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Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção

Após falar sobre uma fotografia, Karen diz que não sabe como matar Harold Crick. Penny descreve suas aptidões profissionais e diz que irá ajudá-la nessa empreitada (16min52s). O filme se volta novamente para Harold, que é convocado a falar com Dr. Cayly, num tom estranhamente informal, no departamento de recursos humanos da empresa. A narradora retorna, voltando o pensamento de Harold novamente para Pascal. As nuvens pintadas na parede atrás de Harold começam a se mover, sugestionando um elemento onírico ao espectador. Ao fechar os olhos, Harold é interrompido pelo médico, que lhe sugere tirar férias.

Já na rua (20min 10s), o relógio de Harold começa a tocar e mostrar pontos de exclamação em seu visor. Ana Pascal é vista passando pelo outro lado da rua como se a câmera estivesse dentro do relógio, atrás de sua lente. É ressaltado, mais uma vez, um dos elementos fantásticos presente no filme: a vontade própria do relógio e seus sentimentos antropomorfizados. Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, numa análise do conto A princesa Brambilla, de Hoffmann, faz uma análise sobre a presença das lentes no universo do fantástico:

[...] significativamente, toda aparição de um elemento sobrenatural vai acompanhada da introdução paralela de um elemento pertencente ao campo do olhar. Trata-se, em particular, das lentes e do espelho que permitem penetrar no universo maravilhoso (1981, p. 64).

A lente do mostrador do relógio faz, portanto, que o espectador veja o mundo pela perspectiva do relógio, um objeto que não tem olhos tampouco tem qualquer função relacionada à visão. Seus pensamentos continuam a ser descritos pela narradora:

Harold supôs que seu relógio estava simplesmente com defeito e nem sequer considerou que ele poderia estar tentando lhe dizer algo. De fato, Harold nunca prestara muita atenção nele, exceto para ver as horas, o que, na verdade, deixava o relógio maluco.

E assim, neste particular começo de noite, enquanto Harold esperava o ônibus, seu relógio, de repente, parou.

Harold pergunta as horas às outras pessoas que esperam o ônibus, e ajusta seu relógio para as seis horas e dezoito minutos. Após isso, a narradora continua: “Thus Harold's watch thrust him into the immitigable path of fate. Little did he know that this simple, seemingly innocuous act would result in his imminent death.”* (21 min 00s).

Ao ouvir a última frase Harold se desespera, gritando para o alto e perguntando quando e quão iminente. Ao chegar em casa, Harold começa a procurar a narradora pela casa, e ele mesmo começa a narrar suas ações, depredando seu próprio apartamento:

Okay, where are you?

“Harold would brush his 32 teeth 72 times.” Why won't you say anything? I heard you. “That would result in his imminent death.” I heard you! Come on, you stupid voice.

“Harold frantically grabbed his lamp. Harold, incensed, shook the hell out of it for no apparent reason! And smashed it on the ground, kicking it repeatedly! Harold took his Kleenex box, threw it across the room then stormed the closet!” Come on. Say something. Something. Say something! Say something! “Harold, distraught... God!....Harold, distraught...Harold”*

Ao narrar seus próprios atos, Harold usa palavras que não usaria no dia a dia, revelando traços de polifonia presentes no filme, pelas diferentes vozes conflitantes. Há também nessa cena um confronto com o espelho. Este objeto, muito caro ao cinema pela sua utilização, é considerado uma temática à parte, como ressalta Martin:

* “E assim o relógio de Harold o empurrou ao imitigável caminho do destino. Mal sabia ele que esse simples e

aparentemente inócuo ato resultaria na sua morte iminente” (tradução nossa).

*

[Harold:] - Ok, onde você está?

“Harold escovava os 32 dentes 72 vezes.” Por que não fala nada? Eu ouvi você. “Aquilo resultaria em sua morte iminente.” Eu ouvi você! Ande, voz idiota!

“Harold freneticamente agarrou seu abajur. Harold, indignado, chacoalhou-o como o inferno, sem razão aparente. E o esmagou no chão, chutando-o repetidamente! Ele pegou a caixa de [lenços de papel] Kleenex, e jogou pelo quarto... e então invadiu o armário!”

Vamos. Diga alguma coisa. Algo. Diga alguma coisa! Diga alguma coisa! “Harold, perturbado...” Deus!

