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Dialogo de tradições e a formação dos precedentes judiciais qualificados na Civil Law

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DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES

JUDICIAIS QUALIFICADOS NA CIVIL LAW

RUY ALVES HENRIQUES FILHO

ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO OTERO

TESE ESPECIALMENTE ELABORADA PARA OBTENÇÃO DO GRAU

DE DOUTOR EM CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS

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FACULDADE DE DIREITO

DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS QUALIFICADOS NA CIVIL LAW

RUY ALVES HENRIQUES FILHO Orientador: Professor Doutor Paulo Otero

Tese especialmente elaborada para obtenção do Grau de Doutor em Direito, especialidade de Ciência Jurídico-Políticas.

Juri: Presidente: Doutor José Artur Anes Duarte Nogueira – Professor Catedrático e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Vogais: - António Ulisses Cortês – Professor Auxiliar da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa;

- Doutora Isabel Celeste Monteiro da Fonseca – Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho;

- Doutor Paulo Manuel Cunha da Costa Otero – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, orientador;

- Doutora Ana Paula Mota da Costa e Silva – Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

- Doutor Carlos Manuel Almeida Blanco de Morais – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

- Doutor Luís Miguel Prieto Nogueira de Brito – Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

- Doutora Ana Fernanda Ferreira Pereira Neves – Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.

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Durante quase uma década de estudos, viagens de pesquisa e leituras, venho tornar público meu agradecimento ao incentivo das investigações e aprofundamentos provocados pelo meu orientador, Professor Doutor Paulo Otero. Quero também agradecer aos Professores Doutores Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, pelas aulas e também pelo estímulo recebido quando da minha estadia em Lisboa. Da mesma forma, sinto o carinho dos servidores e colaboradores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Quero, ainda, deixar aqui minha gratidão aos colegas do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, companheiros de gabinete e colegas de docência do Centro Universitário Curitiba e da Escola da Magistratura do Paraná. Por fim, meu carinho e amor à minha esposa e companheira Ana Lúcia, sempre firme ao meu lado, embora muitas vezes eu cambaleante, minha amada filha Marina, minhas irmãs e sobrinhos, sogros e também aos meus pais, Ruy e Lidette, sendo que esta flor generosa e forte, partiu deste plano material durante a elaboração desta preciosa pesquisa além mar.

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Trata-se da elaboração de uma tese nascida do estudo dos precedentes judiciais incorporados na tradição civil law, com a intenção de determinar a obrigatoriedade judicial de suas razões. Inicia-se pela análise das tradições jurídicas ocidentais e respectivo diálogo entre as mesmas, decorrente do fenômeno da globalização e aproximação entre as nações, cultura e história tão divergentes. Alguns instrumentos favorecem esta aproximação e proporcionam um diálogo profícuo, porém demandante de adaptações, revisões e recriações de institutos jurídicos. Na esteira dos Assentos judiciais portugueses, comparou-se a tentativa brasileira atual de criação de instrumentos uniformizadores dos julgados decorrentes de filosofia sulamericana do neoconstitucionalismo. Este fenômeno sócio-jurídico, por autorizar não só a interpretação construtiva do direito, mas também estimular a criação de julgados com força de lei, provoca instabilidade no sistema jurídico brasileiro, como já ocorrido no passado lusitano quando da adoção dos Assentos. Referida insegurança jurídica, paradoxalmente nasce da tentativa de uniformização dos julgamentos que terminam por conferir incontroláveis poderes aos Tribunais. A promulgação do novo código de processo civil brasileiro em 2015, instituindo de forma parcial e inadequada a Teoria dos Precedentes Judiciais Vinculantes criou o ambiente ideal para a análise do diálogo das tradições da civil law e common law. O modo que as cortes são compostas e, em especial, como a colegialidade trabalha para julgar um case sem precedente e com a possibilidade de vincular outros julgados, sob pena de nulidade da decisão posterior em desobediência à decisão paradigma, da mesma forma, foi analisado. Instrumentos como o controle da constitucionalidade das decisões judiciais e normas legislativas; o uso abusivo de cláusula geral, de conteúdo indeterminado e inconsistente forma de revisão e atualização dos precedentes judiciais com pretensão vinculativa geral e abstrata, ganham importante espaço no presente estudo. Portanto, propõe-se a qualificação e consequente especialização dos chamados precedentes judiciais obrigatórios para alcançar a pretendida uniformização e previsão do sistema judicial decisório, de modo a colaborar para com o trato da crise de identidade referida e, ainda, a atuação eficaz e pacificadora da jurisdição estatal.

