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Mal sabia ele... : a intertextualidade literária no filme Mais estranho que a ficção

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira

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G633m Gomes Júnior, Edmundo.

“Mal sabia ele...” : a intertextualidade literária no filme Mais estranho que a ficção / Edmundo Gomes Júnior. – 2013.

114 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbite-riana Mackenzie, São Paulo, 2013.

Referências bibliográficas: f. 107-114.

1. Intertextualidade. 2. Cinema. 3. Literatura. 4. Kristeva, Julia,1941-. I. Título.

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EDMUNDO GOMES JÚNIOR

“MAL SABIA ELE...”:

A INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA NO FILME

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovada em 12 de dezembro de 2013.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________ Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira – Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________ Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________________ Profª Dra. Elisabeth Brait

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter colocado estas pessoas em meu caminho.

À estimada Professora Helena, pelo constante incentivo desde meu primeiro ano de graduação, por sua paciência e tranquilidade nas orientações, por seus conselhos que seguirei por toda vida, por seu exemplo de integridade e, principalmente, por sua grande amizade.

A Eli, anjo da guarda cuja presteza foi fundamental nos momentos em que as respostas não estavam nos livros.

À minha mãe, meu porto seguro, por acreditar em meus sonhos. Sem seu apoio nenhum deles seria possível.

À minha avó Julia, exemplo de caráter e amor incondicional. Saudade eterna.

À CAPES e à Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de estudos concedida, fundamental para o desenvolvimento deste trabalho.

À Profª. Dra. Elisabeth Brait, pela leitura atenciosa de meu trabalho e pelas preciosas críticas e sugestões feitas durante a banca de qualificação que possibilitaram o amadurecimento da idéia.

À Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan, pelas contribuições não só durante a banca de qualificação, mas também durante o curso de pós-graduação, compartilhando seu grande conhecimento do universo do fantástico, que possibilitou diferentes pontos de vista sobre esta pesquisa, e por me apresentar à Literatura Hispano-Americana, cujas sugestões, mesmo quando não inteiramente seguidas, estão constantemente presentes em minhas reflexões e motivarão novos estudos.

Aos professores do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialmente às Profª Dra. Aurora Gedra, Profª Dra. Elisa Guimarães, Profª Dra. Lilian Lopondo, Profª Dra. Marlise Vaz Bridi e Profª Dra. Maria Luiza Atik, cujas aulas nunca esquecerei, e à Profª Dra. Maria Lúcia Vasconcelos, por me fazer entender que não é possível colocar um oceano num copo d’água.

Aos amigos Gisele, Sheila, Marcelo, colegas de mestrado e companheiros de jornada, presentes nos momentos mais importantes, e Luiz Felipe, Renato, André, Thaís, Adriana, Cida, Nany, Paula, Denise e Felipe, por entenderem minha ausência.

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We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar o filme Mais estranho que a ficção (2006), dirigido por Marc Foster, no viés do conceito de intertextualidade, criado por Julia Kristeva. É apresentada uma pesquisa sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na narrativa fílmica, visando assim discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção de sentido. Para essa análise foi levantada a origem desse conceito, confrontando o dialogismo de Mikhail Bakhtin com os textos de Kristeva. A autora elaborou, além da intertextualidade, os conceitos de ambivalência e transposição, termos que são empregados posteriormente por outros autores. Durante a análise foi possível notar, através dos intertextos presentes no filme, a natureza prometaica da criação ficcional, onde criadores enfrentam a decadência, as semelhanças entre as representações dos mestres na ficção em relação à jornada do herói épico, a utilização da écfrase como antecipação do desfecho da estória e a formação da identidade das personagens da obra através do diálogo.

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ABSTRACT

This essay aims to analyze the film Stranger Than Fiction (2006), directed by Marc Foster, following of the concept of intertextuality, created by Julia Kristeva. It presents a survey of the literary works mentioned in the film and their effects on film narrative, in order to discuss how intertextuality enables the production of meaning. For this analysis the origin of this concept is researched, confronting the dialogism of Mikhail Bakhtin with Kristeva's texts. Kristeva also developed the concepts of ambivalence and transposition, terms that are used later on by other authors. During the analysis it was possible to see through the intertexts in the film the Prometheus theme repeated in the nature of fictional creation, where creator face decay, the similarities between the representations of mentors in fiction in relation with the epic hero's journey, as the use of ecphrasis as an anticipation of the outcome of the story and the formation of the identity of the characters work through dialogue.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 11

1.1. Sobre o Objeto de Estudo ... 14

2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA ... 18

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO ... 34

3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo ... 41

3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes ... 46

3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção ... 49

4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO ... 55

4.1. A caverna do mestre ... 56

4.3. O discurso como formador da identidade do professor ... 63

5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO FICCIONAL ... 79

6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO . 96 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 104

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1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir o filme Mais estranho que a ficção, dirigido por Marc Foster, no viés da intertextualidade, dentro da perspectiva da produção cinematográfica como objeto artístico dentro de uma linguagem própria de seu suporte, mas que se apropria de recursos de outras linguagens, como a Pintura e a Literatura. Para isso, discutiremos o filme pelo à luz dos conceitos sistematizados por Julia Kristeva, pesquisando sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na narrativa fílmica, visando assim discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção de sentido.

A escolha deste filme foi feita devido à grande quantidade de referências à Literatura nele presentes. Tomaremos o filme e sua narrativa como eixo central, tratando os principais aspectos intertextuais conforme eles são apresentados na obra.

Partiremos da gênese do conceito de intertextualidade e de sua repercussão epistemológica e trabalharemos essa formulação não só na pesquisa sobre as obras citadas, mas também nos efeitos de sentido e recursos que são utilizados em comum na Literatura em obras aparentemente sem relação com o filme, mas, como a pesquisa indicará, dialogam entre si dentro de um universo temático.

Este trabalho pode servir de suporte ao ensino de Língua e Literatura, embora não esteja voltado para a educação, já que o estudo da intertextualidade faz parte do currículo do Ensino Médio (SEE, 2009, p.25). A escassez de referencial prático e teórico para esse estudo, entretanto, acaba dificultando que a intertextualidade e outros conceitos sejam trabalhados pelos professores, que muitas vezes os desconhecem.

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Além disso, nas aulas de Língua Estrangeira notamos que, apesar das inovações e novas abordagens de ensino, boa parte do material pedagógico e, consequentemente, o plano de aula, ainda focam o ensino da gramática e a leitura de textos cuja interpretação consiste em questionários que visam a coleta de dados. Essa abordagem, por sua vez, gera um desinteresse pela leitura que se reflete na busca por resumos de obras literárias e pela pouca busca em bibliotecas. Deve ser suprida, portanto, uma lacuna de novas propostas da obra literária não só como objeto de estudo, mas também como fonte de inspirações, o que pode aproximar o aluno da obra literária, vendo o estudo da Literatura não como uma simples identificação categórica de obras dentro de gêneros: é preciso ir além do pensar literário e despertar no estudante de Literatura interesse no fazer literário. Para isso, faz-se necessário a utilização na sala de aula de obras cujo cerne esteja na criação literária, na figura do narrador e seus dilemas e na intertextualidade presente nas obras escolhidas.

