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A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo

3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo

Essas representações, no viés da mimesis, não têm a obrigação de necessariamente refletir o real, como elucida Aristóteles:

[...] É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, segundo, verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário. (ARISTÓTELES, 2004, p. 43)

Aristóteles também considera possível o poeta não apenas criar, mas também relatar fatos históricos e fábulas, porém ao imitar a ação em seu conjunto, o poeta, diferentemente do historiador, desperta terror e compaixão. Evidentemente, para Aristóteles o conceito de poeta não é restrito ao autor de poesias, mas a todo autor de ficção, e é definido pela sua missão: “[...] consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela imitação, e porque imita as ações” (Idem, p. 45). Esse conceito em muito também se aproxima da função do narrador:

Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias (ARISTÓTELES, 2004, p.28).

Tendo em vista as formulações de Aristóteles (nota-se que Aristóteles já esboçava uma categorização dos narradores que se aproxima daquela feita por Gennete), pode-se entender personagens e narradores como representações estéticas: as personagens mimetizam pessoas, enquanto os narradores projetam consciências que pairam seus olhares sobre elas. Mesmo as personagens que representam figuras históricas possuem na imitação alterações que as tornam sujeitos ficcionalizados, seja pela idealização exagerada, seja pela sátira, visto que o discurso e a enunciação são subjetivos e, portanto, ideologicamente moldados. Ainda a fotografia, que deveria retratar a realidade com precisão, possui traços de subjetividade pelas escolhas feitas pelo fotógrafo, como explana Roland Barthes em A câmara clara (1984).

Barthes também questiona a representação do real, neste caso dentro da Literatura, em

Aula:

O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável — mas somente demonstrável — pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. [...] a literatura é categoricamente realista, na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo; [...] ela é também obstinadamente: irrealista; ela acredita sensato o desejo do impossível (BARTHES, 2007, p. 21).

Massaud Moisés utiliza representações como uma das definições da personagem de romance. Para ele, “personagens são ‘pessoas’ que vivem dramas e situações, à imagem e semelhança do ser humano, ‘representações’, ‘ilusões’, ‘sugestões’, ‘ficções’, ‘máscaras’, de onde ‘personagens’ (do lat. persona, máscara)” (Moisés, 2001, p. 226, grifo do autor). Moisés, entretanto, restringe ao romance a necessidade de haver uma personagem humana, diferente das fábulas e mitos, onde as personagens são representações de atitudes: mesmo um objeto inanimado, se não tiver sido antropomorfizado, reflete um olhar humano sobre ele.

A referência que Moisés faz às máscaras como formas de representação remontam à origem das narrativas verbais que, sobretudo no mundo ocidental, tomaram sua forma no teatro grego e nos poemas épicos, oriundas dos textos de tradição oral transmitidos através dos tempos. Apesar de esses dois gêneros não tomarem a forma da prosa narrativa, visto que um se materializa através da dramatização enquanto o segundo apresenta-se em versos, ambos apresentam em comum os elementos predominantes do romance, isto é: enredo, personagens, tempo e espaço, enquanto o narrador se encontra subentendido e distante dos acontecimentos, isto é, apenas os relata. Também sobre a questão dos gêneros, em A teoria do Romance, George Lukács afirma que

Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração. O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade. (LUKÁCS, 2000, p. 55).

Também Tzvetan Todorov afirma que “um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação” (TODOROV, 1980, p. 46). Também sobre os gêneros, Bakhtin/Voloshinov ressalta que “cada

época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio- ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas” (2006, p. 42). Sendo assim, podemos afirmar que a narrativa moderna é o resultado da transformação da epopéia, tendo como tema principal nesta forma de criação estética o herói que ainda busca sua identidade.

Em seu estudo sobre a questão da identidade, Stuart Hall considera o homem como detentor de uma identidade formada a partir do Iluminismo. Antes disso, segundo Hall, acreditava-se que as tradições e estruturas eram “divinamente estabelecidas [...]. O status, a classificação e a posição de uma pessoa na grande ‘cadeia do ser’ – a ordem secular e divina das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo soberano” (HALL, 2003, p. 25).

Considerando as grandes obras ocidentais anteriores ao Iluminismo, percebemos que o homem na ficção de fato é representado como um realizador das vontades divinas, desde os mitos e os textos clássicos provindos da tradição oral. Essas narrativas clássicas, mitológicas ou religiosas, se dividiam, principalmente: nos mitos cosmogônicos, isto é, aqueles que relatavam a origem de seres e elementos da natureza, como, por exemplo, as Metamorfoses de Ovídio; nas grandes jornadas, dentre as quais podemos destacar a Odisséia e a Ilíada de Homero, estendendo-se às obras do medievo também provindas desse mesmo tipo tradição, como as novenas da cavalaria, ou àquelas concebidas diretamente no texto escrito, como na

Divina Comédia, de Dante Alighieri, além de outras manifestações deste gênero épico, como

em Os Lusíadas, de Camões. Desta forma, as epopéias consistem nas jornadas de povos, seja em busca da terra prometida, das grandes guerras, do momento da formação de um país ou nação ou do retorno ao lar ou da busca pelo pai pelo herói.