Palavras-chave: PRECEDENTE JUDICIAL VINCULANTE – FORMAÇÃO – TRADIÇÕES JURÍDICAS DIVERGENTES

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studies incorporated by the civil law tradition, trying to determinate the judicial obligation of their reasons. It begins by analysis of western law traditions and their respective dialogue between them, due to the globalization phenomenon and the approach among nations, culture and history so divergent. Some instruments encourage this approximation and provide a profitable dialogue, however demanding adaptation, reviews, and re-creations of law institutes. Regarding to Portuguese judicial assentos, was compared the current Brazilian attempt of making uniformity tools for decisions as result of the South American neoconstitucionalism philosophy. This social and legal phenomenon, which authorizes not just the constructive interpretation of law, but also encourage the creation of judgments with power of legislation, lead to instability of the Brazilian Legal System, as already have happened in the Lusitanian past when was adopted the assentos. This juridical insecurity paradoxically was born by the attempt of judgment standardization, which entails by give uncontrollable power to the Court. The enactment of the new Brazilian civil procedure code in 2015, instituting partially and inadequate the theory of binding judicial precedents created the ideal environment for the analysis of the dialogue of civil law and common law traditions. The way the courts are composed and, in particular, how plurality of judges work to decide an unprecedented case and with the possibility of linking others decisions, under penalty of nullity the subsequent decision in disobedience to the paradigm decision, in the same way, was analyzed. Instruments such as the control of the constitutionality of judicial decisions and legislative norms; abuse of general clause, of undetermined content and inconsistent way of reviewing and updating judicial precedents with general and abstract binding intent, gain important space in the present study. Therefore, it is proposed the qualification and consequent specialization of the so-called mandatory judicial precedents to achieve the desired standardization and prediction of the judicial decision-making system, in order to collaborate with the treatment of the referred crisis of identity and, also, the effective and pacifier action of the state jurisdiction.

Keywords: BINDING JUDICIAL FORCE – FORMATION - DIVERGENT LEGAL TRADITIONS.

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INTRODUÇÃO ... 01

Introduction ... 01

§ 1º O Diálogo de Tradições ... 04

The Dialogue of Traditions ... 04

1. A Atuação Judicial: parcial sobre sua evolução ... 04

The Judicial Action: part of its evolution... 04

2. Interpretação e criação do direito ... 28

Interpretation and creation of law ... 28

3. Difícil equação Previsibilidade x Efetividade ... 53

Difficult equation: Predictability x Effectiveness ... 53

4. Crise sistêmica: judicialização e atuação legislativa ... 84

Systemic Crisis: judicialization and legislative action ... 84

5. A tentativa de uniformização das decisões: Brasil e Portugal ... 108

The attempt to standardize decisions: Brazil and Portugal ... 108

§ 2º As Tradições Jurídicas ... 120

The Legal Traditions ... 120

6. Diferenciação entre common law e civil law ... 121

Differentiation between common law and civil law ... 121

7. A tradição civil law ... 126

The civil law tradition ... 126

a. O Poder Judiciário brasileiro ... 135

The brazilian judiciary ... 135

b. Histórico ... 136

History ... 136

c. O sistema judiciário brasileiro atual ... 141

The current brazilian judicial system ... 141

d. Os Tribunais Superiores ... 143

The High Courts ... 143

e. A Justiça Comum ... 156

The Common Justice ... 156

f. A Justiça Especializada ... 160

The Specialized Justice ... 160

g. O Ministério Público ... 169

The Public Prosecutor's ... 169

h. O Poder Judiciário português ... 174

The Portuguese judiciary ... 174

i. O Tribunal Constitucional ... 174

The Constitutional Court ... 174

8. A tradição common law ... 182

The common law tradition ... 182

a. O Sistema Judiciário Inglês ... 194

The British judicial system ... 194

b. O Parlamento Inglês ... 194

The British parliament ... 194

c. O Ato de Reforma Constitucional de 2005 ... 195

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f. A primeira instância inglesa ... 199

The first British instance ... 199

g. Peculiaridades da Justiça Inglesa ... 199

Peculiarities of British Justice ... 199

h. O sistema judiciário dos Estados Unidos da América ... 202

The judicial system of the United States of America ... 202

9. O Juiz: seu papel nas tradições ... 212

The judge: his role in the traditions ... 212

10. O Diálogo das tradições jurídicas: Ativismo Judicial e Neoconstitucio nalismo ... 222

The Dialogue of legal traditions: Judicial Activism and Neo- constitutionalism ... 222

a. Compreendendo o ativismo judicial e o neoconstitucionalismo ... 233

Understanding judicial activism and neo-constitutionalism ... 233

b. Possíveis causas do ativismo ... 247

Possible causes of activism ... 247

c. O Ativismo e sua expressão por meio dos “precedentes judiciais” e as fontes tradicionais do direito ... 255

Activism and its expression through "judicial precedents" and traditional sources of law ... 255

§ 3º Ferramentas à disposição do diálogo ... 265

Tools available for dialogue ... 265

a. Breves apontamentos históricos do protagonismo judicial ... 265

Brief historical notes of judicial protagonism ... 265

b. Sistemas de fiscalização ... 273

Surveillance systems ... 273

c. Normas sujeitas à fiscalização judicial ... 274

Standards submitted to judicial review ... 274

d. Formas e tempo de fiscalização ... 279

Forms and time of inspection ... 279

11. Juízos de controle da constitucionalidade ... 280

Judgments on constitutionality control ... 280

a. Controle jurisdicional difuso ou em concreto ... 280

Diffuse or concrete jurisdictional control ... 280

b. Controle jurisdicional concentrado ou em abstrato ... 285

Concentrated or abstract jurisdictional control ... 285

12. Decisões dos tribunais e seus efeitos ... 287

Decisions of courts and their effects ... 287

a. Decisões em controle preventivo e seus efeitos ... 287

Decisions on preventive control and their effects ... 287

b. Decisões em controle concreto e seus efeitos ... 288

Decisions in concrete control and their effects ... 288

c. Decisões em controle abstrato e seus efeitos ... 297

Decisions in abstract control and their effects ... 297

d. Decisões conforme e sem redução de texto legal... 302

Decisions according to and without reduction of legal text ... 302

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Atypical decisions ... 332

a. Decisões atípicas exemplificativas ... 332

Exemplary atypical decisions ... 332

b. Legitimidade para edição de súmulas vinculantes ... 353

Legitimacy for edition of binding precedents ... 353

c. Cláusulas gerais ... 370

General clauses ... 370

§ 4º Teoria dos Precedentes ... 375

Theory of Precedents ... 375 14. Precedentes judiciais ... 375 Judicial Precedents ... 375 a. Definição ... 376 Definition ... 376 b. Tipos de precedentes ... 386 Types of precedents ... 386