Entretanto, um dos principais fatores da dificuldade em compreender a intertextualidade, além dos diferentes níveis de interpretação, provém do baixo repertório de leituras, não somente de obras literárias, mas também das leituras de mundo, o que é compreensível pela idade ou pelo grau de formação dos alunos. É necessário, portanto, um direcionamento auxiliado pelo professor para que esses alunos possam identificar a intertextualidade nas obras analisadas. Não compete ao professor, porém, atuar como um intérprete de mundo para o aluno, mas fornecer as ferramentas para que essas leituras sejam feitas.

Para Roland Barthes, um dos prazeres do texto está na intertextualidade, pois um texto sempre remete a outro, num fenômeno que o autor descreve como “simplesmente uma lembrança circular. E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida.” (BARTHES, 1987, p. 49, grifos do autor.)

Em Texto, discurso e ensino, Elisa Guimarães sugere atividades ligadas à intertextualidade, dentre elas:

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Faz-se necessário, portanto, evocar obras que além de conterem traços de intertextualidade, despertem o prazer pela Literatura. Dificilmente, porém, será possível atingir um público alvo junto ao qual se deseja criar o gosto pelos livros se não houver um suporte intermediário, isto é, não se motiva alguém a ler com um texto que fale sobre a importância da leitura, dada a resistência do indivíduo a esse hábito.

A utilização do cinema em sala de aula auxilia neste propósito, dentre muitas outras possibilidades exploradas por autores como Marcos Napolitano, que dedicam seus estudos a essa proposta de ensino-aprendizagem:

Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola a reencontrar a cultura, ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte. Assim, dos mais comerciais e descomprometidos aos mais sofisticados e

“difíceis”, os filmes tem sempre uma possibilidade para o trabalho escolar. (NAPOLITANO, 2009, p. 15)

Esses autores, entretanto, enfatizam a utilização do cinema em disciplinas como História, Geografia e Ciências Sociais, ou quando é citada a Literatura, limitam-se às adaptações de obras de livros para filmes. Propomos, portanto, utilizar uma obra cinematográfica que tenha a intertextualidade, implícita ou explicitamente, presente em sua temática, e o filme Mais estranho que a ficção atende a esse propósito.

A atuação docente foi inspiradora para a elaboração desta pesquisa, porém não buscaremos apresentar o trabalho da intertextualidade através de uma sequência didática, visto que esse tipo de recurso não considera os diferentes contextos de ensino e idealiza situações utópicas, tanto de recursos de sala de aula quanto de material humano. Ao invés disso, priorizaremos a análise do filme e a pesquisa que ele provoca, demonstrando como a intertextualidade não só desperta a memória de textos anteriores, mas também provoca novas leituras.

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1.1. Sobre o Objeto de Estudo

Mais estranho que a ficção, título original Stranger than Fiction, conta a estória de Harold Crick (Will Ferrell), um solitário auditor da Receita Federal americana (e seu relógio, nas palavras da narradora). Harold tinha vida e rotina controladas de modo quase obsessivo-compulsivo, até que começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos. Passa então a tentar descobrir de quem é essa voz, busca a ajuda de uma analista, que lhe recomenda, mediante sua recusa em tomar medicação, a procurar um especialista em Literatura. Harold se encontra com o professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que recomenda descobrir se a vida de Harold, caso seja uma obra literária, consiste em uma tragédia ou em uma comédia. Após o levantamento das características destes dois gêneros narrativos definidos pelos tratados aristotélicos, Harold retorna para conversar com o professor, e descobre que a voz que narra sua vida pertence a Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa por matar os protagonistas de suas obras.

Harold consegue se encontrar com Karen, sem questionar a existência da narradora, pois sua preocupação maior é pedir-lhe que não o mate. A assistente de Karen (Queen Latifa) sugere que ela deixe Harold ler os esboços do livro. Após essa leitura, apresentada também ao professor, o herói percebe que sua morte tem um sentido para a narrativa.

O protagonista diz a Eiffel que entende a necessidade de sua morte para que a obra se torne grandiosa. A tensão do filme passa então para o dilema das escolhas entre vida e morte da narradora e do protagonista: se Karen decidirá matar o herói e se Harold aceitará essa morte.

Ironicamente, Harold passa a aproveitar melhor a vida: investe em seu relacionamento com Ana Pascal, aprende a tocar guitarra, presenteia seu amigo com uma estadia em um centro de treinamento para astronautas e preocupa-se menos com o trabalho e com a maneira minuciosa ao desempenhar suas tarefas mais mundanas.

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joga no lugar do menino para salvá-lo de um atropelamento. Harold é mostrado atropelado, a câmera se afasta e há uma transição para uma conversa entre Karen e Hilbert. Ela lhe entrega uma cópia do livro, dizendo que ele pode estar interessado no novo final. Harold é mostrado, com grande parte de seu corpo engessado. Um médico lhe explica que ele fora salvo por uma lasca solta do relógio de pulso no momento de impacto com o ônibus, e Harold explica à namorada que não teve escolha a não ser salvar o garoto de ser atingido.

Eiffel conversa com o professor Hilbert sobre o desfecho do livro e como ele não faz sentido com o restante da obra. A autora diz que irá reescrevê-lo. O professor lhe pergunta por que mudou o livro, ela explica que inicialmente era uma estória sobre um homem que não sabia que morreria, e então morre, mas se o homem sabe que irá morrer e o faz por vontade própria, mesmo sabendo que isso poderia ser evitado, não seria esse tipo de homem – ela questiona - que se gostaria de manter vivo?

A escritora faz sua última narração, complementada pelas imagens de todas as personagens do filme, retomando suas vidas. Diferentemente do sentimento de uma tragédia anunciada do início da estória, ela narra como Harold sentiu que tudo daria certo daquele momento em diante, levando ao típico e talvez inesperado final feliz hollywoodiano.

1.2. Possibilidades de Leituras de Mais estranho que a ficção

Tendo neste estudo a intertextualidade como visão de leitura, não ignoramos a gama de possibilidades de análise que Mais estranho que a ficção permite, dada sua função como produto ideológico, visto que toda produção humana pode se tornar símbolo e não apenas existir como parte de uma realidade, mas também refletir e refratar uma outra, estando sujeito aos critérios de avaliação ideológica e análises de questões filosóficas, psíquicas, históricas e sociais sobre as manifestações da linguagem.

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analisar a presença do insólito gerado pela situação, o que leva a um questionamento quanto à existência de Harold, da autora e da própria ficção em si. A esta reflexão sobre a ficção se acresce, por sua vez, uma análise sobre a representação dos elementos da narrativa, da qual o próprio filme, dentro do discurso do professor, traz uma reflexão didática sobre os gêneros da narrativa e sua estrutura e serve, por exemplo, como fator de motivação para que alunos produzam ficção, ao invés de apenas se prenderem à análise de gêneros.