A transformação da epopéia para o romance passou a depender não só da visão do homem sobre si, mas também do modo de construção do discurso. Para Bakhtin, o ponto principal para a formação do gênero narrativo se deu pelo desenvolvimento do uso do discurso indireto livre, presente, como exemplificado pelo autor, nas fábulas e contos de La Fontaine (Bakhtin , 2006, p. 157). Também a afirma Bakhtin que

Na maior parte dos casos, porém, e especialmente naquela área em que o discurso indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço – a área da nova ficção em prosa – a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível. Além disso, o próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção, pelos grandes gêneros literários em prosa, de um registro mudo, ou seja, para leitura silenciosa. Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos planos e a complexidade, intransmissível oralmente, das estruturas entoativas tão características da literatura moderna (Bakhtin/Voloshinov, 2006, p. 197).

A consolidação dos gêneros literários em prosa, portanto, permitiu que um maior número de destinatários, sob a forma de leitores e não somente de espectadores e ouvintes, tivesse acesso às narrativas. A evolução do gênero permitiu também que a narrativa servisse como instrumento de criação estética assumidamente ficcional, podendo, desta forma, apresentar representações de novos mundos. Para Bakhtin,

A grande forma épica (a grande epopéia), que abrange também o romance, deve proporcionar uma imagem de conjunto do mundo e da vida, deve refletir o mundo e a vida por inteiro. O romance deve apresentar a imagem global do mundo e da vida pelo ângulo de uma época considerada em sua integridade. Os acontecimentos representados no romance devem, de um modo ou de outro, substituir toda a vida de uma época. (Bakhtin, 1997, p. 264, grifos do autor)

Bakhtin ressalta, porém, que não era possível representar um “mundo inteiro” no romance até o Renascimento porque nem mesmo o mundo real era conhecido em sua totalidade, além do que o fantástico não visava outros mundos, mas completar aquele em que se vivia (Idem, p. 265). Em Estética da criação verbal, o filósofo traça um panorama histórico do romance, assim como em Problemas da poética de Dostoiévski. Nessa obra, Bakhtin define o romance polifônico: é aquele marcado pela existência de “um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. (...) É como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis.” (1981, p.5, grifos do autor).

Em Mais estranho que a ficção notamos que os mecanismos da polifonia não se restringe ao mundo literário: temos o discurso do autor, pelas escolhas de filmagem, foco, câmera, e película e trilha sonora, dentre outros recursos, e a voz da narradora, que se difere da voz do autor quando se torna personagem, e a voz do protagonista, que enfrenta a narradora.

A maneira mais comum de representar diálogos em filmes se dá pela alternância de tomadas que vetorizam o olhar dos interlocutores, isto é, uma personagem fica situada à esquerda da imagem e olha para a direta, enquanto a personagem do lado direito tem seu rosto voltado para o lado esquerdo da imagem. Essa escolha de imagens, segundo Martin, reflete o posicionamento das personagens na narrativa:

Quando não são diretamente justificados por uma situação ligada à ação, os ângulos de filmagem excepcionais podem adquirir um significado psicológico particular. [...] O plano picado (filmagem de cima para baixo) tem tendência para tornar o indivíduo ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo, fazendo dele um objecto levado por uma espécie de determinismo impossível de ultrapassar, um brinquedo do destino (MARTIN, 2005, p. 51).

Quando Harold grita para cima, há uma resposta. A câmera se afasta dele em movimento de ascensão, sem desfocá-lo. A próxima tomada dá continuidade a esse movimento, com a câmera já em um ângulo alto, mostrando uma mulher na ponta de um parapeito de um prédio, olhando para baixo, numa vetorização oposta à de Harold. Ela tem as mãos estendidas e as move como se sentisse algo dentre os dedos ou como movesse algo. É mostrada uma calçada sendo lavada por um homem, e a mulher anônima que procurava emprego no começo do filme é molhada por ele por culpa do garoto que ganhou uma bicicleta nos minutos iniciais.

A mulher no topo do prédio, interpretada por Emma Thompson, é mostrada novamente, com uma trilha sonora que ressalta a tristeza em seu rosto. Ela apaga o cigarro, guarda-o no bolso com um outro, e seu pé escapa do parapeito, não se sabe se intencionalmente ou por acidente.

A imagem do prédio é sobreposta pela imagem de uma mão estendida, e as linhas das paredes do edifício parecem se ligar às pontas de seus dedos, que se movem como se manipulassem uma marionete, produzindo efeitos ao mesmo tempo de metáfora fílmica e de estado onírico. O efeito de metáfora no filme é atingido pelo confronto entre as imagens através da sobreposição, “que exprime [...] uma compenetração perceptiva, permitiu belos efeitos psicológicos (expressão do sonho, de alucinação) e simbólicos” (Martin, 2005, p.233).

A mulher é interrompida por uma voz que pede licença, e as linhas agora são a moldura da janela. Uma mulher negra aparece em frente a essas linhas, com o foco sendo

ajustado se como a voz despertasse a primeira mulher, que ao invés de estar no topo de um prédio, está sobre uma mesa. A mulher negra, interpretada por Queen Latifah pergunta se a mulher sobre a mesa se chama Eiffel. Com a confirmação, a recém chegada se apresenta como Penny Escher, enviada pela editora como assistente. Karen protesta, dizendo que Penny foi enviada por acharem que ela está com bloqueio criativo.