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Cozinhando novos espaços educativos: Efervescências e processualidades do cotidiano da cozinha e o refeitório escolar durante o recreio

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Academic year: 2021

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COZINHANDO NOVOS ESPAÇOS EDUCATIVOS:

Efervescências e processualidades do cotidiano da cozinha e o refeitório escolar durante o recreio

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em Ciências Biológicas do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do Título de Licenciada em Ciências Biológicas

Orientador: Profa. Dra. Karina Rousseng Dal Pont

Ilha de Santa Catarina 2019

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Cozinhando novos espaços educativos:

Efervescências e processualidades do cotidiano da cozinha e o refeitório escolar durante o recreio

Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de Licenciada em Ciências Biológicas e aprovado em sua forma final pelo Curso de Ciências

Biológicas.

Ilha de Santa Catarina, 05 de julho de 2019.

________________________ Prof. Carlos Roberto Zanetti, Dr. Coordenador do Curso de Ciências Biológicas

Banca Examinadora:

________________________

Prof.a Karina Rousseng Dal Pont, Dr.a em Educação. Orientadora

Universidade do Estado de Santa Catarina

________________________

Prof.ª Mariana Brasil Ramos, Dr.ª em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Nutricionista Fernanda Rech Rodrigues. Prefeitura Municipal de Rancho Queimado

________________________ Bióloga Marina Lopes Gomes Universidade Federal de Santa Catarina

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sistema de escolas públicas. Trabalhadoras incessantes e, muitas vezes, anônimas.

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Esta é uma pesquisa cartográfica elaborada como Trabalho de Conclusão de Curso vinculado ao curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa se aproxima da rotina do recreio escolar, interessada especificamente na relação estabelecida entre os agentes da escola e o momento da alimentação oferecida diariamente pelo sistema público de ensino. O seu objetivo é conhecer e analisar quais as possibilidades pedagógicas a partir do cotidiano do refeitório escolar, partindo do conceito de cotidianidade de Michel De Certeau. Para tal, foram feitas observações participantes no refeitório de uma escola pública da Rede Estadual de Santa Catarina ao longo de duas semanas, acompanhando o período de atendimento matutino, vespertino e noturno. As reflexões apontam para um consumo distraído, desatencioso e automático da alimentação escolar, assim como despertam provocações sobre como a organização espacial do refeitório e suas influências nestes gestos dos comensais. Além disso, surgiram provocações e questionamentos sobre a articulação das políticas públicas sobre a alimentação escolar e a efetivação destas no cotidiano da vida escolar, onde surgem alguns paradoxos e contradições. As análises que constituem esta pesquisa ressaltam algumas das disputas políticas e econômicas que a alimentação tensiona e também traz tentativas de sensibilizar os sentidos do corpo para com a alimentação e os espaços onde é produzida e consumida. Permeando as conclusões da investigação, emerge uma rotina mecânica e repetitiva na hora do recreio que, também, parece ser reforçada pela espacialidade do refeitório e enrijecida pela sua arquitetura.

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Esta es una investigación cartográfica elaborada como Trabajo de Conclusión de Curso vinculado al curso de Licenciatura en Ciencias Biológicas de la Universidad Federal de Santa Catarina. La misma se acerca a la rutina del recreo escolar, interesada particularmente en la relación de los agentes de la escuela y la alimentación que es ofrecida diariamente en el sistema público de educación brasileño. El objetivo de tal es conocer y analizar las posibilidades pedagógicas del comedor escolar y su cotidiano, partiendo del concepto de cotidianidad propuesto por Michel De Certeau. Para esto, se hicieron observaciones participantes en el comedor de una escuela pública de la Red Estatal de Santa Catarina a lo largo de dos semanas, acompañando el período matutino, vespertino y nocturno. Las reflexiones destacan el consumo distraído, desatento y automático de la alimentación escolar, así como despiertan provocaciones sobre la organización espacial del comedor y cómo tal influencia en estos gestos de los comensales. Aparte de esto, surgen provocaciones sobre la articulación de las políticas públicas sobre la alimentación escolar e la concreción de las mismas en las instituciones durante el cotidiano de la vida escolar, donde aparecen contradicciones y antagonismos. Las análisis que forman esta investigación destacan algunas de las varias disputas políticas y económicas que la alimentación aviva y también coloca algunos intentos de sensibilizar los sentidos del cuerpo para el alimento y los espacios destinados a este momento. Traspasando estas conclusiones, emerge una rutina repetitiva a la hora del recreo que, también, parece ser reforzada por el rigidez de arquitectura del comedor.

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Figura 1 – Frame do audiovisual Teoria da escola, 22'06...24

Figura 2 – Frame do audiovisual Teoria da escola, 22'29...25

Figura 3 – Capa de diário de cozinha...41

Figura 4 – Croqui do andar térreo da E.E.B Simão José Hess...45

Figura 5 – Refeitório da E.E.B visto desde a entrada da escola...46

Figura 6 – Refeitório e cozinha da escola; perspectiva do fundo do salão... 46

Figura 7 – Grades que separam o refeitório do pátio; notar as argolas que as prendem ao chão...47

Figura 8 – Grades que separam pátio do refeitório...48

Figura 9 – Croqui do andar térreo do primeiro bloco da E.E.B Simão José Hess com marcação do ponto onde era observado o recreio...50

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CEPSH – Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

OMS – Organização Mundial da Saúde

PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar SED – Secretaria do Estado da Educação

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FUÇANDO RECEITAS ANTIGAS...15 1 'MISE EN PLACE'...22 2 PARA QUE SERVE UMA RECEITA?...41 3 CONSTRUINDO PALADARES NO COTIDIANO: Ruminações com diário de

cozinha...58 3.1 A ROTINA NOSSA DE CADA DIA...58 3.2 "O QUE TEM HOJE PRA MERENDA, TIA?": a relação dos sujeitos escolares com o alimento...62 3.3 O ESPAÇO DE COMER: a relação dos sujeitos escolares com o salão do refeitório 67 4 UM CONTORNO E UM DIGESTIVO...71 REFERÊNCIAS...75 APÊNDICE A – Esboço de roteiro de observação de campo...78 APÊNDICE B – Carta de apresentação para Secretaria Estadual de Educação – SC...78 ANEXO A – Ofício de autorização para realização da pesquisa na E.E.B Simão José Hess...79

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FUÇANDO RECEITAS ANTIGAS

Receita de Plátanos en mole (modificada pela saudade e a falta de ingredientes)1

Ingredientes

• 6 bananas da terra maduras (pode encontrar no sacolão que fica na frente do terminal velho no centro de Floripa)

• Óleo para fritar

• 1 colher de sopa de gergelim

• 1 colher de sopa de sementes de abóbora sem casca e torrada (isso tem um nome da Guatemala: 'pepitória')

• 4 bolachas-maria (pode ser alguma outra bolacha simples) • 15 tomates muito maduros

• 1 pau de canela • 1 xícara de água

• 225 gr de chocolate (único ingrediente que trouxe da Guatemala. Nunca testei fazer com outro chocolate achado no Brasil, pois o utilizado para este prato é uma barra onde só é misturado cacau, açúcar e canela ou amêndoa.)

• Pitada de sal

As banana-da-terra maduras se cortam em rodelas, se fritam e se reservam. Depois, se prepara um molho que irá 'banhar' essas lascas de banana. Para isso, os tomates, o pau de canela, as sementes de abóbora e o gergelim são torrados; quando o tomate tenha a sua pele bem queimada, esta se retira e depois, tudo isso é batido no liquidificador. Enquanto isso, o chocolate é derretido com a xícara de água numa pequena panela. Quando este esteja derretido completamente, se peneira a batida do tomate e se junta ela com o chocolate. Coloca fogo baixo e deixa reduzir um pouco. Para engrossar o molho, ralar as bolachas para colocar na panela. Após ter deixado reduzir um pouco, acrescentar as bananas-da-terra e deixar no fogo mais um pouco para pegar o sabor. Polvilhar um pouco de gergelim torrado para finalizar.

1 Plátanos en mole é uma sobremesa típica da Guatemala; faz parte do Patrimônio Cultural Intangível da Nação desde 2007. Parece que surge na metade do século XVI a partir da mistura da cultura espanhola e as culturas indígenas da região. A receita é originária de uma região da Guatemala que chama San Marcos, na parte leste do país (GUATEMALA, 2007).