Uma quarta possibilidade de leitura se manifesta pela gradação do abstrato para o concreto que o filme apresenta, da teoria literária para a prática da escrita, através das antíteses de discursos do professor de Literatura e da escritora. Também é possível analisar Mais estranho que a ficção pelo seu cunho social, visto que Harold é um pária e não apresenta as características do herói convencional, e a ficção, por sua vez, pode representar tais indivíduos marginalizados como uma forma de denúncia daqueles invisíveis socialmente. Mesmo estando fora do padrão épico, o trajeto de Harold na narrativa fílmica também segue a estrutura da jornada do herói, o que também permite analisar a narrativa identificando os estágios dessa jornada até sua conclusão.

Uma última proposta de análise (no sentido de enumeração e não de possibilidade), e à qual iremos dar maior importância, levando em conta as delimitações do trabalho científico, está na intertextualidade presente em Mais Estranho que Ficção. Ela se manifesta, em sua forma mais explícita, nas citações presentes no decorrer do filme, seja no discurso das personagens, seja nas imagens que nos remetem a outros textos.

Para a realização dessa análise, iniciaremos no capítulo Intertextualidade na Literatura e no Cinema um panorama dos conceitos de intertextualidade sob diferentes perspectivas teóricas, comparando-as e visando identificar pontos em comum dentre elas a fim de delimitar o escopo de trabalho. Ainda dentro do estudo do intertexto, exploraremos como essa característica textual também se manifesta na linguagem do cinema.

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trama, além das estratégias da linguagem cinematográfica pra metaforizar mudanças de foco narrativo.

Em Lugares e discursos dos mestres na ficção analisaremos a intertextualidade entre Mais Estranho que Ficção e algumas obras literárias em que a representação do mentor do protagonista dialoga com a caracterização do professor Hilbert, tanto em sua apresentação e seu discurso quanto no espaço em que ele se encontra, nos artifícios de produção do engano no encontro entre aluno e mestre. Trabalharemos o conceito de ironia dramática e demonstraremos sua manifestação como uma forma de metalinguagem.

Em Homens sem carne e a natureza prometaica da criação ficcional exploraremos a intertextualidade entre Mais estranho que a ficção e os mitos e fábulas que tratam da origem do homem ou de personagens cuja constituição física reflete sua incompletude e como essa escassez direciona a narrativa a um confronto entre esses construtos e seus criadores.

Trataremos das transformações do protagonista em A formação da identidade em Mais estranho que a ficção, tendo em vista a influência do debate entre personagens e a função modificadora da narrativa e, que mesmo na estória de um anti-herói moderno, reflete a jornada do herói clássico.

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2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA

O conceito intertextualidade foi estabelecido por Julia Kristeva, sob a influência do pensamento de Bakhtin, autor cuja obra ela se tornou uma das maiores responsáveis pela divulgação. Esse conceito tem sido desenvolvido por autores dentre os quais citamos Dominique Maingueneau, Roland Barthes e Gérard Genette, leitores da autora búlgara, além de autores contemporâneos a este trabalho cuja produção intelectual indica a leitura de ambos, dos quais citamos: Elisabeth Brait, Elisa Guimarães e Tiphaine Samoyault, entre outros.

Apesar de Bakhtin não se utilizar do termo intertextualidade, podemos perceber o quanto os conceitos de diálogo e dialogismo presentes em sua obra, além dos termos dialógicas intertextuais e intratextuais, esboçados em Estética da Criação Verbal (1997, p.332) já orientam para esse fenômeno, visto a grande influência do autor na obra de Kristeva, que trata o diálogo intertextual e a intertextualidade como sinônimos (1974, p.70).

A proposta de estudo que Bakhtin/Voloshinov desenvolve em Marxismo e Filosofia da Linguagem foca, entretanto, na natureza da enunciação e na análise estilística, ainda com forte ligação com a Linguística. É em Problemas da Poética de Dostoiévski que Bakhtin desenvolve o conceito de dialogismo, mais inserido no escopo da crítica literária. Apesar de analisar a obra de Dostoiévski, a fim de explicar a concepção da variedade dialógica do romance, Bakhtin recorre aos diálogos socráticos de Platão:

O gênero se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela. O método dialógico de busca da verdade se opõe ao monologismo oficial que se pretende dono de uma verdade acabada, opondo-se igualmente à ingênua pretensão daqueles que pensam saber alguma coisa. A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica. (Op. cit., p. 94).

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Para os estudos da intertextualidade faz-se necessário primeiramente uma reflexão sobre a noção de texto a fim de compreender seus mecanismos de geração de sentido. O estudo do texto dentro da perspectiva bakhtiniana se aproxima de outras ciências, como a Física, relativizando esse texto como objeto, dentro de seu contexto de produção e de leitura. Kristeva (1974, p. 63) explica que o estudo da poética (que para a autora compreende não só a poesia, mas todas as formas de mimese) se insere nas ciências humanas quando aborda a prática real do pensamento através do cruzamento da linguagem como prática de consciência e quando a significação se articula por um encontro de diferenças através do texto.

Kristeva define o texto como um objeto de três dimensões: o sujeito da escritura, o destinatário e os textos anteriores (1974, p. 63). Sendo assim, ao mesmo tempo em que a palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escritura e ao destinatário, ela também está orientada para o corpus literário anterior ou sincrônico.

Roland Barthes explica que apesar da origem da palavra texto vir do latim textum, significando tecido, a trama dos fios que o formam se assemelha muito mais a uma teia de aranha, em que o sujeito pode se enrolar qual uma aranha presa em sua própria construção (BARTHES, 1987, p. 82). O tecido do texto, portanto, é formado por mais do que linhas horizontais e verticais que se cruzam, mas por outros eixos que o trespassam em outros sentidos.

“Todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos”, diz Kristeva (1974, p. 64), que vê a intertextualidade como uma maneira de a história passar por nós, assim como, para a autora, o texto, não é um sistema fechado de significado referente a ele mesmo. Ao invés disso, seu significado se deposita na dependência a outros textos.

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criação literária toma forma. Sendo assim, a intertextualidade não se limita às referências que um texto possa conter: ela se expande ao sistema ao qual o texto pertence e ao momento da criação estética.

Considerando o texto como um objeto de significação e de comunicação que causa um percurso gerador de sentido (BARROS, 2005, p.11-13), pode-se ampliar as possibilidades de suporte desse conceito – além da escrita, outras artes como a fotografia, a pintura e as artes compostas que utilizam mais de um tipo de código, como o cinema e as histórias em quadrinhos, também são abarcadas, no que Kristeva chama de língua visível:

La photographie nous montre une réalité antérieure, et même si elle donne une

impression d’idealité, elle n’est jamais sentie comme purement illusoire : elle est le document d’une «realité dont nous sommes à l’abri ». Au contraire, le cinéma appelle la projection du sujet dans ce qu'il voit, et se présente non pas comme l'évocation d'une réalité passée, mais comme une fiction que le sujet est en train de vivre. On a pu voir la raison de cette impression de réalité imaginaire que provoque le cinéma, dans la possibilité de représenter le mouvement, le temps le récit, etc. (KRISTEVA, 1981, p.311)*.

