois o irmão de Paulie, Lewis, a quem ela mais tarde surpreende se barbeando no banheiro
próximo ao seu novo dormitório. Mouse conhece Victoria Quinn, ou Tory, e Pauline Sykes
naquela noite, e fica imediatamente entusiasmada com a amistosa Tory. Após um tempo de
convivência, Tory conta a Mouse que o irmão de Paulie, Lewis, é seu namorado, e que estão
apaixonados. Mouse consegue se estabelecer rapidamente na escola, mas não
confortavelmente, e acaba por captar o léxico e a simpatia em relação à equipe escolar e às
alunas.
Mouse possui uma intensa fixação por John F. Kennedy, o presidente americano, e
isto é evidente nas longas cartas familiares que ela envia a ele regularmente. A garota
estabelece paralelos entre o pai e o presidente durante a obra e idealiza a paternidade de
Kennedy expressa pela mídia.
Para tristeza de Mouse e Pauline, Tory quebra a perna no campo de hockey por
acidente e é mandada para casa para descansar pelo resto do período de inverno. Cansada do
comportamento inconstante de Paulie, a Senhorita Vaughan determina que Paulie se livre de
suas frustrações caminhando pela escola todas as noites depois da aula, e ordena a Mouse que
a acompanhe. As duas estabelecem um tipo de ligação afetiva e Paulie revela a Mouse que
não tem um irmão chamado Lewis; na verdade é ela, disfarçada de garoto, e que ela engana a
todos, até mesmo Tory. Paulie leva Mouse ao tabernáculo que construiu em homenagem ao
filme King Kong, de 1933, e impõe a Mouse uma série de testes bizarros para provar que ela,
também, pode “ser” um garoto. Os testes incluem: comer cinco tigelas de pudim de tapioca
sem vomitar, deixar um palito de fósforo queimar até a sua pele sem chorar, e conseguir
urinar enquanto estivesse em pé.
Depois que Mouse completa os testes preliminares, Paulie embarca em três grandes
provas: domínio sobre outros homens, domínio sobre mulheres e domínio sobre sua própria
natureza; na primeira, Mouse cria seu alter-ego masculino, “Nick o Grego”, e se veste de
garoto pela primeira vez. Mouse e Paulie brigam com garotos da escola próxima, o King’s
College, sendo um deles o irmão mais velho de Tory, Ricky. Na segunda prova, Paulie
desafia Mouse a seduzir uma garota obesa da escola de freiras, o que ela faz, embora termine
de forma cômica: a garota em questão, Josie, parecia saber que Mouse/Nick era uma garota, e
se derrama em lágrimas quando Mouse hesita em acariciá-la. Na terceira prova, Paulie desafia
Mouse a matar um pombo.
A relutância de Mouse em fazer tais provas demonstra que seu desejo de ser homem
não está fundamentado em uma vontade genuína de se tornar um, nem mesmo em uma
atração por garotas. Mais propriamente, Mouse deseja a liberdade de que os homens de seu
tempo desfrutam, o que ela acredita que nunca será capaz de vivenciar como mulher.
Na ausência de Tory, a aluna favorita dos professores, Ismay Thom, se muda para o
dormitório de Mouse e Paulie. Sua presença intrometida provoca Paulie, mas Mouse anima-se
com a personalidade excêntrica, mas amável, de Ismay.
Paulie induz Mouse a assaltar os aposentos privados da senhora Peddie, onde elas
encontram por acaso correspondências desta com a senhorita Vaughan, escritas anos atrás. As
cartas detalham um incidente em que a senhorita Vaughan fora agredida por um policial, que
a tinha visto beijando a senhora Peddie, um ato preconceituoso que fora disfarçado de
atendimento a um caso de estupro. Paulie as rouba e as esconde na gaveta da cômoda de
exposta e com ela também o rompimento do segredo das duas, “Tenha certeza de que estou
fazendo o melhor para me fortalecer para que eu possa te sentir em meus braços novamente e
beijar toda a sua boca.”29(p.105)
Na ausência de Tory, o comportamento de Mouse piora, e ela é impedida de participar
do Almoço dos Visitantes em King’s College. Mas acaba sendo levada até lá por seu Tio
Winnie (o irmão de sua mãe) e sua esposa. No colégio, ela vê Tory com Lewis no pátio
externo. Lewis é perseguido na escola, depois de ser visto vandalizando uma estátua. Em
meio ao tumulto, é dada a notícia de que o Presidente Kennedy fora assassinado.