c. Stare Decisis e as Cortes internacionais ... 395

Stare Decisis and the international Courts ... 395

15. Composição do precedente ... 411

Composition of the precedent ... 411

a. A Ratio decidendi ... 411

b. Obter dictum ... 416

16. A formação do precedente ... 420

The formation of precedent ... 420

a. A rigidez e mobilidade dos precedentes ... 424

The rigidity and mobility of precedents ... 424

b. A legalidade e aplicabilidade no sistema da common law. A questão da colegialidade ... 429

Legality and applicability in the common law system. The Issue of collegiality ... 429

c. A diferenciação da Súmula Vinculante ... 445

The differentiation of the Binding Precedent ... 445

d. A força vinculativa dos precedentes e seus argumentos: prós e contras ... 453

The binding force of precedents and their arguments: pros and cons ... 453

17. Modificação dos precedentes ... 472

The modification of precedents ... 472

a. Overruling ... 473

b. Antecipatory overruling ... 476

c. Distinguishing ... 478

d. The drawing of inconsistent distinctions ... 480

e. Technique of signaling ... 481

f. Transformation ... 482

g. Overriding ... 483

h. Efeitos da revogação dos precedentes na common law ... 484

The revogation effects of precedentes on common law ... 484

18. A necessidade da qualificação dos precedentes ... 487

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assentos of Portugal ... 493

b. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como formador de precedentes no processo civil brasileiro ... 520

The incident of resolution on Repetitive Demands as maker of precedents in Brazilian Civil Procedure ... 520

c. Assunção de Competência ... 531

Assumption of Competence ... 531

d. Os efeitos da revogação dos precedentes no civil law ... 534

The effects of precedent’s revogation on civil law ... 534

e. A impossibilidade de vinculação dos precedentes atípicos ou não qualificados ... 545

The impossibility of atypical precedent’s binding or not qualified ... 545

CONCLUSÃO ... 578

Conclusion ... 578

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 589

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Introdução

A velocidade da dinâmica social naturalmente se reflete no cenário jurídico, tanto na forma e intenção das leis, quanto nos julgados. As constantes modificações sofridas pela sociedade nos últimos tempos, mais especificamente no último século, bem demonstram a necessidade da evolução do direito, de modo a acompanhar a expectativa da população tutelada pelo Estado. Tais transformações logicamente atingem outros campos, países e continentes, porque vivemos em tempo de globalização e de blocos socioeconômicos.

É sabido que, tendo a função de garantir a pacificação social, não pode o Direito, tampouco a justiça, permanecerem inertes, devendo adequar-se de modo a suprir as necessidades sociais. Diante disso, pretende o presente estudo demonstrar que antigos institutos jurídicos não mais têm razão de ser, devendo necessariamente adequar-se, ou substituírem-se por novas opções. É neste contexto que se verifica a miscigenação entre institutos típicos das tradições da civil law e da common law, ensejando o surgimento de nova tradição jurídica ou mesmo de um sistema híbrido.

É neste contexto que se pretende analisar a convergência entre as tradições jurídicas ocidentais, assimilando a proposta de absorção, pela civil law, de institutos típicos da common law, a fim de assegurar, em tese, a consistência do ordenamento jurídico e da segurança jurídica frente as mudanças e necessidades sociais prementes. O rápido e intenso fluxo de informações, pessoas e capitais, na Era da Globalização deitou por terra não apenas o conceito de fronteiras, como anteriormente concebido, mas também os modelos jurídicos praticados ao redor do globo. As antigas tradições jurídicas não mais são possíveis de análise de modo estanque, senão de modo sistematizado: a troca de influência entre as tradições é prática corriqueira e também necessária.

Tem-se como inafastável a convergência entre as tradições referidas, não mais se verificando a existência de uma tradição sistemicamente pura, mas até mesmo uma simbiose de institutos utilizados pelas duas correntes. Ao passo que a common law vem aderindo a codificação, como foi o caso do código de processo civil inglês de 1995, é flagrante na civil law a liberdade experimentada pelos julgadores e o protagonismo da jurisprudência enquanto fonte do direito.

É nesta toada que o presente trabalho tem por objeto, ainda, o estudo de institutos que bem denotam a referida miscigenação, por meio da abordagem do

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neoconstitucionalismo, do fenômeno do Ativismo Judicial e do Controle da Constitucionalidade das normas. A Teoria dos Precedentes Judiciais e os Assentos de Portugal também ganham destaque.