O filme, portanto, assim como na narrativa literária, possui um narrador, que pode se apresentar por forma explícita, falando ao mesmo tempo em que as imagens são mostradas, ou através da câmera. A noção de tempo também é necessária dentro do filme, assim como numa obra literária, visto que dois livros com o mesmo volume de páginas ou dois filmes com o mesmo tempo de duração podem representar apenas um dia na vida de uma personagem ou toda uma vida.

Segundo Kristeva, além de recriar uma realidade, o cinema também se aproxima do texto por possuir uma sintaxe:

Le cinéma ne copie pas de façon « objective », naturaliste ou continue une réalité qui lui est proposée : il découpe des séquences, isole des plans, et les recombine par un nouveau montage. Le cinéma ne reproduit pas des choses : il les manipule, les

*

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organise, les structure. Et c'est seulement dans la nouvelle structure obtenue par le montage des éléments que ceux-ci prennent un sens. (KRISTEVA, 1981, p.312)*.

Kristeva afirma que devemos admitir o cinema como linguagem e não apenas o considerar como uma, além de sê-lo também uma língua. A autora estabelece uma relação entre o cinema e as histórias em quadrinhos, pela imitação da organização sequencial das imagens estáticas para introduzir o tempo e o movimento na narrativa: a imagem isolada é um enunciado, mas disposta em sequência de outra, forma uma narrativa, e o texto escrito e o falado servem para seu suporte. A autora ressalta que o termo “linguagem” não deve ser empregado apenas em seu senso linguístico, mas de modo analógico, pois o cinema é um sistema de diferenças que transmitem uma mensagem (1981, p. 313).

A discussão entre língua e linguagem é vasta, porém, como afirma Christian Metz, o termo linguagem cinematográfica já apresenta certa comodidade por já ter se imposto no vocabulário especializado da teoria e da estética do cinema, enquanto “língua cinematográfica”, não parece aceitável no atual estado das pesquisas (1977, p. 112). Metz também afirma que o cinema não é uma língua por não ter um sistema de signos destinados totalmente à intercomunicação, isto é, o filme é mais preso a um estatuto de arte por consistir num objeto de arte, sendo muito mais um meio de expressão do que de comunicação (op. cit., p. 93). A interlocução entre cineasta e espectador não é imediata, apesar da polemização de sua mensagem.

A mensagem do cinema, como a de qualquer outra forma de linguagem, contém um discurso, como afirma Bakhtin:

Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele. (BAKHTIN, 2006, p. 17).

Sendo assim, a intertextualidade se torna importante para o cinema pela produção de sentido que as imagens e discursos contidos nos filmes propiciam. Se, como afirma Kristeva, cada imagem representa um enunciado, o filme consiste num objeto material de uma sequência desses diversos enunciados, e sendo assim podemos integrar diferentes suportes

* O filme não copia de forma “objetiva”, naturalista ou contínua uma realidade que se propõe: ele corta as

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discursivos dentro da análise da intertextualidade e, obviamente, da interdiscursividade. No cinema, por exemplo, diferentes níveis de leitura que podem ser identificados pelas reações dos espectadores, tema abordado por Marcel Martin, que também discorre sobre a produção de sentido de um filme, afirmando que:

[...] a maior parte dos filmes de qualidade são legíveis [sic] vários níveis, segundo o grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador. O mérito de tais filmes é sugerir, para além da dependência imediata do dramatismo de uma ação, por mais profunda e humanamente apaixonante que ela seja, sentimentos ou ideias em geral. Na gênese desta significação, em segundo lugar, o símbolo desempenha um papel importante. A utilização do símbolo no cinema consiste em recorrer a uma imagem capaz de sugerir ao espectador mais qualquer coisa [sic] do que a simples percepção do conteúdo aparente lhe poderia dar. A propósito da imagem fílmica poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo aparente e de um conteúdo latente (ou ainda de um conteúdo explícito e de um conteúdo implícito), sendo o primeiro diretamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela (MARTIN, 2005, p. 117).

Notamos, portanto, que as diferentes leituras que se pode fazer da narrativa fílmica dependem muito do hábito que sua platéia ocasional tem de assistir a filmes com enredos mais elaborados. Martin considera, portanto, a existência de um nível de leitura do espectador e se faz necessário, portanto, uma alteridade entre autor e leitor através da obra, fundamental no ato de enunciação, da qual o filme se torna um instrumento de sua materialidade. Estas duas características do filme também o definem como um texto, pois, como afirma Marcuschi (2008, p. 83), o texto é um “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de enunciação”. José Luiz Fiorin também fornece uma definição de texto ligada ao ato da enunciação e da materialidade:

O enunciado é uma posição assumida por um enunciador, é um sentido. O texto é a manifestação do enunciado, é uma realidade imediata, dotada de materialidade, que advém do fato de ser um conjunto de signos. O enunciado é da ordem do sentido; o texto, do domínio da manifestação. (FIORIN, 2006, p.52).

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A necessidade de um contexto de produção auxilia a compreensão do conceito de textualidade, a fim de distingui-lo claramente com a intertextualidade. Enquanto a textualização é o processo pelo qual é elaborado um texto, a textualidade é a cadência de idéias dentro desse texto, isto é, o produto da textualização. Segundo Maria Helena Mira Mateus, a textualidade é formada por um conjunto de propriedades que uma manifestação da linguagem humana deve possuir para ser um texto. Dessas propriedades que trazem a noção de textualidade, e logo, o sentido do texto, segundo Mateus, temos a conectividade, a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e por último, que nos será mais importante, a intertextualidade (MATEUS, 1983, p. 185-216). Podemos notar que existe uma relação de interdependência dessas prerrogativas textuais, principalmente pelo fato de que todas pressupõem um leitor e um contexto de produção. A conectividade do texto o torna ceito ou não, dependendo do seu teor de informação ou da possibilidade de polemização de sua leitura, transformando-o num objeto gerador de sentido. Esse processo se dá internamente, através dos elementos de coesão e coerência, e externamente, através de seu contexto situacional e da intertextualidade.

Elisa Guimarães retoma a intertextualidade como “o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (GUIMARÃES, 2009, p. 134, grifo da autora), que “designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizado, que detém o comando do sentido” (Op. Cit., p.163). A autora explica que a citação pode ser concebida “como simples ilustração – o próprio tema ilustração referenciando a possibilidade de uma função puramente auxiliar ou de apoio da citação” (Op. Cit., p. 137). Guimarães também ressalta a exigência de certo nível de cultura para que o leitor compreenda a alusão e da manutenção da configuração temática no processo de estilização, além de demonstrar que a citação e a alusão também se manifestam no processo de interdiscursividade (Op. cit., p. 139).

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[... ] como interação com um dado discurso, uma memória discursiva, que constitui um contexto global que envolve e condiciona a atividade linguística.[...] Torna-se impossível a apreensão do discurso sem a percepção das relações dialógicas, ou seja, sem história (GUIMARAES, 2009, p. 134).

Desse modo, tanto intertextualidade e interdiscursividade são ligadas à história, porém, enquanto na intertextualidade o texto em si é o gatilho, na interdiscursividade a ideologia é o que liga um texto a outro; o texto e consequentemente a intertextualidade privilegiam a materialidade da língua, da mesma forma que o discurso e a interdiscursividade visam sua natureza social e, portanto, ideológica.