[...]o [tema] do espelho, janela aberta sobre um mundo misterioso e angustiante (ver o espelho de “Der Student von Prag” - O Estudante de Praga, onde se vê o duplo do protagonista, ou aquele que, num dos episódios de “Dead of Night” - A Dança da Morte, restitui um passado que antigamente fazia parte das suas funções), ou então testemunho impassível e cruel das tragédias humanas (ver aquele espelho onde se multiplica o desespero de “Cidadão Kane” (2005, p. 82, observação do autor).

O espelho também é um objeto caro à Literatura Fantástica, colocado por Todorov como tão importante quanto as lentes:

O mesmo acontece com o espelho (em francês, miroir), esse objeto cujo parentesco com “maravilha” [etimologicamente se origina] por uma parte, e olhar (“olhar-se”) por outra [...] A verdadeira riqueza, a verdadeira felicidade (e estas se encontram no mundo do maravilhoso) só são acessíveis aos que conseguem se olhar no espelho [...] A “razão”, que rechaça o maravilhoso e também renega ao espelho, sabe bem. A “razão” se declara contra o espelho, que não oferece o mundo, a não ser uma imagem do mundo, uma matéria desmaterializada em uma palavra, uma contradição frente à lei de não-contradição. [...] Olhar através de lentes permite descobrir outro mundo e falseia a visão normal; o transtorno é semelhante ao produzido pelo espelho. A visão pura e simples nos descobre um mundo plano, sem mistérios. A visão indireta é a única via para o maravilhoso. Mas esta superação da visão, esta transgressão do olhar, não são por acaso seu símbolo mesmo e algo assim como seu maior elogio? As lentes e o espelho se convertem na imagem de um olhar que já não é um simples meio de unir o olho com um ponto do espaço, que já não é puramente funcional, transparente, transitiva. Estes objetos são, em certa medida, olhar materializado ou opaco, uma quintessência do olhar. Por outra parte, a palavra “visionário” contém a mesma ambiguidade fecunda: é aquele que vê e não vê, e é de uma vez grau superior e negação da visão. (1981, p. 64, grifos do autor)

Nesse sentido, Mais estranho que a ficção possui os tipos menos convencionais de lentes: na cena inicial, em que Harold escova os dentes, a câmera é mostrada como se estivesse dentro de sua boca. Ao entrar correndo em casa, procurando pela voz, Harold é mostrado pelos furos de vazão do chuveiro. Após isso, Harold olha para o espelho, procurando algo além de si mesmo. A câmera o mostra de frente, como se o espectador o visse através do objeto, mas o olhar da personagem vagueia, ele se olha, mas não se vê.

Impossibilitado de trabalhar, Harold consulta uma analista, ainda não acreditando totalmente estar louco, numa possibilidade de racionalização do elemento fantástico. Essa dúvida, tanto para Harold quanto para o espectador, consiste, segundo Todorov, em uma forte característica do fantástico, visto que, para o autor, este gênero ocupa o tempo desta incerteza (TODOROV, 1981, p. 15). Harold recebe, então, seu diagnóstico:

(22 min 56 s): [Dra. Mittag-Leffler:] – I'm afraid what you're describing is schizophrenia.

[Harold:] – No. No. It's not schizophrenia. It's just a voice in my head. I mean, the voice isn't telling me to do anything. It's telling me what I've already done. Accurately and with a better vocabulary.

- Mr. Crick, you have a voice speaking to you.

- No, not to me, about me. I'm somehow involved in some sort of story. Like I'm a character in my own life. But the problem is that the voice comes and goes. Like there are other parts of the story not being told to me and I need to find out what those other parts are before it's too late.

- Before the story concludes with your death. - Yes.

- Mr. Crick, I hate to sound like a broken record but that's schizophrenia.

- You don't sound like a broken record, but it's just not schizophrenia. What if what I said was true? Hypothetically speaking, if I was part of a story, a narrative even if it was only in my mind what would you suggest that I do?

- I would suggest you take prescribed medication. - Other than that.

- I don't know. I suppose I would send you to see someone who knows about literature.

- Okay. Yeah. That's a good idea. Thank you.*

A hesitação sobre a sanidade de Harold pelas personagens que o cercam, e também pelo espectador, marcam mais um dos elementos do fantástico, que Todorov define o como uma “percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 1981, p. 49). Além do relógio, o acontecimento estranho mais marcante que marcará o primeiro conflito do filme acontece quando Harold começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos: ocorre a transformação da narradora, que já se pronunciava desde os primeiros segundos de filme e

*[Dra. Mittag-Leffler:] – Temo que o você está descrevendo é esquizofrenia.