Mouse é assolada pela notícia da morte do Presidente, mas é animada pelas cartas de
Jack O’Malley, um aluno de King’s College que ela conhecera no almoço. O comportamento
de Paulie se torna sinistro; ela instrui Mouse a bater nela com um bastão velho, e quando
Mouse hesita, Paulie é que bate nela com o bastão, forte o suficiente para fazê-la sangrar.
Mouse admite que continuou a proceder com os testes de Paulie porque a personalidade
perversa de Paulie absolvia a ela, Mouse, de todas as coisas em sua vida que ela não poderia
mudar (por exemplo, não ser merecedora do amor de Morley, não ter amigos) e fazê-la ainda
mais inocente.
Depois da apresentação de Natal, Mouse é chamada para se dirigir ao escritório da
senhorita Vaughan, onde é informada que Morley, seu pai, morreu de um ataque cardíaco
repentino.
Mouse retorna a sua casa em Madoc’s Landing para enterrar seu pai. Embora ela
afigure-se fria e distante diante da realidade da morte do pai, ela parece desolada ao leitor.
Sua madrasta, Sal, que é frequentemente ouvida como a voz da consciência de Mouse, é
revelada como uma alcoólatra. A Senhorita Vaughan vai até o funeral, levando Paulie, que
conta a Mouse que Ricky está tentando impedir Tory de ver Lewis. Senhorita Vaughan pede a
Mouse que mantenha em segredo o que descobriu nas cartas entre ela e a Senhora Peddie.
Mouse decide não mais se vestir de garoto e medita sobre a falta de afeto do seu pai
para com ela, concluindo que ele amava demais o seu trabalho. Mouse volta a Bath College
com lembranças dele, uma delas era o livro de anatomia (ele era um cirurgião) e sua velha
maleta de médico.
Na volta à escola, Mouse descobre que Paulie fora retirada de seu dormitório e
substituída por Asa Abrams, e que Tory retornara. Para sua surpresa, ela recebe a singela
simpatia de seus colegas, assim como de seus professores, e é particularmente tocada pelo
presente de Tory, um livro do Novo Testamento. Paulie fora forçada a tomar o velho cubículo
de Asa. Seu exílio a faz notavelmente mais amável com Mouse. Paulie revela que ela
(enquanto Lewis) entrou em uma briga com Rick e o feriu com uma faca, e que Tory estava
chateada com ela por isso. Ismay conta a Mouse que Paulie tem esculpido figuras sinistras na
armação de sua cama e roubado suas partituras musicais, o que Paulie, sorrindo, nega.
Lewis leva Mouse até King’s College na noite do baile de Natal, para buscar Jack
O’Malley. Os dois conversam embaraçadamente enquanto Lewis dirige até a casa de Cannon
Quinn para buscar Tory. Mouse vê Rick e Lewis discutindo e brigando na porta da casa dos
Quinn; Lewis retorna ao furgão visivelmente aborrecido e sem Tory. Uma vez sozinho, Lewis
revela a Mouse que Rick o desafiara a provar que ele era um garoto e mostrasse a ele seu
pênis, e começa a chorar.
Mouse finalmente deixa Paulie e junta-se a Jack. Eles se envolvem nas festividades,
bebendo gim e “namorando na maior parte do tempo em pé30”. Aproximando o final da noite,
Mouse escapa e procura por Paulie. Finalmente a encontra no lavabo da torre, com o cabelo
tosado e com o rosto cortado e sangrando. Paulie bravamente afasta Mouse quando ela tenta