Não obstante, como escopo precípuo, envidou-se a análise de um dos institutos que bem representa o ponto de intersecção entre as duas tradições no Brasil: os precedentes judiciais. Breve análise do contexto judiciário bem demonstra o ganho de importância do papel jurisprudencial, tendo o juiz positivista e representante da célebre expressão “buche de la loi” passado a verdadeiro protagonista judicial, fenômeno a que muitos atribuem o papel criativo do direito, similar ao que se infere na common law.

De outra banda, o ganho de liberdade na atuação jurisdicional provoca a ruptura do sistema tradicional brasileiro e imputa maior responsabilidade do julgador. A atuação não sistêmica e dessincronizada da magistratura traz à tona a insegurança jurídica, derivada de um sistema guiado não pela norma jurídica, mas pelo subjetivismo. Ao jurisdicionado fica somente a dúvida e a instabilidade de contar com o elemento sorte, a fim de que o pleito pretendido seja analisado por juiz subjetivamente favorável ao seu intento. O fator de maior importância para que o julgador brasileiro e adepto a tradição da civil law tenha partido para essa jornada imprecisa é, sem dúvida, o déficit legislativo importante (anomia), cuja prática, ou melhor, a ausência de sua prática, afeta o Princípio da Proibição de Insuficiência.

É em razão do cenário de insegurança e falta de estabilidade do direito dito pelos tribunais que este estudo se debruça sobre a análise dos efeitos dos precedentes judiciais vinculativos, típicos da common law, agora na tradição da civil law. Sugere-se sua adoção como mecanismo de auxílio para solução do indigitado problema. Trata-se de tema de suma relevância, eis que consiste o direito jurisprudencial no direito vivo, concretizado, e que diretamente atinge a população. Nesse contexto, procura-se demonstrar que a Teoria dos Precedentes não pode ser objeto de implante automático e incondicional à tradição da civil law, sob pena de originar maior caos jurídico. Não se pode olvidar que a simples implantação do instituto sem quaisquer adequações consiste em improviso maléfico, visto tratar-se de mecanismo forjado sob contexto cultural diverso, cuja adaptação não é simples, tampouco poderá ser imposta.

A adoção desta teoria com as devidas adaptações junto à civil law pode ser usada como medida de solução parcial à insegurança jurídica que tanto se combate no Brasil, porém, como evidente, não se trata de ferramenta hábil, por si só, a resolver a

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problemática da imprevisão dos julgamentos.

A proposta de elementos que possam filtrar o vigor e a força vinculante dos precedentes judiciais criados a partir da civil law é uma das formas de amortecer a “importação” de uma ferramenta legitimamente ligada à tradição de um povo mais antigo, que é composto por maioria não católica e, ainda, derivado de um processo de constante fortalecimento das relações entre o Legislativo e a Magistratura.

Aponta-se, ainda, a formação de precedentes judiciais na tradição brasileira e até portuguesa, derivados de exercício de decisões aditivas e atípico da função judicante, em especial via assentos. A exigência de elementos para a qualificação é imperativa, de modo a criar uma espécie de ferramenta legitimamente nascida da tradição legalista e potivista. Na esteira da qualificação proposta, surge a necessidade de comparar o instituto dos precedentes com os antigos assentos portugueses, cuja semelhança revela importante crítica e dúvida quanto ao sucesso dos mecanismos citados. Visita-se a questão da uniformização da jurisprudência e sua consequente possibilidade de descontrole criativo pelos tribunais ou mesmo paralisante em face dos juízos monocráticos de primeiro grau de jurisdição.

Exigir a aplicação de um julgado emblemático a casos análogos deve se dar naturalmente, pela tradição e confiança do povo na atuação dos tribunais. Por meio de qualquer outra forma de imposição, que não a do convencimento derivado da confiança, vicia a empreita que ainda poderá tolher a liberdade do julgador, preso aos precedentes ilegítimos ou eivados de interesses políticos de momento.

Portanto, ao tratar da incidência desta questão no direito brasileiro, dar-se-á atenção aos julgados politicamente influenciados pelos tribunais, que, em tese, seriam responsáveis pela criação dos tais precedentes judiciais obrigatórios, similares aos antigos assentos lusitanos.

Para esperar que todos os juízes decidam da mesma forma que seus tribunais de origem, deve haver um componente especificante. Se aceitam-se as ferramentas de vinculação, devem-se estar preparados para utilizar os mecanismos de modificação deste mesmos precedentes. Ocorre que, infelizmente, além de restar ausente na legislação (e até mesmo na jurisprudência brasileira) quem teria a competência para a formação dos tais precedentes judiciais, não é possível prever seus efeitos, tampouco as formas que os mesmos julgados podem ser alterados ou superados. Este estudo visa esclarecer os parâmetros para a formação, sujeição e revisão dos precedentes judiciais vinculantes, criando, por fim, métodos para sua sua qualificação obrigatória, bem

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como buscar as questões que levaam os mecanismos dos assentos falirem em Portugal. A tarefa proposta é singular e curiosa, pois a pesquisa sugere, cada vez mais, a atenção para um estudo multidisciplinar em relação ao mundo do Direito e sua aplicação num Estado em mutação social e normativa. Mesmo no novíssimo código de processo civil brasileiro, não há sequer metade das formas de adequação e modificação dos precedentes judiciais obrigatórios, como as têm os países dessa tradição. A confiança nos mecanismos revelados vem do uso e costume, do tempo embarcado na vida de cada sociedade. Os tribunais da civil law devem, como no direito consuetudinário, refletir esta expectativa e mudança comportamental, não impondo ao povo apenas o sentir do culto e do político que vive em cada um dos magistrados. A colegialidade dos julgamentos e a força vinculante dos precedentes também será objeto do estudo, bem como a força dos assentos lusitanos e fontes tradicionais do direito.