[Harold:] – Não, Não é esquizofrenia. É só uma voz na minha cabeça. Quer dizer, a voz não está me dizendo para fazer nada, está me dizendo o que já fiz. Com precisão e com um vocabulário melhor.

– Sr. Crick, você tem uma voz falando com você.

– Não, não comigo. Sobre mim. Estou de alguma forma envolvido em algum tipo de estória. Como se eu fosse Uma personagem na minha própria vida. Mas o problema é que a voz vem e vai. Mas há outras partes da estória não contadas a mim e preciso saber o que essas outras partes são antes que seja tarde demais.

– Antes que a história conclua com a sua morte. – Sim.

– Sr. Crick, detesto soar como um disco furado, mas isso é esquizofrenia.

– Você não soa como um disco furado, mas só não é esquizofrenia. E se o que eu disse fosse verdade? Hipoteticamente falando, se eu fosse parte de uma estória, uma narrativa mesmo que fosse só na minha mente, o que você sugeriria que eu fizesse? – Sugeriria que tomasse medicação prescrita.

– Além disso.

– Não sei. Suponho que o enviaria para alguém que conhece literatura. – Ok. Essa é uma boa ideia. Obrigado.

não causava estranhamento para o espectador, deixando de ser um elemento estético e se tornando mais uma personagem.

Mesmo em face do estranho, Harold se preocupa em não perder o ônibus para o trabalho, assim como pensa Gregor Samsa, em A Metamorfose, de Franz Kafka, que se preocupa em ter perdido o trem para também ir trabalhar, ainda que transformado em barata. A escolha de estereótipos de burocratas como personagens reflete uma preocupação em apresentar aspectos reconhecíveis e até enfadonhos de suas rotinas. Estes traços de realidade preparam o leitor para o surgimento do fantástico, que produzem na obra um efeito de questionamento dessa existência, o que, porém, não é feito tão prontamente por seus protagonistas, que tentam manter seus hábitos.

Visões estereotipadas também são exploradas nas características de Karen Eiffel (Emma Thompson): magra, fumante, melancólica, introspectiva, podendo lembrar Virgínia Woolf ou Clarice Lispector. Além disso, como ressaltam Ana Lucia Trevisan e Maria Luiza Guarnieri Atik numa análise da narrativa onírica na obra de Rubens Figueiredo, “a presença de personagens introspectivas provoca a desestabilização de um entendimento de mundo mais imediato, tal aspecto conjuga-se às formulações de enredos permeados pelas inquietações, pelas dúvidas e pelas manifestações da ambiguidade” (ATIK; TREVISAN, 2012).

Quando Karen revela que está em crise criativa por não conseguir terminar sua obra. Um espectador mais atento entenderá que Karen é uma escritora e Harold é uma personagem de seu livro. Consequentemente, essa elucidação gera mais dúvidas: trata-se de uma narrativa paralela ou de um recurso de mise en abyme (ou nested narrative) isto é, uma história dentro da outra? O aparecimento de Eiffel como personagem coloca em xeque a “existência” de Harold: a materialidade de um traz o questionamento da materialidade do outro, assim como da própria ficção, que reflete sobre si própria, criando uma metaficção.

Na hipótese da mise en abyme, temos o trabalho de Lucien Dällenbach sobre o recurso. Dällenbach afirma que limitar a tipologia intertextual a pares paradigmáticos acaba restringindo o campo de seu estudo, e propõe analisar os autotextos segundo sua abrangência. Sendo assim, a mise en abyme funciona no nível da narrativa e no da reflexão, em que ele intervém como elemento duma meta-significação, podendo ser considerado uma citação de

A utilização da mise en abyme, segundo Dällenbach, implica em duas operações distintas: “uma redução (ou estruturação por engaste) e uma elaboração do paradigma de referência (ou estruturação por projeção no eixo sintagmático dum “equivalente” metafórico)” (op. cit., p. 55), ou seja, se haver uma hierarquização das obras, como uma dentro da outra, ou uma mais próxima do nível do real enquanto a outra mais ficcionalizada, o rompimento das estruturas da estória se torna iminente. Essa idéia de destruição é tão forte que na teoria do teatro utiliza-se a expressão quebrar a quarta parede quando, por exemplo, o ator fala com seu público, o que não impede, porém, de que a personagem que sabe que está numa obra de ficção seja vista como louca pelas outras dentro da obra, visto que a reposta, quando dada, não é ouvida por todos.