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Acho que fiz esta receita pela primeira vez quando tinha 19 anos, enquanto morava em Porto Alegre. É uma sobremesa popular, encontrada em barracas que vendem vários quitutes gostosos em alguns parques públicos do país onde eu nasci. A receita foi minha vó que me passou; ela cozinha muito bem, embora nunca me deixou contribuir muito nesta tarefa quando vivia com ela. Não sei se ela tem noção do quanto esta receita me marcou; moveu muita memória, muita saudade e iniciou certa sensibilização com e pela cozinha.

Eu nasci e cresci na Cidade da Guatemala, ou como eu a chamei sempre "la Capital" da Guatemala. Sou filha de uma família de classe média (com algumas épocas de altas e baixas) e 'desestruturalmente latino-americana'2. Sou também uma criança urbana (ou piá de prédio, como chamam aqui) e filha de pais que viajam bastante, talvez daí que sempre me incentivaram a "abrir a cabeça" e conhecer outros modos de mundo. Estive sempre envolvida com atividades artísticas, o que confortou meu lado introvertido, observador e imaginativo. Desde curta idade, me surpreendo, encanto e emociono com as coisas, talvez, banais: com as plantas, com os bichos, com a terra, com o pôr-do-sol, com os gestos de carinho, com as nuvens, com a chuva... Ao mesmo tempo, coisas pequenas também me irrompem, me angustiam e me indignam, às vezes me afogando em copos minúsculos de água. Quero dizer, considero que características da minha percepção de mundo produziram uma tendência a escancarar, e amplificar, as sutilezas e miudezas do cotidiano.

Quando, no colégio, comecei ter a disciplina de Biologia, percebi que esse olhar absorto que eu identificava em mim, me possibilitava ver a vida com tanta força! Optei, então, por seguir esse rumo no ensino superior. Em 2011, ingressei no curso de Biologia na Universidad del Valle de Guatemala3. No meio desse ano, soube que na Embaixada do Brasil tinha oportunidades estudos de graduação e decidi que não perdia nada tentando aplicar a uma delas. Fui aceita pelo Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) para cursar Ciências Biológicas, em Florianópolis-SC4. No entanto, devia obter um nível de proficiência da língua para obter a vaga na Universidade Federal de Santa Catarina–UFSC e, para isso, fui

2 Com isto quero dizer que meu núcleo familiar é, em parte, formado por várias amizades da família e por pessoas que, ao longo da nossa história, foram sendo incorporadas e várias outras, na sua maioria figuras paternas, que foram abandonando esse núcleo familiar. Estas árvores genealógicas enredadas, que são recorrentes entre algumas das minhas amizades latinoamericanas, são quase contos escritos por Gabriel García Márquez.

3 Uma universidade particular da Cidade da Guatemala, fundada em 1966, localizada na capital do país.

4 Penso muito neste acaso. Florianópolis foi minha segunda opção pois minha mãe tinha o contato de uma amiga dela que alguma vez morou em São José-SC. Ela não morava aqui em Santa Catarina fazia anos. Minha mãe me disse: 'bota o endereço dela, vai que dá certo!' E deu certo. Eu jamais tinha ouvido falar dessa cidade, mas procurei no Google, vi as fotos, e me apaixonei.

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encaminhada primeiro para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde tinha um curso preparatório para o teste de proficiência de português CELPE-Bras.

Então, no início de 2012, e com 19 anos me mudei Porto Alegre. De certa maneira, estou neste país por acasos da vida que vão dando certo, mas, com certeza, é por privilégios de escolaridade, privilégios econômicos, sociais e familiares que me foi possível decidir por me formar profissionalmente em outro país. Então, foi nesse primeiro ano fora de casa que comecei a cozinhar. Lembro que comprei uma cumbuca azul (que tenho até hoje), uns talheres e uma panelinha de alumínio que custou uns 5 reais; com esses utensílios sobrevivi e cozinhei o ano inteiro. Eu conhecia algumas coisas sobre cozinha, bem básicas... Mas quase nunca cozinhava. Na minha memória de infância, a cozinha é como um cômodo com as luzes apagadas, muito escuro.

Iniciei o curso de graduação na UFSC em 2013 e, a partir deste ano, comecei também um longo processo de reeducação alimentar por conta de ter sido diagnosticada com cálculos na vesícula biliar. Após a cirurgia para retirar a vesícula, passei a necessitar ouvir mais meu corpo e entender suas necessidades alimentares. A relação com a minha alimentação, que sempre foi conflitante e sofrida por conta dos muitos comentários sobre meu “sobrepeso” ao longo da infância e adolescência, começou a ser reestruturada e me aproximou muito mais à tarefa culinária.

A cozinha foi um espaço sensorial de experiências sobre escuta do meu corpo e seu bem-estar, mas também foi um espaço que provocou reflexões e maior entendimento sobre a procedência dos nossos alimentos, sobre os aspectos culturais e afetivos ligados a eles, sobre a satisfação de cozinhar para si e para outros, sobre tantos aspectos emocionais ligados ao alimento. Enfim, aprendi (e aprendo todo dia) tantas coisas através da comida e dos sabores e das panelas e do fogão e da mesa... Quis apostar a prestar mais atenção a estas miudezas do cozinhar porque nelas sinto uma potência, uma fervura lenta5, daquelas que criam camadas e camadas de sabor em um caldo. Talvez as cozinhas cotidianas têm tanto para nos ensinar, nos seus movimentos e processos de rotina. Quais sabores aprendemos sob essas fervuras do dia a dia?

Há várias cozinhas cotidianas: a cozinha da própria casa, a cozinha do restaurante perto do trabalho, a cozinha do hospital onde se visita um familiar, a cozinha da vó... Porém algumas talvez não sejam vivenciadas diretamente, mas estão presentes. Esse fascínio pela

5 Há uma palavra que acho muito bonita para este fenômeno em inglês: simmering. Que na verdade não é ferver. É aquele momento em que o líquido está prestes a borbulhar mas as bolhas, tímidas, se seguram e só ficam brincando sob a superfície.

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cozinha e pela alimentação me levou até as cozinhas escolares. No Brasil, é oferecida merenda nas instituições públicas de educação básica, cuja articulação e execução é guiada pelas diretrizes que constam no Programa Nacional de Alimentação Escolar–PNAE. Ou seja, nas escolas públicas existe uma cozinha e um refeitório onde os sujeitos comem juntos durante o recreio.

Entendo que os espaços na escola fazem parte de processos de aprendizagem dos sujeitos que transitam por ela. Portanto, dialoguei com Escolano (2001) quem coloca que os espaços escolares acabam fazendo parte das aprendizagens motoras e sensoriais na escola e faz com que o espaço também constitua o currículo ou programa da escola. Então, me questionei como a cozinha e o refeitório, sendo espaços fora-sala mas que também são cotidianos da escola, estão colocados nesses processos educativos. Esse questionamento me deu um dos motivos desta pesquisa: o cotidiano da cozinha e do refeitório escolar, onde

acontecem relações e vínculos entre as merendeiras, crianças, adolescentes, professoras e funcionários da limpeza, são espaços de possível aprendizado.

Então, o objetivo desta pesquisa é conhecer o que é possível aprender durante o recreio no refeitório e na cozinha da escola pública. Para investigar este horizonte, me propus acompanhar a rotina diária do recreio. A escola que possibilitou a realização desta pesquisa foi a E.E.B Simão José Hess, unidade escolar da rede estadual de ensino. O campo desta pesquisa consistiu na observação participante do recreio do período matutino, vespertino e noturno, com o acompanhamento dos acontecimentos observados por um diário de cozinha. Este trabalho seguiu as pistas da pesquisa cartográfica, aproveitando principalmente o pensamento de Kastrup (2015) sobre o funcionamento da atenção neste modo de investigar, além de um roteiro de observação para me auxiliar no direcionamento do olhar. Já que me interessou o cotidiano da rotina da escola, este trabalho é perpassado pelo conceito de cotidianidade de Michel de Certeau (2008).