§ 1º O Diálogo de Tradições

1. A atuação judicial: parcial sobre sua evolução

Para entender todo o mecanismo da atividade judicial que hoje se conhece, é indispensável voltar na história para buscar suas origens e desvendar em detalhes como se deu, ao longo dos vários períodos históricos, a atuação judicial ocidental. A magistratura, como órgão responsável pela atividade julgadora, ao longo do tempo sofreu grandes transformações e evoluções, tanto pelas mudanças ocorridas na sociedade em si, como em razão da complexidade das organizações sociais mais ligeiras e superficiais.

Para destacar as tradições ou sistemas 1 judiciais ocidentais modernos, é necessário vinculá-los ao exercício da judicatura, especialmente em razão da postura do julgador ao julgar. Apesar de todas as dúvidas quanto ao poder criador do magistrado ao julgar um hard case e sua relação com as leis, apenas uma questão era e

1

Antes de prosseguir, a referência que se faz sobre sistemas ou tradições jurídicas ainda é discutível, posto que há quem defenda o uso da expressão “tradições”, sob o argumento de que a sistematização impõe regras infraconstitucionais para tipificar as condutas, o que retira o caráter “tradicional e cultural” da regra. Optou -se por não ingressar nessa discussão por temor de perder o foco sobre o que irá -se descortinar. Segundo RONALD DWORKIN, “o conceito doutrinário de direito figura entre os limites do conceito sociológico da seguinte maneira: nada é um sistema jurídico no sentido sociológico a menos que faça sentido perguntar que direitos e deveres o sistema reconhece”. Por entender a amplitude da discussão, em especial sob o seu aspecto ontológico, prosseguiremos sem maiores enfrentamentos pontuais para não perder o foco do est udo. Cf. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 7.

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é evidentemente certa: o Estado não pode abandonar o cidadão à própria sorte, de modo que a decisão e efetivação de qualquer solução dada em razão da demanda, por determinação constitucional, é responsabilidade inafastável do agente estatal.

Nestes termos, o estudo em apreço é destinado a identificar a atual relação de sistemas judiciais e o modo de formação dos precedentes, tendo estes últimos a função de padronizar entendimentos e até, há quem imagina, reduzir o tempo para a tomada de decisões e seu respectivo cumprimento.

Dalmo de Abreu Dallari ensina que é relativamente recente a aceitação da atividade do juiz como uma profissão, pois, inicialmente, o juiz era visto como um representante do povo “ou de um segmento da sociedade ou, então, como auxiliar do governo para tarefas específicas, consideradas de grande relevância”.2 A partir de tal ideia tem-se que a escolha dos juízes se deu de forma variada ao longo do tempo, inicialmente selecionados de acordo com os anseios do soberano, ou de acordo com o contexto histórico e social da época em que atuavam.

Quando da formação das civilizações organizadas, as regras “sociais” emanavam do próprio soberano, a exemplo da Europa Medieval, uma vez que a figura do julgador se confundia com a do soberano. O soberano era quem julgava eventuais conflitos ocorridos na sociedade e, pela falta de um mecanismo judicial, fazia-o de maneira totalmente arbitrária, solucionando de maneira parcial os conflitos, quando muito.

Nas Cidades-Estado gregas, o posto de magistrado era concedido a um cidadão que possuísse poder de comando, com o objetivo de atender ao interesse público. Assim, qualquer pessoa poderia ser candidata a ocupar vaga de magistrado e a escolha se dava por meio de sorteio ou eleição. Com a utilização de tal método, verifica-se que qualquer um poderia ser magistrado, sem que para isso fossem exigidos conhecimentos específicos da judicatura, podendo a ocupação do cargo se dar de forma vitalícia ou temporária, o que induz a crer que a magistratura não era vista como uma profissão, muito menos como função de Estado. Vale ressaltar que a magistratura poderia ser exercida por uma única pessoa ou por um grupo de pessoas, dito colegiado. De todo modo, originalmente, já não se atribuía aos magistrados o poder de iniciativa, cuja função era restrita a julgar os casos submetidos ao seu conhecimento, por interesse da parte.

2

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Hugo Enrico Paoli, em estudo mais aprofundado sobre a magistratura grega antiga, leciona que “o processo de escolha dos magistrados dependia do sistema político vigente”.3 Desta feita, nas oligarquias apenas os membros que pertenciam às classes dominantes poderiam ser magistrados, revelando que a ocupação do cargo dependia da posição social e política do indivíduo. Já nos sistemas em que predominava a democracia, o povo poderia participar da escolha dos magistrados. Com a escolha, em ambas as formas de governo, o magistrado era investido de legitimidade para representar os que o haviam escolhido, de modo a decidir as controvérsias levadas ao seu conhecimento.

Reportando-se a Roma, é perceptível a paulatina complexidade atribuída à magistratura, mesmo por força direta da expansão territorial imanente àquele império, simultaneamente à agregação de novos povos com diferentes costumes. Fator de destaque refletido no seio jurídico refere-se às mudanças políticas e sociais vivenciadas ao longo da história romana.