Mais importante do que sistematizar uma classificação para as formas de intertextualidade e interdiscursividade é compreender os diferentes efeitos de sentido que cada uma dessas manifestações produz.

A produção de sentido de um texto, seja ele literário ou de outra concepção estética, formado por outros textos, na concepção bakhtiniana, vai além do sentido de citação, alusão ou estilização, passando a considerar as orientações que a obra segue e sua repercussão. Podemos, com isso, considerar a Literatura como um extenso diálogo entre obras, em que cada uma manifesta suas influências anteriores utilizando diferentes modulações de voz, onde “o narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, com o seu encantamento ou o seu desprezo” (Bakhtin 2006, p.154).

Bakhtin/Voloshinov (2006) sugere uma análise desse discurso internalizado:

O estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma investigação mais profunda das formas usadas na citação do discurso, uma vez que essas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa recepção, afinal, que é fundamental também para o diálogo. (Op. cit., p. 149)

A preocupação bakhtiniana com o discurso orientado para e pelo outro traz à luz a noção de diálogo e suas ramificações:

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mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 1998, p. 88).

O discurso, portanto, nasce do diálogo, questão que Bakhtin ressalta e que tanto a linguística quanto a filosofia da linguagem haviam desconsiderado até então. O conceito de diálogo para Bakhtin/Voloshinov (2006), porém, é mais amplo do que a simples comunicação entre dois indivíduos:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a

palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz

alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre, portanto, da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc (Op. Cit., p.125, grifo nosso).

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Essas expressões verbais do pensamento dão origem, consequentemente, a outros produtos estéticos, dando origem a um dialogismo externo com outros textos. Outra forma de dialogismo externo se dá pela polemização da obra, visada por todo artista que quer ter sua obra discutida, visto que, segundo Bakhtin:

[...] a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida

e “respondida” por outras vozes e de outras posições (1981, p. 73).

O autor dialoga, portanto, não somente com suas vozes internas, mas também pressupõe um leitor que dê sentido a sua obra:

A relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico. [...] A compreensão estreita do dialogismo concebido como discussão, polêmica, paródia. Estas são formas externas, visíveis, embora rudimentares, do dialogismo. (BAKHTIN, 1997, p. 351)

A formulação desse conceito bakhtiniano serviu como base para que Kristeva criasse o conceito de intertextualidade, a fim de solucionar a problemática das limitações do dialogismo ao expandir a noção de texto aos interlocutores, considerando o sujeito autoral não só como um ser biológico, mas um conjunto de formações discursivas, afirmando que

O texto literário se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a sociedade se escreve no

texto. [...] Sendo o interlocutor do texto, o sujeito também é um texto [...].”.

(KRISTEVA, 1974, p. 98-99)

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livros Problemas da poética de dostoiévski, de 1963, e A obra de François Rabelais, de 1965, de Bakhtin, o quanto a lógica da linguagem se diferencia da lógica científica tradicional, visto que a “palavra literária’ não é um ponto (um sentido fixo) mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário, ou da personagem), do contexto cultural atual ou do anterior.” (KRISTEVA, 1974, p. 62, grifos da autora).

Kristeva sistematiza este cruzamento das superfícies textuais em três dimensões (sujeito-destinatário-contexto) como um conjunto de elementos sêmicos em diálogo, ou como um conjunto de elementos ambivalentes:

O termo “ambivalência” implica a inserção da história (da sociedade), no texto, e do texto na história; para o escritor, são uma única e mesma coisa. Falando de

“duas vias que unem na narrativa”, Bakhtine tem em vista a escritura do corpus literário anterior, o texto como absorção de, e réplica a um outro texto [...]. Visto desta maneira, o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística. Bakhtin postula a necessidade de uma ciência, que denomina de translinguística e que, partindo do dialogismo da linguagem, lograria compreender as relações intertextuais [...]. (KRISTEVA, 1974, p. 67, grifos da autora.)

Ao afirmar que o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística, Kristeva abre a possibilidade de utilização de sua teoria para as diversas áreas da linguagem, razão pela qual seu conceito de intertextualidade é utilizado pelas diversas correntes teóricas vigentes. Kristeva ressalta que Bakhtin denomina diálogo e ambivalência como os dois eixos que definem o estatuto da palavra, termo que diversas vezes Kristeva trata como sinônimo de texto, visto que a noção de texto como o depositório de todas as virtudes e potencialidades da língua, antes atribuído à palavra e posteriormente à frase, é recente em termos epistemológicos em relação ao contexto de elaboração do conceito de intertextualidade.

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modificadora da palavra de outrem sobre a palavra do autor, representada pela palavra do narrador. Pela necessidade dessa estrutura de voz exterior, autor e narrador, Kristeva restringe, porém o uso de palavras ambivalentes para o romance, enquanto a intertextualidade se configura em uma ruptura que não é unicamente literária, mas também social, política e filosófica (1974, p. 70-72).

Kristeva utiliza o termo filosófico thétique, isto é, o que supõe a existência da consciência ou do que se afirma como ela, dando um caráter existencial à produção de sentido, mediante as limitações da percepção e da experiência, que são concebidas como ações lógicas e não são encontradas na teoria sintático-semântica formal, mas inseridas numa mesma teoria por seu nível transcendental, tética (nomeação) ou de síntese e dedução, o que leva a interpretação, em termos de “relações semânticas” ou “estruturas conceituais”, a depender de um sujeito em processo (1974b, p. 31-43).

Além da instauração da identificação do sujeito, Kristeva tinha uma preocupação de que a os estudos da intertextualidade passassem a ser uma simples crítica das fontes, dando preferência ao termo transposição:

Le terme d’inter-textualité désigne cette transposition d’un (ou de plusieurs) système(s) de signes en un autre; mais puisque ce terme a été souvent entendu dans le sens banal de « critique des sources » d’un texte, nous lui préférerons celui de transposition, qui a l’avantage de préciser que le passage d’un système signifiant à un autre exige une nouvelle artieulation du thétique - de la positionnalité énonciative et dénotative * (KRISTEVA, 1974b, p. 59, grifo da autora).

Segundo Laurent Jenny, apesar de Kristeva dar preferência ao termo transposição a fim de evitar apenas a crítica às fontes:

Herdamos então o termo ‘banalizado’, e que nos cabe tornar tão pleno quanto

possível. [...] A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando de sentido (1979, p. 15).

Para Jenny, a ameaça maior à definição da intertextualidade está na noção de texto e seu trabalho é enfraquecido quando se busca apenas identificar simples alusões e

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reminiscências, sem se verificar os efeitos de sentido, o que justifica a preferência ao termo intertextualidade, mesmo contrariando sua criadora.

Já o termo transposição [intersemiótica] é utilizado por autores como Claus Clüver e Leo H. Hoek. Clüver afirma não haver um termo para intertextualidade entreartes nem da relação de produção palavra-imagem (1997, p. 46), dentre elas a ekphrasis, ao lidar com a problemática da tradução:

Representações verbais de esculturas, pinturas, tapeçarias, trabalhos gráficos e fotografias, reais e imaginárias, são encontrados em muitas narrativas em prosa, e a imagem narrada de uma obra de arte existente pode muito bem ser considerada uma transposição (2006, p. 119).