Afinal de contas, este é um trabalho que foi escrito entre a sensibilização que minha própria cozinha tem me proporcionado sobre os sabores do mundo e os caminhos que a pesquisa na educação possibilita — pensar fora da caixa, pensar nos sujeitos de forma mais sensível e se permitir manter uma curiosidade de infância. Esta pesquisa, então se desenhou com o tecido rotineiro do refeitório da escola. Entre improvisos, entre medos, entre muitas leituras feitas e outras que não dei conta de fazer. Também andou entre acertos e acasos, e principalmente, esta pesquisa foi sentar à mesa com bons encontros (com pessoas, com

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acontecimentos, com ideias, com autoras e autores, com referências e com muitas receitas novas).

Este trabalho está organizado em quatro capítulos principais; o título de cada um foi pensado entre brincadeiras e trocadilhos com algumas questões da gastronomia e do comer e assuntos relacionados ao conteúdo do mesmo. No primeiro capítulo, 'Mise en place', apresento a cozinha e algumas das suas potências para pensar e questionar a nossa alimentação — acho que nesta parte apresento minha paixão por ela. Depois, faço uma organização de alguns conceitos que foram essenciais para construir o chão teórico da pesquisa, principalmente os conceitos relacionados ao cotidiano escolar e as possibilidades de pesquisas nele. Apresento, também, aspectos importantes para entender a articulação para oferecer a merenda nas escolas públicas e o funcionamento das cozinhas escolares. Além disso, comento sobre algumas pesquisas relacionadas à alimentação na escola, tanto de intervenções pedagógicas na busca de hábitos alimentares mais saudáveis, quanto pesquisas que tentam trazer o cotidiano da cozinha para o ensino de ciências.

O segundo capítulo, 'Para que serve uma receita?' trata sobre as questões metodológicas que esta pesquisa mobilizou. Apresento as autoras que me ajudam a pensar minhas ferramentas, ou acompanhantes — o diário de campo e a observação atenciosa. E também faço essa "entrada na escola", conhecendo um pouco melhor dos seus espaços, em especial o refeitório, e sua rotina. Nesta parte, também exponho alguns dos caminhos percorridos até chegar a concretizar o campo de investigação.

O terceiro capítulo, 'Edificando paladares no cotidiano: ruminações com diário de cozinha' é onde desenvolvo as reflexões que as observações do recreio me provocaram; aqui, apresento as categorias que emergiram para sistematizar estas reflexões. Os três primeiros capítulos do trabalho estão antecipados por uma composição de imagens que surgiram durante a escrita das análises da experiência do campo de pesquisa. Elas chegam como uma outra forma de linguagem, tentando expressar parte dos pensamentos, sustos, desconfortos e provocações construídos com o refeitório e o recreio da escola E.E.B Simão José Hess.

A proposta foi de utilizar fotografias do refeitório — que aparecem no capítulo dois — e intervir nelas buscando brincar com os signos e significados do cenário. Neste jogo, também utilizei frases anotadas no diário de cozinha durante as observações do recreio misturando outras imagens aleatoriamente achadas em revistas, jornais e livros didáticos. Também, partindo de cada composição, escrevi algumas das reflexões que vieram na minha

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mente ao observá-la. Em suma, me utilizo da técnica da colagem na tentativa de refletir sobre o espaço, suas permanências e possibilidades, suas significações e discursos...

Ao longo do século XX, a técnica da colagem ganha força no campo das artes plásticas e visuais com os movimentos dadaístas e surrealistas paralelamente ao crescimento da mídia e telecomunicações em uma sociedade cada vez mais industrial. Na colagem, pode utilizar-se recortes de revistas, jornais e propagandas cotidianas — selecionadas de maneira fragmentada e aleatória — para depois compor imagens e relacionar elementos que, para além dessa intervenção de tesoura-cola-papel, não estariam juntos. Assim, emerge a possibilidade da leitura de novos sentidos com imagens já existentes (VARGAS, 2011).

Então, existe um tom de criticidade em diversas obras de arte que se utilizam desta técnica, pois é uma maneira de quebrar e estranhar a compreensão dos objetos cotidianos e estranhando a sua obviedade utilitária (VARGAS, 2011). O exercício que proponho com as colagens é 'produzir' comigo as muitas possibilidades de um espaço, de uma imagem e de uma intervenção. Talvez, se permitindo na leitura delas, sensibilizar-se por meio do estranhamento do convencional.

Finalmente, o capítulo, 'Um contorno e um digestivo' é constituído pelas considerações finais deste trabalho. Nele, se misturam os processos de encerramento da pesquisa e pessoais; talvez possa pensar que é um retrovisor para as questões que fazem deste trabalho o que ele é. Este capítulo, embora seja de fechamento, parece colocar na leitura muitas aberturas; ficam espaços de silêncio onde reverberam alguns pensamentos ainda "enozados" e esperando para serem fermentados com o tempo.

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1 'MISE EN PLACE'

O título deste capítulo faz referência ao termo em francês utilizado na culinária que quer dizer 'colocar no lugar'. Na cozinha, este termo é aplicado para indicar a preparação e organização de ingredientes e utensílios antes de iniciar o processo de uma receita. Para Pellegrini (2011) fazer o 'mise en place' facilita a elaboração da receita, pois além de organizar o material, é o momento de organizar o pensamento e a sequência de procedimentos a serem seguidos. Portanto, é necessário pensar qual é o desenlace esperado após cozinhar? Qual é o prato final? No caso deste texto, pensar o que esperamos encontrar no decorrer de uma pesquisa em educação que se passa na cozinha de uma instituição de ensino. Então, me utilizo deste termo para organizar os conceitos e as ideias dentro do capítulo; para ter nitidez no processo de pensamento de quem escreve e de quem lê. As seguintes páginas são uma mesa onde preparamos os conceitos que nos ajudam a cozinhar esta pesquisa.

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1.1 A COZINHA TEM ALGO QUE...

A alimentação, um ato orgânico dos seres humanos, está condicionada às culturas e às significações sociais que envolvem o que comer, onde comer, como comer e com quem comer. Os sistemas alimentares, como consequência dos atravessamentos culturais e históricos, são diversos e plurais. Um sistema alimentar é uma rede complexa de processos, recursos e tecnologias que estão envolvidos na produção, no comércio, transporte e transformação de alimentos para a subsistência das pessoas; a parte final do sistema é o momento em que as pessoas se alimentam, quando os “pratos chegam na mesa” (BRASIL, 2012). Portanto, o quase-fim dos sistemas alimentares acontece na transformação do alimento, ou seja, no cozinhar.

O sistema alimentar onde crescemos vai se construindo entre interferências dos costumes, do nosso poder aquisitivo, das mídias, das tendências e modas, das políticas públicas, das formas de produção de alimentos, das doenças que se propagam na população, dos hábitos e modos de vida e tantas outras tramas que culminam nas nossas mesas, nas nossas “escolhas” alimentares. De alguma maneira, esses fios tecidos formam uma estrutura social — abstrata — que cerca o nosso consumo alimentar. Porém, me identifico com o

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pensamento de Michel de Certeau (2008) respeito à '‘produção’' e '‘consumo’' cultural, neste caso, entendendo que os sistemas alimentares se constituem na cultura.

Este pensador francês, reconhecido pelos seus estudos sobre cotidiano, nos coloca que na medida que os sistemas de produção — e de poder — se difundem na sociedade (através das grandes mídias, das políticas públicas, do planejamento urbano, do comércio etc.) os '‘usuários’' ou '‘consumidores’' destes sistemas “supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 2008, p. 37) também '‘fabricam’' maneiras de usar estes produtos. Na leitura de 'Invenção do Cotidiano: Artes de fazer' encontrei a observação:

A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas, ao mesmo tempo, ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU, 2008, p. 39, grifo do autor)

Portanto, esta outra produção que é proposta, fabricada pelos '‘consumidores’', é recíproca aos sistemas que se tensionam na estrutura social de forma sagaz e pulverizada. O modo de uso dos '‘produtos’' é o presente dos sujeitos, é o cotidiano, onde a ocasião cria jogos criativos e se inventam “maneiras de fazer” que brincam com o poder e pega os atalhos alternativos. Estas novas formas de uso também se contagiam das regras que o sistema de produção hegemônico e oficial impõe, quero dizer, a criatividade não se constrói no vazio; os sujeitos estão dentro de um jogo histórico-social que condiciona suas possibilidades de ação. Porém, a autoria das alternativas se dá na dimensão da circunstância que a realidade dos sujeitos permite que eles manipulem as ordens e produtos dados. Dessa forma, ao me referir a cotidiano, pensando junto com Certeau, extrapola a noção de repetitividade de uma rotina, dos hábitos do dia a dia.