A palavra “magistrado” acredita-se derivar da palavra magister, que significa “chefe”, muito embora não haja prova cabal de sua origem, tendo sido utilizada pela primeira vez no sentido de referir-se à pessoa que “recebia um mandato do povo e agia como seu representante, ocupando uma posição de relevo na organização política”.4 Inicialmente singulares, em momento posterior foram criadas as magistraturas coletivas, perdurando a questão da representatividade até o período imperial romano em 27 a.C. A forma de escolha dos magistrados era a eleição, de modo que o escolhido ocupava a função pelo período de um ano. Tanto a forma de escolha de magistrados como o lapso temporal de atuação variou muito durante a história moderna.

Como consequência da expansão do território romano e a evolução social, diversificaram-se as categorias de magistrados, diferenciados segundo a classe social, divididos em patrícios e plebeus, sendo, então, eleitos pelas suas respectivas classes. Se inicialmente não se exigia do magistrado qualquer saber jurídico, as mudanças vivenciadas pela sociedade romana acabaram por influir, exigindo a seleção de pessoas com algum conhecimento específico na área. Uma vez escolhido através do processo de eleição, o magistrado vestia o manto da legitimidade, daí advinda sua autoridade. Embora não se confundisse com a divindade que revestia a toga em passado distante, o juiz era extremamente respeitado e vinculado ao Imperador.

3

PAOLI apud DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9. 4

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A conversão do sistema político romano em império influiu também na magistratura, que perdeu o caráter representativo, passando os magistrados a serem escolhidos por exclusivo critério do Imperador, bem como considerados funcionários deste.

No âmbito processual, vale lembrar que o processo civil romano possuiu três fases que foram importantes para a individualização da ciência jurídica, mas ainda longe da festejada autonomia carneluittiana de 1903. É possível encontrar a fase da legis actiones; período do processo formulário; e período da extraordinaria cognitio. Na primeira fase, denominada de legis actiones, a pessoa do rei se confundia com a do magistrado, pois eram a mesma pessoa, tal função possuía caráter vitalício. Posteriormente, no período republicano, houve grande manifestação dos plebeus que reivindicavam acesso aos cargos de magistrados, bem como às leis escritas. Em seguida, visando mais segurança, foi criada a Lei das XII Tábuas, tendo, enfim, essência de normatividade.

Também a sentença, como conhecida hoje, foi criação romana, a qual representava a autoridade do Estado em decidir acerca de determinado litígio. Os romanos denominaram as sententias, que se referiam às decisões finais do processo e poderiam ser atacadas através do recurso de apelação, e as interlocutiones, referentes às decisões que ocorriam ao longo do processo e que não eram passíveis de recursos, quase como se pretendeu impor na recente discussão processual civil brasileira.

Com a gradativa oficialização das instituições processuais, em consequência da consolidação da cognitio extraordinaria, o magistrado, agora também juiz, passa a ser titular do poder- dever de examinar as provas (cognoscere) e proferir a sentença, a qual, pela primeira vez na história do processo civil romano, não mais consistia num ato exclusivo do cidadão romano, não tinha mais caráter arbitral, mas, sim, consubstanciava-se numa atuação em que era exprimida a vontade do soberano: ex autoritate principis. (...) Cria-se então, na organização judiciária do império, uma verdadeira estrutura hierárquica composta por inúmeros órgãos, a quem conferia o poder de julgar em primeiro ou superior grau de jurisdição. Ao lado das antigas magistraturas, que são preservadas, novos cargos são instituídos.5

5

JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI; LUIZ CARLOS DE AZEVEDO. Lições de história do processo

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A queda do Império Romano e o advento do que se convencionou chamar por Idade Média também refletiu no papel do magistrado:

Durante o longo período de conturbação e transformações que foi a Idade Média, as condições políticas da Europa, a definição de novos institutos jurídicos e políticos, a multiplicação de ordens jurídicas sem entrosamento numa ordem superior e sem ainda ter sido estabelecida uma hierarquia quanto à eficácia das normas, tudo isso torna muito difícil encontrar uma caracterização para a magistratura medieval. A partir do século nono, mais ou menos, com o desenvolvimento das corporações; com a multiplicação e o aumento da riqueza e do poder político das ordens religiosas e da Igreja Católica de modo geral; com as alianças de senhores feudais em torno de um rei, vão sendo definidas novas magistraturas. Assim, haverá tribunais corporativos e eclesiásticos independentes, decidindo sobre matéria cível e criminal, dando a certas pessoas o privilégio de não serem julgadas pelos tribunais do rei.6

Já na Idade Moderna, o fortalecimento dos reinos trouxe também reflexos à judicatura. O mundo jurídico adquiriu alguns dos contornos até hoje perceptíveis. Neste contexto, no direito português foi criado o recurso de sopricação, posto que era impossível atacar sentenças de determinados juízes, sendo um meio através do qual a parte vencida poderia questionar a decisão proferida. Em momento posterior, o recurso de sopricação ficou conhecido como agravo ordinário.