Clüver também se utiliza do termo referência ao estabelecer relações entre textos verbais e imagens (2006, p. 134-148), assim como Hoek ressalta o quanto inúmeros tipos de textos, literários ou argumentativos, inspiram-se em fontes artísticas e têm um referencial pictural (2006, p. 167). Esta referência, segundo o autor, também pode causar o efeito de mise en abyme , isto é, uma narrativa dentro da outra, fenômeno que também aponta para a metalinguagem.

O estudo da transposição na visão de Clüver e Hoek, entretanto, aponta para uma supremacia do texto ou da imagem, analisando o que foi modificado na passagem de uma forma de arte para outra, enquanto Gérard Genette se preocupa com os efeitos que a intertextualidade produz no leitor. O autor a considera um dos cinco tipos de transtextualidade, ou transcendência textual do texto, definido como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos” (2006, p.7), e comenta suas virtudes:

Este estado implícito (e às vezes totalmente hipotético) do intertexto é, há alguns anos, o campo de estudos privilegiados de Michel Riffaterre, que definiu, em princípio, a intertextualidade de maneira muito mais ampla do que eu fiz aqui e aparentemente

extensiva a tudo isso que chamo de transtextualidade: “O intertexto”, escreve ele, por exemplo, “é a percepção pelo leitor de relações entre uma obra e outras, que a precederam ou as sucederam”, chegando até a identificar, em sua abordagem, a

intertextualidade (como fiz com a transtextualidade) à própria literariedade: “A

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Genette, entretanto, categoriza a citação como um outro tipo de transtextualidade, diferenciada do intertexto:

O segundo tipo é constituído pela relação, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. Não quero aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir, deste campo de relações que teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é certamente um dos espaços privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor [...] (Ibid., p. 9)

Dominique Maingueneau também diferencia o intertexto da intertextualidade: para ele, entende-se por intertexto de uma formação discursiva “o conjunto dos fragmentos que ela efetivamente cita e, por intertextualidade, o tipo de citação que esta formação discursiva define como legítima através de sua própria prática.” (MAINGUENEAU, 1997, p. 86).

Para Fiorin (1994, p.29), “o conceito de intertextualidade concerne ao processo desconstrução, reprodução ou transformação do sentido”. O autor traça uma classificação de intertextualidade em três processos: a citação, a alusão e a estilização (FIORIN, 1994, p. 30). O primeiro processo, a citação, transmite o intertexto de forma explícita para o leitor. Ela pode se manifestar mencionando a fonte, sob a forma de paráfrase, por exemplo, ou se materializando, como num quadro ou numa estátua. Já na alusão utiliza-se a mesma estrutura, porém se substituem alguns elementos, podendo polemizar ou não os temas em comum. A estilização, por fim, reproduz um conjunto de procedimentos, considerando o estilo como o conjunto das recorrências tanto no plano da expressão e no plano do conteúdo, “à maneira de”. (FIORIN, 1994, p. 31). Podemos notar nessa sistematização uma gradação do intertexto de menos para mais alterado.

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tanto da perspectiva da produção como da recepção” (2012, p.129). A autora elenca a problematização do discurso no discurso ou da enunciação na enunciação:

É o que explicita participação ativa do leitor (ouvinte, espectador) no processo. David Lodge menciona essa dimensão em vários momentos, iniciando pela expressão “faz lembrar”. A interação entre o leitor e o texto, e não apenas as formas encontradas pelo

autor para sinalizar o diálogo entre textos, é que possibilita a percepção das faces da intertextualidade, que promove a interdiscursividade, ou seja, a convocação de discursos, possibilitando que o processo se apresente como discurso sobre discurso e não apenas como texto a partir de texto. De alguma maneira, há conhecimentos prévios, conscientes ou não, que permitem atualizar um possível diálogo, cabendo aos profissionais do texto descrever as relações aí estabelecidas, os discursos que as constroem, os consequentes e diversificados efeitos de sentido possíveis (loc. cit., grifos da autora).

Podemos notar, portanto, que para um estudo do dialogismo, do discurso sobre o discurso ou da enunciação sobre a enunciação, faz-se necessário um estudo do contexto de recepção, além da tradicional análise do contexto de produção, que muitas vezes se confunde com a biografia do autor. Este tipo de análise, porém, descarta a ambiguidade entre ficção e vida, visto que um narrador não necessariamente exprime os pensamentos de um autor, assim como a grande maioria das obras não se limita à biografia e mesmo as biografias possuem um nível de subjetividade que pode “ficcionalizar” os fatos narrados. Ainda assim, os estudos biográficos sobre romancistas, por exemplo, tentam caracterizá-los como “leitores de”, como se a obra posterior fosse apenas uma sombra da lida pelo autor que pode ter lhe dado inspiração para a criação. Um exemplo clássico, é a comparação de Dom Casmurro, de Machado de Assis, com Otelo, O Mouro de Veneza, de William Shakespeare. É evidente que Machado de Assis conhecia a peça, que é citada diretamente no capítulo CXXXV: Otelo, em que Bento vai assisti-la. Centenas de estudos já foram realizados visando as relações intertextuais entre livro e peça, explorando detalhes mais específicos, como o nome da personagem ser uma junção de santo e Iago, como uma breve pesquisa sobre bibliografia acadêmica pode comprovar. Faz-se necessário, porém, atentar à capacidade do texto de provocar referências não explícitas, proporcionada pelas várias camadas narrativas intercaladas, a fim de não tratar a obra como apenas uma atualização de um tema ou uma simples releitura. Não visamos aqui retirar o mérito de tais estudos, porém a quantidade de estudos sobre o tema revela não só sobre as obras, mas também sobre seus leitores e o funcionamento do sistema de referências que acionam sua memória.

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arquétipos, ou até mesmo dentro de um sistema biológico de aquisição da linguagem em que o sistema de referências aciona as experiências particulares de cada sujeito.

O aspecto de memória, como já citado por Beth Brait, é explorado por David Lodge (1993, p. 98-103), que afirma que dentre as maneiras que um texto pode se referir a outro estão a paródia, o pastiche, o eco, a alusão, a citação direta e o paralelismo estrutural, e que os autores [de ficção] podem estar cientes ou não de que estes mecanismos estão presentes em suas obras, podendo inconscientemente utilizar arquétipos míticos ou fábulas, por exemplo.

Lodge também emprega o termo referência que, por sinal, é utilizado amplamente fora do ambiente acadêmico e exprime fortemente o conceito de intertextualidade em contextos de esclarecimento para leigos ou para iniciantes em seu estudo. O autor não diferencia a referência como sendo uma forma sutil ou explícita, mas um processo de recordação do leitor, que pode se manifestar através de ecos, alusões, provadas ou não em confronto com o autor, visto que pode ser resultado de uma reprodução inconsciente, ou ainda um efeito subliminar dessa alusão literária em leitores que leram a obra anterior e a esqueceram ou a conhecem apenas por citação seletiva.