Estes jogos criativos da rotina são investigados no espaço da cozinha, e apresentados no segundo volume da obra 'Invenção do Cotidiano', por entender que na repetição e efemeridade dos gestos culinários emerge aquilo que caracteriza as "maneiras de uso" da cultura (GIARD, 1996).

Aquele trabalho culinário que parece sem mistério nem grandeza, eis que ele se desenrola numa montagem complexa de coisas a fazer, segundo uma sequência cronológica predeterminada: prever, organizar e abastecer-se, preparar e servir; descartar, arumar, conservar e limpar (GIARD, 1996, p. 220).

Este trabalho culinário muitas vezes é invisibilizado. Melhor dizendo, o trabalho vinculado à cozinha mais caseira, destinado tradicionalmente às mulheres, é microscópico quando comparado à exibição culinária dos "grands chefs, que são homens" (GIARD, 1996,

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p.221). Então, a fugacidade dos gestos da cozinha de mulheres se mantêm muito mais anônimos, mas não por isso menos potentes na sua produção cultural.

Na cozinha precisa sentir; por exemplo, sentir que já pode botar um fio de azeite numa frigideira pré-aquecida e despejar um vulcão de cebola. Escutar chiar, esperar e ver a cor da cebola mudando, despejar o outro vulcão — agora de tomate... Claro, nem toda cozinha é de casa. Duvido bastante que na cozinha em que se fazem as lâminas de batata frita que estão embaladas dentro do saco de plástico amarelo, a máquina precise sentir quando o óleo atingiu a temperatura certa. Essa cozinha em que o nariz, os olhos, a língua, a intuição, o improviso e as mãos ainda são importantes acredito que seja a cozinha onde fervem “ outras maneiras de se alimentar”. Onde há improviso, há memória, gestos; onde ainda há engenhosidade dos praticantes culinários.

O Guia Alimentar da População Brasileira (2014) oferece algumas recomendações respeito uma alimentação saudável, quer dizer, orientações para uma dieta que tenha um perfil balanceado em termos nutricionais, mas também esteja de acordo com cada contexto cultural, seja saborosa para quem a consome e que promova sistemas alimentares sustentáveis social e ambientalmente. O Guia apresenta quatro categorias de alimentos determinadas pelos processos de produção que eles passam antes da sua compra, preparo e consumo. Os tipos de processamento condicionam o perfil nutricional dos alimentos, o seu sabor, mas além disso, têm influência sobre as circunstâncias em que certo alimento é consumido, ou seja, quando comer, onde comer, como e quanto comer.

A primeira categoria são os minimamente processados, que são obtidos diretamente de plantas ou animais e passam por poucas alterações antes do seu consumo, como limpeza, remoção de partes não comestíveis, refrigeração, moagem ou refinamento e fermentação. São conhecidos também como alimentos in natura e alguns exemplos são folhas, ovos, leite pasteurizado, grãos secos e empacotados ou moídos na forma de farinha, frutas lavadas, pedaços de carne cortados e congelados...

A segunda categoria abrange produtos que são extraídos de alimentos in natura e são utilizados nas práticas culinárias de casas e refeitórios para temperar e acrescentar sabor na comida, assim como óleos, gorduras, sal e açúcar. A terceira categoria são produtos resultantes da adição de sal ou açúcar a alimentos in natura com o intuito de preservá-los melhor ou torná-los mais agradáveis para o paladar, como é o caso dos picles ou chucrute, as frutas em calda, mas entra também nesta categoria o pão e os queijos; eles já entram no grupo dos

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alimentos conhecidos como processados e sua fabricação pode ser tanto caseira quanto industrial.

A última categoria compreende aqueles produtos cuja fabricação envolve uma sequência de etapas de processamento, utilização de técnicas — muitas vezes mecanizadas — e ingredientes que, maior parte das vezes, são de uso exclusivamente industrial. Esta quarta categoria é também conhecida como dos ultra-processados e a fabricação deles representa um empobrecimento da diversidade de nutrientes, de cultura, da vida social e do meio ambiente do sistema alimentar de uma população. Exemplos nos dias de hoje vêm aumentando — salgadinhos de milho, bolachas recheadas de todos as variações de chocolate possível, macarrão instantâneo, pipocas doces em pacotes plásticos, temperos prontos, sopas instantâneas, refrigerantes de diversos sabores, refeições congeladas...

Parte das recomendações do Guia é tentar constituir nossas dietas em produtos minimamente processados, quer dizer, produtos que passem por mais mãos humanas antes de chegar na mesa. A cozinha que não foi ultra-processada parece conter uma audácia que subverte os sistemas de produção, por isso, se constitui na cotidianidade e nas brechas temporais da contingência. As texturas das vidas cotidianas surgem pela criatividade e pluralidade dos sujeitos na própria estrutura social que suporta as situações e contextos das atividades rotineiras. A vida cotidiana se tece entre essas “maneiras de fazer” que, além de não serem passíveis de redução na forma de repetições de estruturas sociais nem algum tipo de determinismo, multiplica a engenhosidade regional dos grupos humanos.

Desta maneira, o ato de cozinhar e os conhecimentos que ele necessita — e toda a memória, gestos, cheiros, sentidos que convoca —, parece enlaçar-se com a diversidade e os jogos astuciosos que são possíveis nas ações reais dos sujeitos e se contrapõem às regras e normas prescritos. Há ritmos e gestos quer herdamos do nosso contexto cultural e eles se repetem em operações assíduas que, muitas vezes chegamos a estranhar, somente quando saímos desse contexto e conhecemos outros modos de fazer rotinas. Mas, na medida que estas operações se repetem, emerge aquilo que está vivo em cada um; é o presente, é o fazível, é o invisível. Nos nossos dias de hoje, onde podemos reconhecer ainda essa cozinha?

A cotidianidade parece uma coleção de movimentos anônimos e invisíveis que constroem um trabalho perecível e que, assim como na cozinha, têm nuances que tendem a estar nas entrelinhas daquilo que é hegemônico. Por exemplo, por entre as políticas públicas e diretrizes que orientam o trabalho nas instituições escolares, há rotinas escolares que são complexas, incapturáveis e talvez até entediantes, mas que fazem parte destes movimentos

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aparentemente irrelevantes e anônimos que tecem ocasiões em que é possível desafiar à própria instituição. Com a leitura do cotidiano, sobre ele, com Certeau e suas colaboradoras percebo que estas entrelinhas tornam “visíveis as resistências [da pessoa]6 comum, resistências que fundam micro-liberdades e deslocam as fronteiras de dominação” (DURAN, 2012, p. 44). E essas outras formas de fazer que respingam, constroem conhecimentos que se aprendem e se ensinam; conhecimentos que nós também construímos, dia após dia, nos procedimentos ordinários.

1.2 POSTURAS ATENCIOSAS: "O movimento delicado do punho quando amassa pão"

Percebendo o cotidiano, nos deparamos com redes de conhecimento que se criam entre atalhos, caminhos e jogadas rotineiras (ALVES, 2002) e, assim, sinto vontade de prestar atenção nestas jogadas: o que será possível aprender com elas? A proposta da pesquisadora Nilda Alves (2002) de mergulhar no cotidiano “com todos os sentidos” (Ibid., 2002, p. 15) chama a prestar atenção à intensidade dos seus gestos, à contradição dos modos de fazer e de pensar e aos “lances” perspicazes do dia a dia para lidar com o próprio espaço/tempo.

Algumas pesquisas em Educação tem tomado a prática da cotidianidade na escola como objeto de estudo. A escola, como instituição, é muitas vezes, criticada e discutida sob várias perspectivas, relacionando as influências políticas, econômicas e sociais que pairam sobre ela. Porém, na rotina da escola, há dinamismo entre aquilo que é mais ordinário e aquilo que, de certa maneira, materializa estes poderes. O pesquisador e filósofo Maximiliano López (2017) realizou um projeto cinematográfico numa escola pública municipal na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais–BR que resultou no audiovisual “Teoria da Escola”.

