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A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes

Karen fala sobre uma fotografia que viu em um livro chamada The Leaper (traduzido como “A Suicida” na legenda do filme, mas com o sentido de “saltadora” numa tradução mais literal):

“It's old, but it's beautiful. From above the corpse of a woman who'd just leapt to her death. There's blood around her head, like a halo and her leg's buckled underneath, her arm's snapped like a twig, but her face is so serene, so at peace. And I think it's because when she died she could feel the wind against her face.” (16min 13s) *

Apesar de essa fotografia não estar presente no filme nem ter seu autor definido, há uma forte relação dialógica com a famosa fotografia da modelo (fig. 1) capturada por Richard Wiles para a revista Life em 12 de Maio de 1947 e republicada na coletânea organizada por David E. Scherman, The Best of Life (1973), que posteriormente foi utilizada por Andy Waröl em sua obra Suicide (Fallen Body). A altivez do rosto de Evelyn também é ressaltada por Dillenberger em Religious Art of Andy Warhol, na análise do quadro de Waröl: “The model is serene and whole in death, her body cradled on the indented top of a car, her face tranquil, her body relaxed, her white gloved hand touching her pearls.” (DILLENBERGER, 2001, p. 67) *

*

“É antiga, mas é linda. De alto [se vê] o cadáver de uma mulher que tinha acabado de pular para a morte. Há sangue em volta da cabeça, como uma auréola e sua perna está dobrada para baixo, seu braço está quebrado como um galho, mas seu rosto está tão tranquilo, tão em paz. E eu acho que é porque quando ela morreu, ela podia sentir o vento contra o rosto* (tradução nossa).

*“A modelo está serena e completa na morte, seu corpo embalado [como num berço] no teto retorcido de um carro, seu rosto

Fig 1: corpo de Evelyn McHale, (Robert C. Wiles, 1947) Fig. 2: Suicide (Fallen Body), Andy Waröl

Além do efeito de alusão, a écfrase ou ekphrasis, isto é, a descrição de uma obra ou objeto, desempenha uma forte função no discurso literário. Temos como exemplos a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada, as bandeiras em Os Lusíadas, e o texto de abertura de

Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, onde é descrito o quadro da crucificação,

que acontecerá no final do livro. Também na obra de Saramago existe a descrição de uma igreja em Ensaio sobre a Cegueira em que todos os santos descritos estabelecem uma relação de sentido com a narrativa. Essa interrelação entre literatura e artes plásticas reforça o argumento de Claus Clüver de que a intertextualidade se manifesta além do texto escrito e os textos literários servem como objetos propícios a estudos interartes:

Tão logo reconheçamos que poemas, pinturas ou sinfonias não sejam textos autônomos ou auto-suficientes e que não sejam intrinsecamente ou essencialmente românticos, impressionistas ou simbolistas; tão logo reconheçamos a importância do “ler como” (reading as) e do papel do leitor no processo de estabelecer o status e o sentido dos textos; tão logo nos apercebamos da importância das intertextualidades no processo de leitura e tão logo readmitamos o poeta/artista/compositor/produtor de textos aos contextos em que percebemos o texto – a partir de então incluiremos em nossas investigações históricas a tarefa de reconstrução das preocupações e programas estéticos, dos modos de representação, das convenções estilísticas estruturais

relevantes (ou supostamente relevantes) para o artista, seus modelos negativos ou positivos; e poderemos propor as mesmas tarefas no domínio do público que recebia as obras. (CLÜVER, 1997, p. 40-41).

Assim como Todorov desenvolve que as alusões possuem um outro sentido dentro do fantástico, Clüver afirma que

Ekphraseis literárias não operam com tais restrições, mesmo sendo baseadas em obras reais; a maioria delas tendem a atingir autonomia em relação ao texto-fonte, o qual transformam de acordo com as necessidades do texto literário onde funcionam. (Ibid., p.42)

Fig. 3 e 4 : A “morte” de Harold

Nesse caso, além de inferir que a criação provém de uma fonte externa de inspiração, o quadro causa uma convergência de discursos sobre a morte, tratada como uma casualidade poética e libertadora, que se concretizará na autotextualidade de Karen na concepção da morte de Harold. As citações do quadro da suicida, partindo do pressuposto de Fiorin que se pode alterar ou confirmar o sentido do texto citado ou fazer uma citação por outra semiótica (2003, p. 30-31), aparecem de forma verbal, como já citamos, e plástica, no atropelamento de Harold (fig. 3 e 4): as pernas de Harold também se emborcam para baixo do corpo, assim como seu braço parece um galho quebrado, além da tomada aérea que confere com a descrição do quadro da suicida descrito por Karen.

Somada às imagens do começo do filme, que mostram uma motorista de ônibus ganhando seu uniforme, um garoto ganhando uma bicicleta e das maçãs rolando quando Karen sai para comprar cigarros (1:12:00), nota-se que no fantástico nada é mostrado por acaso, há um pandeterminismo, onde “tudo, até o encontro das diversas séries causais (ou “azar”), deve ter sua causa, no sentido pleno do termo, mesmo que esta não seja porém de ordem sobrenatural” (TODOROV, 1981, p. 59).

Nesse momento, porém, mais importante do que identificar esses elementos de coesão do filme, é perceber que além da incorporação da voz de outro na materialidade dessa cena e da confrontação (no sentido de resposta) de um discurso anterior, há um conceito ideológico que foi polemizado pelo filme: a função da morte não só sob uma perspectiva de sacrifício, numa discursividade de um ideal romântico, mas também, como Bakhtin também defende (1997a, p. 35), uma forma de acabamento do herói e da obra em que ele está inserido.