David Lodge afirma ainda que a intertextualidade não consiste necessariamente em um adendo decorativo ao texto, mas pode se tornar um fator crucial em sua concepção e composição. Lodge elenca um outro fator ligado à intertextualidade, o qual ele capitaliza como “Oportunidade Perdida”, quando no curso de leitura, encontram-se ecos, antecipações e analogias do próprio trabalho autoral muito tempo depois que o último é concluído, tarde demais para se aproveitar a descoberta. Com essa afirmação, Lodge mais uma vez infere o quanto o processo de intertextualidade pode se manifestar de modo inconsciente. Da mesma forma que Kristeva afirma que a intertextualidade é uma manifestação da tradição, e a tradição por sua vez é o exercício da memória de um nicho cultural, podemos observar que, tanto para o autor quanto para o leitor, os mecanismos da memória tampouco funcionam de forma consciente em sua totalidade.

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Pensar a intertextualidade como memória permite reconhecer que os liames que se elaboram entre os textos não são atribuíveis a uma explicação ou um inventário positivista: mas isto não impede que se fique sensível à complexidade das interações existentes entre os textos, do ponto de vista da produção tanto quanto da recepção. A memória da literatura atua em três níveis que não se recobrem jamais inteiramente: a memória trazida pelo texto, memória do autor e a memória do leitor. (op. cit., p. 143)

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3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Mais estranho que a ficção possui duas tramas maiores, principais e mais extensas, e duas menores e secundárias, todas convergentes para o clímax do filme. A primeira, inicialmente, conta a vida da personagem principal, através de uma narradora com sotaque britânico (00h00min54s):

This is a story about a man named Harold Crick, and his wristwatch. Harold Crick was a man of infinite numbers endless calculations and remarkably few words. And his wristwatch said even less. Every weekday, for 12 years Harold would brush each of his 32 teeth 76 times. Thirty-eight times back and forth. Thirty-eight times up and down. Every weekday, for 12 years Harold would tie his tie in a single Windsor knot instead of the double thereby saving up to 43 seconds. His wristwatch thought the single Windsor made his neck look fat but said nothing. Every weekday, for 12 years Harold would run at a rate of nearly 57 steps per block for six blocks barely catching the 8:17 Kronecker bus. His wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind rushing over its face.*

Com a simultaneidade nessa cena entre narrador e imagem, há um tom irônico nas tomadas que deveriam demonstrar a visão de Harold sobre o mundo, com o destaque na primeira cena em que a câmera, como se tornasse forma de um narrador em primeira pessoa, ao invés de focar o espelho como se fossem os olhos de Harold, parece localizada em sua boca (00min 01s). Tanta importância dada a uma rotineira escovação de dentes contém três funções: a primeira, de rebaixamento de um herói, cujos atributos não estão ligados a uma força externa, cuja jornada não consiste em uma ida a uma terra distante, mas uma jornada interna.

Ocorre, portanto, um esvaziamento do protagonista, de forma que, no primeiro contato com o leitor, apenas essa casca seja revelada e a narrativa, como diz Bakhtin, arrancar seus véus, revelando novas facetas e preenchendo-o com novas características, seguindo a função transformadora da jornada do herói (1997, p. 27). A jornada de Harold se inicia quando ele perde controle de sua própria vida, representada por mais uma mudança de planos, desta vez

* Esta é a história de um homem chamado Harold Crick, e seu relógio de pulso. Harold Crick

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dos infográficos e dados que demonstravam este controle. Quando Harold atravessa a rua, não mais contando os passos, há uma materialização destes gráficos e eles caem: “é a vida deslocada do seu curso habitual” (Bakhtin, 1997, p. 126).

A segunda função da ênfase da escovação se dá por ser esse o momento em que a voz de Eiffel se revelará a Harold. Essa mudança na posição da narradora causa uma reação em cadeia que, como veremos, atingirá todas as personagens e afetará toda a realidade, tendo seu ápice no enfrentamento de Harold com Eiffel.

Há ainda uma terceira função: ao ser descrita minuciosamente, a representatividade da ficção é exacerbada. Visto que o filme é um produto estético de consumo e tem seu tempo de duração dentro de uma média de todos os outros, enquanto uma obra literária pode variar seu número de páginas a gosto de seu autor, assim como seu tempo de leitura também varia de acordo com seu leitor, a narradora poderia ter resumido os momentos iniciais da manhã de Harold, mas optou por um recurso bem mais literário do que cinematográfico.

Um espectador desatento pode ignorar a presença de mais uma personagem, o relógio de pulso, personificado por ter uma opinião sobre o laço da gravata e por ter uma sensação quando Harold corria para pegar o ônibus. Nesta última frase dita pela narradora, “His

wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind rushing over its face”, é gerada uma ambiguidade da natureza do relógio e de sua consciência de ser, visto que a palavra face também pode ser traduzida como rosto.

A narradora continua (00h02min15s):

And every weekday, for 12 years Harold would review 7134 tax files as a senior agent

for the Internal Revenue Service. […] Only taking a 45.7-minute lunch break and a 4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Only taking a 45. 7-minute lunch break and a 4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Beyond that, Harold lived a life of solitude. He would walk home alone. He would eat alone. And at precisely 11:13 every night Harold would go to bed alone placing his wristwatch to rest on the nightstand beside him. That was, of course, before Wednesday. On Wednesday, Harold's wristwatch changed everything.**

**Além disso, Harold vivia uma vida de solidão: ele caminhava para casa sozinho, ele comia

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Mais uma vez o relógio é descrito como portador de sensações e vontades, pois precisava descansar e causaria mudanças. Ele poderia ser equivocadamente considerado apenas como parte do cenário ou da constituição de Harold, pois numa primeira leitura do filme podem ser ignoradas as opiniões do relógio, que achava que o nó que Harold fazia na gravata engordava seu pescoço, mas não falava nada (1min 40s); que amava o vento fresco batendo contra seu mostrador (2min 03s) e que, como diz a narradora, mudou tudo na quarta-feira (3min 35s). É uma lasca de metal do relógio que impede a morte de Harold, obstruindo uma artéria, impedindo a hemorragia (1h 40min 24s). Caso não estivesse na estória desde seu início, o salvamento do herói poderia ser confundido com um recurso de deus ex machina, mas essa é a estória de Harold e seu relógio de pulso, como expõe a narradora na primeira frase do filme. Também é possível neste momento especular a onisciência da narradora, visto que ela demonstra saber o que acontecerá adiante, na quarta-feira.

O conceito de narrador onisciente é trabalhado por Gérard Genette em Figures III. Quando narradores ativam uma focalização onisciente é possível retomar fatos do passado (analepse), antecipar acontecimentos (prolepse), resumir eventos menos relevantes (sumário) ou suprimir fatos irrelevantes (elipse) (Genette, 1972, p. 82).

A principal função da analepse (a qual poderíamos chamar de flashback) é recuperar eventos cujo conhecimento se torne necessário para se conferir coerência interna à história, através de um movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores a seu início.

Já a prolepse, que poderíamos identificar na fala da narradora de Mais estranho que a ficção nestes momentos iniciais do filme, corresponde a todo movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência na história é posterior ao presente da ação, a fim de criar tensões. A prolepse não deve ser confundida com profecia ou com premonição, visto que ela é feita por um narrador que não interage com o protagonista, diferente do que veremos no decorrer da estória.