É uma produção de 33 minutos com um olhar que tende a um cinema realista “não porque pretenda constituir-se num retrato fiel da escola, mas porque se debruça sobre ela de modo paciente e minucioso” (LÓPEZ, 2017, p. 226). Através deste olhar, o filme se propõe a um exercício de dissipar o excesso de discursos que rondam à instituição escolar — sobre o que ela deveria ser, deveria ter, o que há de errado e o que melhorar nela. Ao invés desta aura sobrecarregada de palavras, as imagens do filme buscam a paciência do espectador para ver a escola com uma atenção flutuante. A câmera captura momentos escolares tal e como são; o filme não pretende “mostrar”, mas “deixar ver” a escola (LÓPEZ, 2017).

6 No texto original, consta a expressão "do homem comum"; acho desnecessária a redução de todos os gêneros humanos no 'homem'.

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A vertente de cinema realista que o filme abraça se contrapõe à noção do cinema clássico: aquele onde há um “herói” antagonista ao mundo e às adversidades da realidade e cuja trama é movida pelo desejo deste de “reagir” em direção à “melhora” da situação. Ou seja, o cinema clássico há um direcionamento através da imagem; o cinema realista se abre à indeterminação e ao excesso de realidade — apostando a potencialidade do “estado bruto” desta concretude do mundo.

O chão da escola e o seu âmago diário: o sinal do recreio, os murmúrios oscilantes nas salas de aula e nos corredores, o momento de fazer a chamada nas turmas anotando com um pontinho quem está presente, as crianças que aparecem na direção com dor de cabeça, os engarrafamentos na frente do portão da escola com crianças, adolescentes e docentes tentando entrar, as crianças rabiscando corações nos seus cadernos sem prestar atenção na matéria que a professora passa no quadro. Serão estes gestos que formam a escola “real”? O que estes gestos são dentro da escola?

Figura 1 – Frame do audiovisual Teoria da Escola, 22'06

Fonte: Maximiliano López, 2017

A câmera se detém na frente do carrinho térmico do buffet com a merenda do dia onde registra somente o plano na altura das mãos. Cinco cubas com alimentos quentes estão dispostas ao longo do carro e duas mãos ágeis ajudam a servir a merenda. Com a mão direita, a merendeira pega uma concha de frango ensopado e coloca no prato que chega na sua frente. Em seguida, ela solta a concha e a repousa delicadamente na sua mão esquerda para evitar que caia dentro da cuba. Assim, fica com a mão direita livre para poder servir a salada de repolho e cenoura ralada, que está no último recipiente do carrinho. Então, ela

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pega os fiapos de repolho com firmeza e vira em cada prato uma colher de salada com um suave movimento do pulso. São movimentos quase coreografados que se repetem a cada prato que chega.

Figura 2 – Frame do audiovisual Teoria da Escola, 22'29

Fonte: Maximiliano López, 2017

A câmera imóvel se demora no enquadramento e registra o momento da merenda no refeitório. Em cena, dois garotos estão sentados lado a lado em um dos bancos, porém de costas para a mesa. Eles degustam a comida em silêncio, compenetrados nos seus pratos de alumínio e nas copiosas colheradas que levam à boca. Ainda que distraídos, eles comem rapidamente, sem sequer tirar a mochila das costas, quiçá para acabar logo e poder aproveitar parte do recreio para brincar no pátio ou na quadra. Pelo refeitório se propaga um murmúrio constante, agudo e aveludado feito da mistura de vozes de crianças de várias faixas etárias e o barulhinho de talheres e pratos se batendo de leve. As conversas e as risadas se atravessam e torna-se quase impossível acompanhar um único fio de fala; dá a impressão que o volume do tecido sonoro que envolve a cena amplifica-se no salão. No plano de fundo da cena, há movimentos agitados de outras crianças, embora nem todas entregues à tarefa de alimentar-se como está a dupla de meninos. O garoto sentado à esquerda, ainda com comida no seu prato, olha pro seu colega e o cutuca repetidas vezes no braço com o dorso da mão. É um gesto leve, mas incisivo. O outro garoto termina de comer em seguida, limpando o prato com a colher, atende o “chamado” inquieto do seu amigo. Eles não falam nenhuma palavra entre si, somente trocam olhares. Contudo, entende-se que o garoto da esquerda está pedindo o prato vazio do seu companheiro para entregar na cozinha. O garoto sentado à direita mostra seu agradecimento com sorriso no canto da boca ao entregá-lo.

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Ambos levantam do banco e, com momentâneos olhares de cumplicidade, parecem combinar quais são seus próximos planos para o resto do recreio. A cena troca subitamente. Parece tudo flutuante e tão trivial.

A câmera se demora na captura de cada cena, o que reforça o caráter contemplativo do audiovisual. Não há narrador nem música que acompanhe o passeio pela escola, em nenhum momento do filme; o caminho sonoro é construído pelos sons de cada paisagem escolar cujas mudanças são marcadas também pelos cortes abruptos e mudanças de cena.

O filme convida a ver a rotina da escola com outro olhar; aliás, parece convidar também mudar a percepção das próprias memórias escolares: mais atenciosos a gestos pequenos e que poucas vezes pensamos sobre eles. E com essa outra postura de observação, parece que no prosaico do espaço escolar ferve uma potência em que os sujeitos criam maneiras de uso da escola. Prestar atenção nestes minúsculos gestos não é tarefa fácil e, novamente, retorno até Nilda Alves (2002) quem propõe uma submersão inteira nestes procedimentos para chegar a compreender, a estudar do/com/no cotidiano. Será que mudar a forma de contemplar estas rotinas seria se entregar para aprender com elas? Transitando entre leituras da pesquisadora Nilda Alves, Inês Barbosa e Walter Kohan penso na proposta de operar com o cotidiano escolar uma “pedagogia prática da atenção” (KOHAN, 2017a, p. 74).

Primeiramente, acho importante situar a noção de escola da qual parto para pensar junto com a ideia de cotidiano apresentada antes. Para isso, me identifico com o pensamento do filósofo e educador Walter Kohan (2017b) quem, em diálogo com os autores Jan Masschelein e Marteen Simons, defende e discorre sobre uma forma escolar ao invés de uma instituição escolar. A escola recebe diversas críticas quando é colocada sob lentes históricas, culturais, filosóficas; por exemplo, o distanciamento da escola com a sociedade, a sua ineficiência, a corrupção que atravessa as instituições, a desmotivação e entre muitos outros tensionamentos e discursos questionando o funcionamento e a existência dela.

Porém, haveria esta forma escolar ou forma pedagógica radical que traspassa barreiras históricas e geográficas e seria o âmago da escola em si mesma. A ideia de forma escolar se aproxima ao termo skholé que surge da escola grega antiga; palavra que etimologicamente é “ócio, tempo livre” e esta condição não necessariamente está atrelada à instituição escolar. Esta forma escolar que os autores apresentam teria as seguintes características:

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a) suspensão (na escola deixa de operar ou valer o que rege o mundo familiar e social exterior à escola; b) profanação (há na escola uma ressignificação livre e profanadora do que opera no mundo exterior; ela exige a possibilidade de renovar o que é público); c) atenção e mundo (na escola o mundo torna-se interessante e

aberto para ser explorado e recriado); d) tecnologia (são as técnicas, exercícios e

disciplina capazes de formar o aluno e torná-lo capaz de iniciar algo); e) igualdade (todo os alunos enquanto alunos são igualmente capazes de um novo começo de mundo); f) amor (amadorismo do professor: amor/respeito, atenção dedicação, paixão impessoal pelo mundo e pelas novas gerações; g) preparação (na escola importa a preparação pela própria preparação, como estudo e exercício, enquanto formadora de si sem um fim explícito ou predefinido); h) responsabilidade (a escola faz com que as coisas do mundo "falem", "tenham autoria" para os alunos). (KOHAN, 2017, p. 953, grifos nossos)

Os traços desta forma escolar falam de uma escola do presente, daquela que se faz dia a dia. Quando estão em conjunto, elas garantem que exista um tempo e espaço em que o mundo é público e cheio de possibilidades; as coisas são coletivas, são interessantes, são processuais, são renováveis, são amáveis e mutantes. Ainda assim, a atenção como parte desta forma pedagógica me faz refletir sobre a necessidade de se demorar em ver, sentir, cheirar, problematizar e ler o mundo, pois nele há infinitas possibilidades de invenção pelos sujeitos que nela transitam. Parece-me que esta atenção, uma atenção amorosa e por inteira, pode potencializar inclusive a percepção e a força das outras características da forma escolar.