Para melhor visualização da forte ligação entre o magistrado e o soberano, cite- se como exemplo que as Ordenações Afonsinas estabeleceram a possibilidade quanto à parte que se sentisse lesada por uma decisão não terminativa, teoricamente não passível de recurso, poder reivindicar a reforma do julgado, mediante recurso de apelação ou pelo juízo de retratação.

No caso de negativa da reforma, poderiam ser utilizadas, consoante anterior publicação desta autoria, “as querimas, as quais se pareciam muito com o nosso agravo”.7 A parte tinha a opção, ainda, de reclamar diretamente com o rei, explicando o fato de maneira oral, perante a corte, por meio do agravo de estormento.

6 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 11. 7

RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 7.

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Posteriormente, extinguiu-se a possibilidade da reclamação oral, perdurando somente a possibilidade de queixa escrita.

Nota-se, neste contexto, que o juiz era mero fantoche nas mãos do soberano, na medida em que estes utilizavam os magistrados para atingir interesses pessoais, do mesmo modo que somente aos magistrados atingia a revolta da parte perdedora, eis que aquele ficava na linha de frente da “batalha”, protegendo o rei, que por sua vez escondia-se por trás da figura do magistrado.

No período de 774 a 900 d.C., na França, aos juízes era imposta certa fidelidade com relação à defesa dos interesses de quem lhes havia escolhido para ocupação do cargo de magistrado. Com base nisso, criou-se uma áurea negra em torno dos magistrados, os quais eram vistos como injustos e arbitrários, consequentemente temidos por agirem sempre em consonância com a vontade do soberano e dos nobres. Segundo Dallari:

[...] Governantes absolutos utilizavam os serviços dos juízes para objetivos que, muitas vezes, nada tinham a ver com a solução de conflitos jurídicos e que colocavam o juiz na situação de agente político arbitrário e implacável. Em tal circunstância, a escolha dos juízes era feita diretamente por quem detinha o comando político, o que deixava evidente que eles decidiam e praticavam outros atos, não decisórios, em nome e com o respaldo dos chefes supremos. [...] Isso contribuiu para que a magistratura se tornasse poderosa mas também para que se criasse uma imagem negativa dos juízes. Estes, afinal, sofrendo restrições apenas nos casos em que havia interesse do soberano, passam a agir com independência, fora de qualquer controle, cometendo muitas arbitrariedades, sendo temidos pelo povo.8

Neste período atribui-se à magistratura uma postura intensa, com certa liberdade para atuar, cujas arbitrariedades eram justificadas pela atuação de acordo com a vontade dos nobres e do soberano.

Consoante os ensinamentos de Raymond Carré de Malberg, nos séculos XVII e XVIII “o ofício dos juízes que integravam os Palarments era considerado um direito de propriedade, tendo a mesma situação jurídica das casas e das terras”.9 Nesta esteira, nota-se que a magistratura era algo que poderia nota-ser comprado, vendido, transmitido por

8 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12. 9

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meio da herança, e até mesmo poderia ser alugado, por período que fosse interessante para o proprietário do cargo, pois por vezes o proprietário não se interessava pela atividade judicante, mas queria conservá-la para um futuro descendente. Esse fato curioso da história alcançou até o pensador Montesquieu, na medida em que este adquiriu o cargo de magistrado por meio da herança deixada por um tio, pelo período de 1716 a 1726, tendo em momento posterior o célebre pensador acabado por vender o seu cargo, provavelmente cansado do fardo e impressionado com as injustiças cometidas por aqueles que tinham o dever de preservar o bem social. Tanto pode ser verdade tal hipótese que o Conde, logo em seguida, surgiu com a tese de divisão das funções do Estado, como se verá adiante.

O posto de magistrado era tido como real propriedade e, nesse sentido, a prestação judicial oferecida à população era fornecida mediante cobrança de taxas, havendo relatos, inclusive, de cobranças abusivas. Muito embora não houvesse uma clara separação distinguindo o que era público e o que era privado, a magistratura era considerada, definitivamente, um serviço da esfera pública, mas os juízes agiam de forma contraditória, na medida em que se portavam como prestadores de atividade privada, haja vista venderem a prestação à população, sem qualquer motivação ideológica, senão mercantilista.

Em outro momento encontram-se condutas que indicavam um choque direto em determinadas demandas, sobremaneira quando ao juiz cabia solucionar conflito entre um particular em face de servidores públicos e, decidindo a questão, julgava desfavoravelmente ao poder público, fazendo transbordar a ira dos governantes, que interpretavam tal situação como verdadeira afronta dos magistrados contra quem lhes concedeu o poder judicante.

Por todas as questões expostas, os magistrados eram temidos e vistos com desconfiança pelo povo, uma vez que os particulares ficavam receosos de se envolver numa controvérsia que demandasse a atuação judicial. Os próprios “funcionários” do governo viam o juiz como uma figura que se preocupava mais com seus interesses pessoais do que pela ciência do direito.