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espaço inseparáveis (1998, p. 211), entende-se por diegese o universo espaço-temporal no qual se desenrola a estória (Genette, 1972, p.48). Esse conceito deu origem à terminologia proposta por Genette sobre a voz do narrador, definindo-se pela instância de enunciação do discurso determinada: o narrador pode ser autodiegético, heterodiegético ou homodiegético (op. cit., p. 252-253).

O narrador autodiegético é o narrador-personagem que é o próprio protagonista da história. Geralmente ele se expressa em primeira pessoa e utiliza-se de prolepses, visto que, como já viveu os fatos contados, possui um grau de onisciência. Temos como exemplo o narrador Sérgio em O Ateneu, de Raul Pompéia, já homem maduro que relata o impacto do colégio em sua vida.

Já o narrador homodiegético viveu a estória como personagem e dessa experiência tirará as informações de que carece para construir seu relato. Ele observa e testemunha os acontecimentos de uma forma mais secundária na trama. Diferencia-se do narrador autodiegético por não participar da história como protagonista, participando na posição de simples testemunha ou como personagem secundária solidária com a personagem central. Temos como exemplo de narrador homodiegético o capitão Robert Walton, em Frankenstein, de Mary Shelley, que narra a estória através de cartas para sua irmã. Este tipo de narrador é recorrente na literatura fantástica, visto que a incompletude do conhecimento dos fatos gera uma dúvida que traz o questionamento da realidade.

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e neo-realistas e projeta em suas obras códigos ideológicos e temas que se articulam com esses códigos, como pode ser conferido nos romances de Eça de Queirós, Flaubert, Tolstoi e grande parte dos narradores do século 19.

Tendo em vista essa terminologia, poderíamos (ou podemos, até este momento) classificar a narração inicial do filme como heterodiegética, e consequentemente extradiegética. Porém, na interação entre a narradora e o protagonista, essas categorias dão-se por terra, por não terem previsto a desconstrução do mundo ficcional através da metalinguagem e do fantástico, visto que a metalinguagem é muito mais explorada como uma manifestação da crítica literária (BARTHES, 2007, p. 27) ou como uma reflexão sobre a língua (CAMPOS, 2006, p. 17-29), e o fantástico, por outro lado, tem como característica enriquecedora sua variedade temática.

Genette, entretanto, define como narrativa intercalada aquela onde vários atos narrativos são intercalados entre eventos (1972, 229). O autor considera este o mais difícil e complexo modo de narrar, dada a necessidade de emaranhar as estórias, e é possível notarmos isso em Mais estranho que a ficção nos momentos em que, aparentemente sem nenhuma relação com a trama principal, são mostrados um garoto ganhando uma bicicleta e uma mulher procurando emprego (00h03min44s). Essas duas personagens, anônimas e não narradas, conduzirão as duas tramas menores, quase imperceptíveis numa primeira leitura do filme. A alternância dessas tramas é o princípio da montagem alternada paralela, onde, como explica Marcel Martin (2005), “duas (e por vezes várias) ações são conduzidas pela intercalação de fragmentos, pertencendo alternadamente a cada uma delas, com o objetivo de fazer surgir um significado da sua confrontação (MARTIN, 2005, p. 200).

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lembrar das cenas finais do último sonho, Harold apenas contava as escovadas”. Harold fica mais assustado, já que alguém sabe seus pensamentos.

A narradora continua descrevendo as ações de Harold, que perturbado pela voz, não consegue desempenhar as ações do cotidiano, do simples ato de se vestir até a conversa com colegas de trabalho, assim como em todas as vezes em que ele interrompia algo, a voz também cessava a narração.

Nessa cena, onde há a apresentação do elemento insólito mais evidente do filme (e segunda manifestação, se considerarmos o relógio coma personagem), existe um contraste entre a função da narração no cinema e a do silêncio. Enquanto

[...] a voz fora de campo abre ao cinema o rico domínio da psicologia em profundidade, tornando possível a exteriorização dos pensamentos mais íntimos (monólogo interior); o silêncio encontra-se promovido como valor positivo, e sabe-se muito bem a função dramática considerável que pode desempenhar como símbolo da morte, de ausência, de perigo, de angústia ou de solidão. O silêncio, muito melhor do que uma música atordoadora, pode sublinhar com força a tensão dramática de um determinado momento (MARTIN, 2005, p. 144, grifos do autor).

Harold conversa com um colega de trabalho, que não escuta a voz. Complacente com sua situação, seu amigo sugere que Harold vá auditar uma padaria, achando que seria um trabalho mais tranquilo. Harold, porém, é hostilizado pela dona da padaria, Ana Pascal, e vaiado por sua clientela, sendo que um desses clientes chega a apontar uma faca em sua direção. Após um diálogo com Ana sobre sua sonegação de impostos, Harold é mais uma vez assombrado pela narradora:

(00h11min56s) It was difficult for Harold to imagine Ms. Pascal as a revolutionary. Her thin arms hoisting protest signs. Her long shapely legs dashing from tear gas. Harold wasn't prone to fantasies and so he tried his best to remain professional. But, of course, failed. He couldn't help but imagine Ms. Pascal stroking the side of his face with the soft blade of her finger. He couldn't help but imagine her immersed in a tub shaving her legs. And he couldn't help but imagine her naked, stretched across his bed.

*

* Era difícil para Harold imaginar a Srta. Pascal como revolucionária. Seus braços finos

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Nesse momento, a natureza da narração e o livre arbítrio de Harold são colocados em cheque, pela dúvida se o texto narrado verbaliza os pensamentos do protagonista, ou se a narração é o que o faz agir. Ele contesta a narração:

(13min19s) [Narradora:] - Harold suddenly found himself beleaguered and exasperated - outside the bakery…

[Harold: ] - Shut up!

[Narradora:] - … cursing the heavens in futility.

[Harold: ]- No, I'm not, I'm cursing you, you stupid voice! So shut up and leave me alone! **

Ele se contradiz, porém, pois grita para o alto, como disse a narradora, não necessariamente para os céus. O primeiro conflito dentro da narrativa para o protagonista é estabelecido: Quem narra? Enquanto isso, para o espectador há um novo questionamento: O que é real? Entretanto, mesmo que resolvido o conflito de que Harold é uma invenção de Eiffel, ou vice-versa, ambos são construtos: tudo dentro da obra é ficção ou, no máximo, representações.

** [Narradora:] Harold, de repente, viu-se sitiado e exasperado, fora da padaria...

[Harold]: - Cale a boca!

[Narradora:] - ... amaldiçoando os céus futilmente.

Imagem

Fig 1: corpo de Evelyn McHale, (Robert C. Wiles, 1947)  Fig. 2: Suicide (Fallen Body), Andy Waröl
Fig. 3 e 4 : A “morte” de Harold
Fig. 6 : Ceci n’est pas une pomme - René Magritte  Fonte:   http://www.rene-magritte.org/rene-magritte-paintings.jsp
Fig. 7 e 8: O encontro de Harold Crick e Karen Eiffel

Referências

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