Associo a atenção com a intencionalidade dos fazeres pedagógicos; portanto, com uma atenção às coisas mais rotineiras de uma vida escolar, por exemplo, torna esta “interessante e aberta” para ser recriada e também para pensá-la como um exercício — continuo e transformador. Um dos entendimentos destes autores é que esta atenção e intenção, na prática diária na escola, promova encontros entre as pessoas e o mundo com mais carinho, dedicação, respeito e responsabilidade. Outra reflexão é que a forma pedagógica seria “decisiva para pensar, na educação, enquanto educadores” (KOHAN, 2017b, p. 593) pois através dela é possível pensar novos “arranjos pedagógicos” na escola.

Então, a “pedagogia prática da atenção” cabe como um arranjo pedagógico possível dentro desta forma escolar. Esta pedagogia acontece na medida que se promove uma educação imersa “em práticas de atenção para tornar o mundo verdadeiro ou real, para que o mundo fale a eles [alunos] de outra forma” (KOHAN, 2017a, p. 74). Assim, o pedagogo teria a atribuição de manter atentos aos praticantes em caminhos traçados arbitrariamente por ele. Em outras palavras, seria disponibilizar-se, sair da zona do conforto, para colocar partes do mundo sobre a mesa com a responsabilidade de praticar um estudo atencioso. Esta prática pedagógica é colocada como a confluência de exercícios de autoformação e autoeducação já que acontece uma transformação na subjetividade de quem os propõe e os pratica.

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Para estes autores, esta forma de prática se afasta da concepção de uma educação prescritiva e enxerga a pedagogia como um exercício em que se “atrai alguém para o mundo ao mesmo tempo que lhe faz sentir a sua própria potência” (KOHAN, 2017a, p. 77). Ao estar falando de pedagogia, e prática pedagógica, traz-se à tona a infância:

Masschelein procura liberar a educação de seu tom missionário, deixando de ser uma tentativa de fazer algo com os alunos, seja para proporcionar a eles determinadas competências, para emancipá-los ou para o que quer que seja, e permitindo que a infância se mostra não como fase ou etapa a ser educada, mas como potência e como exposição de movimento, de deslocamento, de se colocar a caminho. Assim, o mestre, longe de ser quem forma a infância, é quem procura manter o aluno nela para que, dessa potência e exposição ao mundo, ele possa tirar toda a força da qual é capaz. (KOHAN, 2017a, p. 78)

Enfim, talvez prestar atenção aos jogos cotidianos seja como o esforço do pedagogo de manter os alunos no território da infância, onde é possível fazer cursos nos cursos, transitar entre trilhas e prestar atenção ao mundo de outras formas. Especialmente, fazer um esforço de sustentar um “olhar pedagógico” para esses momentos rotineiros da vida escolar em que os sujeitos dançam entre ócios, tempo livre, corredores bagunçados e cheiro de merenda. RECEITA: "Pão da mãe" (rende 3 pães) (Esta receita foi gentilmente compartilhada por uma amiga que amo muito. E na verdade, a receita é da mãe dela.) Proposta: Faço a proposta de que faça um pão. Lembro que, durante o meu processo de re­educação   alimentar,   me   propus   cozinhar   algo   que   geralmente   comprava pronto no mercado. Por exemplo, desafiar­se a tentar uma vez na vida fazer sorvete ou fazer bolachinhas caseiras. Decidi, num dia que estava com muita vontade de pão, cozinhar ele em casa. Fui adquirindo um gosto especial pelo processo de fazer pão. É, primeiro, um alimento bastante comum de encontrar e consumir e, segundo, o seu processo me chama a pensar — e operar — os conceitos de cotidianidade e seus jogos sagazes e de pedagogia prática da atenção.   Se   você   se   sentir   com   vontade,   convido­lhe   a   cozinhar   um   pão. Prometo que sua casa estará impregnada com um cheiro maravilhoso durante o processo e será um exercício para trabalhar as ansiedades, as paciências e as intuições. Ainda quando nunca fez um pão, a questão é ir sentindo.

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Tempo de preparo:

Mais ou menos 2 horas e média (ou mais). É muito gostoso fazer esta receita quando   se   está   com   uma   pessoa   amada;   batendo   papo,   dando   risadas, compartilhando silêncios, enfarinhando a cozinha e esperando juntas.  Ingredientes: 1 kg de farinha de trigo (500 gr de branca e 500 gr integral) 2 colheres de sopa rasas de fermento fresco 3 colheres de sopa de açúcar 3 colheres de sopa de gordura (ou 3 colheres de goma de linhaça) 500 ml de água morna 1 colher de sopa de sal Procedimentos: Dissolver fermento em 1/2 copo de água com metade do açúcar. Deixar crescer até liberar um aroma de frutas muito passadas. Depois, é hora de misturar os ingredientes secos. Antes disso, pode separar e reservar mais ou menos 100  gr   da  farinha   pois   com  esse   tanto   irá   ajustando  o   ponto   de  liga   da massa;   a   farinha   vai   hidratando   no   processo   e   nem   todas   as   farinhas hidratam igual. Depende da umidade do dia, da qualidade do trigo, enfim... então   é   sempre   bom   tirar   um   pouco   de   farinha   antes   de   misturar   os ingredientes   secos.   Na   vasilha   que   misturou   os   ingredientes   secos, acrescenta   os   500   ml   de   água   morna   de   uma   vez;   acrescenta   o   sal   e   a gordura. Se quiser substituir a gordura por linhaça, pode deixar 3 colheres de   sementes   (linhaça   marrom   ou   dourada)   repousando   em,   mais   ou   menos,   3 colheres de água morna. Vai começar formar uma gosma bem pegajosa7. Nesse

momento, também acrescenta o fermento que foi preparado anteriormente. Eu já li que o sal inibe a fermentação do trigo, então vale tentar colocar o sal só depois de amassar bastante o pão. Já tentei de vários jeitos, mas o pão fica gostoso igual. Pode ir incorporando os ingredientes na vasilha e, aos   poucos,   acrescentar   o   pouco   da   farinha   que   separou.   É   necessário amassar por uns 7 minutos ou até ficar uma massa lisa e macia. Amassar o pão pode ser de várias formas; já fiz alguns pães em momentos do dia em que precisava muito depurar chateações ou raivas do dia, aí foram pães em que pego   a   bolota   de   massa   e   dou   socos   e   bato   ela   no   balcão.   Teve   outros 7 *Esta mesma gosma pode substituir o ovo em outras receitas, por exemplo. Se   pega   3   colheres   desta   gosma   e   acrescenta   duas   colheres   de   farelo   de aveia, pode fazer uma panqueca muito gostosa.*

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momentos em que fiz um pão porque queria sentir essa sensação melancólica que   me   dá   o   cheiro   dele   recém­assado,   aí   me   demoro   muito   mais.   Os movimentos   ao   amassar   são   esparsos,   leves,   lembrando   das   sensações   de quando   tinha   6   anos   e   estivesse   brincando   de   massinha   de   modelar. Basicamente, amassar um pão é ir brincando: esticando, batendo, levantando ela no ar e jogando na mesa. Você pode perceber a fermentação acontecendo quando empurra a massa com o dedo e ela já se mostra elástica. É difícil descrever o processo de fazer um pão. Você também pode, nesse momento de amassar,   acrescentar   algumas   sementes   e   temperos   para   dar   um   sabor diferente   —   gergelim,   sementes   de   mostarda,   orégano,   uva­passa,   canela, açafrão,   tomilho...   Enfim,   infinidade   de   combinações.   Após   esse   processo todo, deixar descansar a massa coberta por um pano por 10 minutos e depois sovar   por   mais   3   minutos;   após   isto,   deixar   descansar   novamente   por   15 minutos.   A   receita   rende   para   dois   pães   grandes.   Então,   pode   modelar   a massa depois dos primeiros descansos e deixar ela crescer até dobrar o seu tamanho original (mais ou menos 30 minutos). 

Aprendi que, para ter um pão de crosta bem crocante e miolo macio, você pré­aquece   o   forno   bastante,   na   temperatura   máxima   durante,   15   minutos antes   de   colocar   as   massas   no   forno   e   justo   antes   de   botar   as   formas dentro,  borrifa um  pouco  de  água no  forno.  Uma  opção  alternativa  para o borrifador é colocar dentro uma forma com um pouco de água enquanto ocorre o pré­aquecimento. Durante o primeiro cozimento do pão, a água evapora e fica   no   forno   não   deixando   ressecar   a   massa   assim   o   pão   crescer   o   seu máximo   dentro   do   forno;   a   primeira   temperatura   deste   cozimento   do   pão   é mais elevada (~220º). Então, a crosta, a esta temperatura, demora um pouco mais para se formar, mas quando esta se forma "veda" a superfície da massa e cria  uma  "panela". Aí,  começa  o segundo  cozimento:  após 20  minutos do primeiro processo, pode abaixar a temperatura a ~180º para assar durante mais  uns 15  minutos.  É  muito  importante que  durante a  primeira parte do processo,   o   forno   não   seja   aberto   para   não   deixar   escapar   a   umidade!   A segunda parte do cozimento, a temperatura um pouco menor, vai cozinhar o miolo do pão nessa "panela" formada pela crosta. Vão aprofundar os sabores, os aromas e a cor do pão fica mais bonita. O cheiro de pão assado em casa não tem como descrever; é a expansão da cozinha abraçando todo mundo que está   por   perto.   São   detalhes   tão   pequenos   que   fazem   o   pão;   repetitivos, cansativos,   intuitivos   e   os   resultados,   ainda   quando   não   são extraordinários, são sempre gratificantes. 

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Harmonização:

O pão harmoniza com tudo, basicamente. Pão pro café da manhã, pro café da tarde.   Para   passar   manteiga,   para   passar   geleia,   passar   azeite   e   umas pitadas de sal e orégano. Como você gosta de comer pão? Tem algum pão que já foi  inesquecível  pra  você?  O pão  também  harmoniza  com o  ócio;  talvez seja uma forma muito gostosa de perder tempo. Esta receita é tão mutável quando as formas de comer seu resultado. Vai sentindo; vai confiando nas suas   narinas,   dedos   e   olhos   para   saber   os   pontos   certos,   quantidades certas. A questão é a intuição e a prática. Se você puder, nunca deixe de assar pães quando tiver oportunidade.

1.3 SOBRE A COZINHA E EXPERIÊNCIAS EDUCATIVAS

Aos poucos, a cozinha e diversos conhecimentos sobre gastronomia estão se inserindo dentro do espaço escolar, propondo atividades educativas para as crianças. Por exemplo, durante a pesquisa de Maria de Fátima Rezende e Sônia Teresinha de Negri (2015), realizada em 2014, foram propostas oficinas culinárias com crianças numa escola da rede pública estadual no município de Pelotas com o intuito de promover mudanças nas atitudes alimentares e estimular uma educação em saúde. Ao longo de cada encontro se estudaram alguns grupos alimentares e foram propostas atividades de reconhecimento de comidas derivadas destes no seu cotidiano, além de ser facilitado o diálogo sobre as propriedades nutricionais e culturais destes alimentos. Todo encontro tinha uma parte prática, em que uma receita relacionada ao grupo alimentar do dia era preparada. Desta forma, as crianças se aproximaram dos processos de transformação dos alimentos discutidos, conhecendo as suas formas de produção, de manipulação, de conserva e também as suas vantagens nutricionais.

Outro exemplo interessante da integração dos conhecimentos culinários e educação é o projeto 'Crescer e Semear', iniciado pela empresária e consultora em gastronomia saudável Lidi Barbosa. Este tem objetivos similares à pesquisa de Rezende e Negri (2014), pois seu propósito é fazer oficinas na cozinha com crianças e merendeiras de escolas e incentivar hábitos alimentares mais saudáveis para combater o cenário de obesidade crescente no país. O projeto acredita que um maior envolvimento das crianças na manipulação dos alimentos, criando receitas saborosas, fáceis e com bastantes nutrientes, propicie um maior interesse em se alimentar com maior qualidade. Além disso, que esta alta qualidade da alimentação seria fortalecida ao manter um elo entre a alimentação escolar e a caseira; para promover este

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vínculo, voluntários do projeto oferecem oficinas e palestras para merendeiras de escolas e familiares.

Iniciativas similares emergem em outros espaços não necessariamente escolares, como o projeto 'Petit Gourmet' iniciado pelo cozinheiro e professor uruguaio Diego Ruete, em que o cozinhar se entende como forma de educar sujeitos. Segundo o cozinheiro, em entrevista com Gabriela Malvasio (2016), o mote deste programa é “mais que uma receita”. Nesta frase refletem as intenções de levar os aprendizados na cozinha para além do preparo dos alimentos; instiga a proporcionar uma outra forma de relação entre crianças e natureza, problematizar o consumo, promover a coletividade e lutar por mais espaços de hortas comunitárias e o uso da cozinha na escola como mais uma sala de aula. Ele resume este movimento no termo 'educocina8'; uma outra maneira de aprender sobre conhecimentos científicos e habilidades motoras e sociais através de experiências culinárias.

Estes projetos coincidem em tornar a cozinha um lugar de aproximação entre os sujeitos, o corpo e alimentos in natura tentando criar relações mais saudáveis entre estes. Ainda assim, se apresentam como iniciativas de ações pontuais e mais direcionadas ou '‘guiadas’', geralmente acompanhadas por profissionais de nutrição. No campo do Ensino de Ciências, a cozinha também tem sido buscada como forma de aprender e se apropriar do conhecimento científico. Maximilla, Reis e Schwantes (2018) escreveram sobre a experiência de um curso de extensão oferecido a estudantes do curso de Pedagogia na Universidade Federal de Rio Grande onde eram contextualizados conhecimentos sobre química, física e biologia através do cotidiano da cozinha, além de relacionar os aspectos culturais que se encontram neste espaço.

A intenção do curso foi enriquecer os conhecimentos sobre ciências dos pedagogos em formação, oferecendo possibilidades para trabalhar com estes conhecimentos nas suas práticas pedagógicas futuras. O curso ocorreu durante quatro dias, sendo que cada um tinha uma temática relacionada à alimentação, abrangendo desde aspectos biológicos do consumo de alimentos, até os aspectos sensoriais e afetivos dele. Porém, ainda que estas temáticas já tivessem sido delimitadas pelos facilitadores do curso, a construção do conteúdo do curso foi a partir das experiências e dos hábitos alimentares dos participantes.

8 'Educocina': o termo foi criado pelo uruguaio Diego Ruete para sintetizar a utilização da horta e da cozinha como ferramentas educativas relacionados à educação alimentar e educação em saúde. Além de me identificar com a proposta de utilizar a experiência na cozinha para pensar outra educação em saúde, acredito ser importante olhar, enfatizar e abraçar iniciativas que surgem na América Latina; no hemisfério sul do mundo.

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Refletir sobre as próprias experiências alimentares, principalmente as mais cotidianas, pode então ser proliferante para pensar a educação, também. Sem necessariamente pensar em propostas de oficinas, com objetivos mais direcionados, mas perceber-se como sujeito que está inserido em um sistema alimentar e que transita entre culturas, sabores, afetos, memórias, nutrientes... Embora não são todas as pessoas que se envolvem em práticas culinárias — seja na cozinha de casa, em oficinas em escolas, por lazer ou prazer... — a transformação dos alimentos atravessa sempre nosso dia a dia.

A pesquisadora e artista visual Juzelia de Moraes Silveira (2016) investigou as práticas de cozinha como produtoras de sujeitos, e também como estas são produzidas por eles — sob as perspectivas teóricas da Cultura Visual, a Investigação Narrativa e, de grande interesse para esta pesquisa, os Estudos do Cotidiano. Esta pesquisa, intitulada “As práticas de cozinha como produtoras de microrresistências”, parte da observação de que o cozinhar contém aprendizagens que extrapolam a questão do preparo do alimento e envolve diversas relações possíveis dos sujeitos com este fazer e este espaço da cozinha. Nela, participaram quatro sujeitos que tinham um vínculo forte com a cozinha, os quais fizeram uma “troca de receitas” para trazer à tona suas experiências neste espaço e refletir com eles a relação de tais práticas com sua subjetividade.

A proposta da reflexão era pensar estas experiências a partir de imagens imateriais dos sujeitos, ou seja, das suas memórias sobre o espaço da cozinha e sua própria relação com ela. Parte das relações que surgiram a partir da reflexão das práticas na cozinha foram as “noções de afetividade, cuidado e amor comumente associadas ao ato de cozinhar e comer coletivamente” (DE MORAES, 2016, p. 49). Além disso, a pesquisa provoca problematizar quais sujeitos que podem ocupar estes espaços e exercer estas práticas. É interessante, então, pensar que a relação com cozinha, com o cotidiano de comer, fica também nos sujeitos na esfera da memória — lembranças de contextos específicos da vida, de condições econômicas, de cheiros específicos ou de alguma pessoa que associamos à cozinha.

Ou seja, ainda quando não é uma habilidade que seja praticada cotidianamente por alguém, este fazer tem outras possibilidades de presença no sujeito. Talvez podemos pensar que existem outras tantas aprendizagens que chegam aos sujeitos que, passivamente, não se colocam de maneira criativa no momento de aprender a fazer um pão integral ou reproduzir uma receita familiar de bolo de cenoura.

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1.4 A COZINHA DAS ESCOLAS

Por lei, o governo Federal, Estadual e Municipal têm a obrigação de organizar e financiar o acesso a uma alimentação adequada e saudável no ambiente escolar para todas e todos os estudantes da Educação Básica durante o ano letivo, incluindo nos dias de reposição de aula. Normativas que dizem respeito a alimentação escolar, como a Lei nº 11.947/2009 e a Resolução do FNDE nº 26/2013, abrangem dentro do conceito “alimentação saudável” aspectos nutricionais, para garantir o mínimo de segurança alimentar aos discentes; culturais, para dialogar com os diferentes hábitos e contextos alimentares locais; assim como aspectos ambientais, promovendo o consumo de produtos da agricultura familiar da região.

Quando há especificidades de dieta, como alergias, intolerâncias, doenças associadas, ou especificidades culturais — como o caso de comunidades indígenas — as escolas também são obrigadas a atender estas demandas. Além disso, as diretrizes dizem sobre a capacitação requerida das merendeiras e as normas de higiene e equipamento de segurança e trabalho que elas devem se adequar. Por outro lado, é obrigação dos governos assegurar boas condições na estrutura na cozinha, que a mesma esteja de acordo com as normas vigentes da Vigilância Sanitária, e ter à disposição utensílios necessários e os alimentos em boas condições para manipulação.

As recomendações do que é uma alimentação saudável dentro do ambiente escolar são explanadas pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O PNAE, e as legislações que visam a sua efetivação, direcionam o trabalho dos profissionais em nutrição e das entidades oficiais para a elaboração dos cardápios escolares. Assim, é reafirmado o direito dos estudantes de ter acesso a uma alimentação saudável, com elaboração de cardápios que sempre contenham as quantidades mínimas de vitaminas e minerais necessários para o corpo, conforme as faixas etárias atendidas, além de reduzir a ingestão de gorduras saturadas, sódio e açúcar. Cardápios que respeitem os hábitos e a cultura.

Além destas diretrizes indicarem as recomendações das questões práticas da alimentação escolar — financiamento, elaboração de cardápios, organização e forma de gestão — também afirma a importância e necessidade de incluir a alimentação como tema transversal no currículo da escola, promovendo educação alimentar e nutricional. Ou seja, espera-se que a alimentação nas unidades escolares seja um elo para discutir hábitos de vida mais saudáveis com uma perspectiva de segurança alimentar para a comunidade. É

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perceptível uma concordância entre as recomendações do PNAE dialogam do Guia Alimentar da População Brasileira. Estes documentos coincidem ao pensar a complexidade dos sistemas alimentares e que a noção de ‘saudável’ tange, tanto o perfil nutricional dos alimentos, quanto suas formas de produção, de compra, de manipulação e divisão.

A indústria alimentar dos ultra-processados aumenta a passos largos em alguns locais, o que chega a ser preocupante pelos efeitos que estes têm na saúde das pessoas quando consumidos em excesso — por conta do alto teor de gordura, açúcar, conservantes etc. Considerando os países da América Latina9, houve um aumento de 26,7% entre os anos de 2000 e 2013 do seu consumo, enquanto na América do Norte houve uma diminuição de 9,8%. São produtos que tendem a ser mais baratos nos mercados, daí que acaba fragilizando populações que já são socioeconomicamente vulneráveis ao "baratear" tanto a matéria prima utilizada, quanto os meios para sua produção. Torna-se menos prioritário assegurar que cada população consuma uma dieta que respeite sua cultura e suas necessidades nutricionais. Assim, aqueles insumos regionais, que povos originários cultivavam, colhiam e cuidavam, aos poucos sendo alastrados por produtos embalados, importados, barateados e propagandeados (OPAS, 2015).

As mídias, mercados desregulamentados e globalização descomplexificam a entrada de empresas estrangeiras nos mercados de alimentos das regiões, o que alerta aos governos e populações a tomar medidas que amorteçam o aumento do consumo destes alimentos e seus efeitos.. A recomendação da OMS para "inverter esta tendência" dizem que:

[...] recomenda que as organizações governos, comunidade científica e da sociedade civil para apoiar e implementar políticas para proteger e promover a escolha de alimentos saudáveis. Estas políticas devem passar por campanhas de informação e educação, mas também pela adopção de legislações em matéria de preços, incentivos, agricultura e comércio para proteger e promover a agricultura familiar, as culturas tradicionais, incluindo alimentos frescos, produzidos localmente em programas como de merenda escolar, e estimular as habilidades domésticas de cozinhar (OPAS, 2015).

O PNAE e suas articulações, então, seriam parte de políticas públicas que se buscam a garantir que, pelo menos todas e todos os estudantes da Educação Básica, tenham o mínimo de segurança alimentar garantida durante o ano letivo. Portanto, a transversalidade da educação alimentar e nutricional no espaço escolar e no currículo me parece mais urgente, porém apontando que esta educação vai além das questões nutricionais.

9 Os países que foram estudados pela OMS e publicados no relatório "Alimentos e bebidas ultraprocessados na América Latina: tendências, impacto sobre a obesidade e implicações para políticas públicas" são Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

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Para a elaboração da merenda escolar, as escolas públicas — federais, estaduais e municipais — têm uma cozinha com a estrutura necessária para a execução dos cardápios estabelecidos e com profissionais capacitadas para tal. Apesar da legislação vigente delimitar as estruturas e condições de trabalho ideais para as merendeiras nas escolas, isto nem sempre acontece. A descrição do trabalho, por exemplo, de uma cozinha escolar em Salvador, Bahia feito por Menezes e Soares, (2012) mostra intensidade, exaustão, planejamento, extremo cuidado na higiene, desgaste físico; nos faz pensar na sobrecarga destas profissionais, na falta de estrutura física no ambiente de trabalho e da ausência da visibilidade do papel delas no espaço escolar.

Ao mesmo tempo, o cotidiano do preparo da merenda é um momento de socialização, de compartilhamento de experiências, de afetividade e solidariedade entre cozinheiras. As cozinheiras mostram um cuidado e preocupação com os alunos e colegas de trabalho, têm aspirações sobre melhorias nas condições de trabalho e, apesar do extenuante trabalho, elas também apreendem a escola com vivências para além do cozinhar. As cozinheiras cultivam uma relação de afeto com os alunos, relação que é atravessada pelo fato de alimentar as crianças e sentir-se ‘um pouco mãe’ de cada uma delas (CARVALHO et al, 2008).

Então, parece que o espaço da cozinha e do refeitório numa instituição de ensino — ou posso me referir a uma forma escolar? — está impregnada de valores e discursos complexos e ricos que, na sua espacialidade, podem ser compreendidos como parte do currículo (ESCOLANO, 2001). Pelos apontamentos feitos ao longo deste capítulo, o espaço da cozinha e onde se come carrega memória, carinho, histórias e cultura e, no seu cotidiano, talvez algo emerja dos espaços e faça parte das aprendizagens motoras e sensoriais na escola. Então, vamos a nos perguntar: o que é possível aprender no “jogo cotidiano da cozinha e refeitório” durante um recreio comum?

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Referências

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