Tais fatos, bem como a estreita relação entre a magistratura e a nobreza daquele tempo, fizeram com que a Revolução Francesa afetasse diretamente a magistratura, punindo vários deles, não obstante os reflexos sentidos no exercício da atividade por aqueles que continuaram exercendo a função judicante. Com este marco na história, a

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ideia de soberania popular tinha como escopo e pressuposto teórico a necessidade de submissão dos juízes à lei.10

Reportando-se brevemente para o cenário nacional, há registros de que, na época do Brasil Colônia, uma carta foi escrita alegando a necessidade de implantação de um Poder Judiciário, não exatamente com tal denominação, nas Capitanias Hereditárias. Em tal período, observa-se que o cargo de magistrado era exercido por pessoas das quais não se exigia qualquer conhecimento jurídico. A população da colônia, assim como da metrópole portuguesa, desconfiava da atuação dos juízes, que exerciam suas atividades lastreados em entendimentos pessoais e subjetivos, portanto, arbitrários. Tem-se, contudo, que tal desconfiança foi desaparecendo na medida em que leis escritas foram criadas, não obstante o surgimento das Constituições.

Com um olhar voltado, agora, para a história da judicatura nos Estados Unidos, percebe-se que naquele país objetivou-se instalar de modo peculiar o sistema de separação das funções dos poderes, inovando à medida que se adotou o denominado sistema de “freios e contrapesos”, prevendo a cada um dos poderes um conjunto de funções típicas e atípicas, estas consistentes na fiscalização dos demais poderes.

Lá as ideias de Thomas Jefferson e as divergências tidas com o presidente da Suprema Corte, John Marshall, ocasionaram, em meados do ano de 1803, a competência daquela corte suprema para controlar a constitucionalidade dos atos praticados pelo Congresso Nacional, bem como do Executivo. Segundo Dallari, isso “foi fundamental para assegurar um papel ativo à magistratura, o que tem sido extremamente benéfico para a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos indivíduos nos Estados Unidos”.11 Tal fato trouxe como consequência a ideia do Poder Judiciário como um poder político participante da República. Sempre que necessária a verificação, modificação ou incremento dos textos fundamentais da constituição americana, formam-se convenções que, em número de 233 edições, entre 1776 a 2005, acabam por debater e equipar a magistratura com as melhores maneiras de gerir o Estado jugador fundamental.12

A contribuição de Thomas Jefferson vai além, pois também colaborou para a Declaração de Independência em 1776, bem como estabeleceu os fundamentos da

10

TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER. Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito

direito e de ação rescisória: recurso extraordinário, recurso especial e ação rescisória: o que é uma decisão contraria à lei? São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 16.

11

DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16. 12

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Constituição estadunidense de 1787, não obstante ter sido o terceiro presidente da República em um momento crucial em que se firmava um governo constitucional, superando a ideia do absolutismo.

Os primeiros anos de colonização dos Estados Unidos assentaram algumas linhas que permanecem até a atualidade, desde então ficando determinado que o Poder Judiciário é um poder pertencente ao Estado, tratando-se de um poder independente, de mesma hierarquia dos demais; do mesmo modo assentou-se o federalismo, dotando-se os Estados Federados de capacidade para definição de aspectos sobre seus sistemas judiciários; e, por fim, determinou-se desde logo que os juízes e tribunais devem posicionar-se do modo mais próximo possível da população, possibilitando que as controvérsias sejam solucionadas relevando-se aspectos inerentes aos costumes e, daí, influenciando a tipificação da conduta pelo Legislativo.

Faz-se pertinente uma observação quanto ao pensamento de Thomas Jefferson inerente ao ideário do papel dos juízes, pois almejava para um governo republicano que os magistrados fossem escolhidos pelo chefe do Poder Executivo. Tal ideia foi inserida no projeto de Constituição preparado por ele no ano de 1776. Os juízes ocupariam o cargo apenas enquanto “bem servissem”, portanto demissíveis ad nutum. Jefferson não compartilhava da ideia de que magistrados desfrutassem de vitaliciedade, sob pena de prejuízos à sua produtividade, não obstante à facilidade que poderia levá-los a cair em tentações, como o aceite de propinas, por exemplo.

Indo de encontro ao defendido por Thomas Jefferson, em 1801 foi aprovada pelo Congresso uma lei denominada “Judiciary Act”, através da qual determinou-se, entre outras questões, que os juízes eram irremovíveis. A aprovação da mencionada lei contou com a resistência de Jefferson, que alegava tratar-se de uma afronta aos princípios constitucionais e, utilizando-se desse argumento, seu governo recusou-se a confirmar determinadas indicações realizadas pelo seu antecessor. Curioso é que, embora Jefferson tenha tecido críticas ácidas a tal lei, nada fez para enfraquecê-la. Dos aliados políticos de Jefferson surgiu a ideia de propor uma emenda constitucional visando derrubar a vitaliciedade dos juízes, mas não obtiveram resposta positiva de Thomas Jefferson.

Todavia, segundo Dallari13:

13

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Thomas Jefferson foi sempre favorável à independência dos juízes, fazendo, entretanto, a seguinte ressalva: um Judiciário independente de um rei ou de um governo monocrático é uma boa coisa; mas independente da vontade do povo é um erro, pelo menos num governo republicano.

Atualmente, segundo Toni Fine 14 , não há norma escrita que preveja a vitaliciedade dos juízes da suprema corte norte-americana no cargo. No entanto, esta é jurisprudencialmente entendida pelo vocábulo “bom comportamento” exigido dos juízes pelo art. III da Constituição norte-americana, em cotejo à garantia da irredutibilidade de vencimentos, expressamente prevista no mesmo artigo.15

A preocupação de Thomas Jefferson, sobretudo, consistia no controle de constitucionalidade dos atos dos demais poderes, quais sejam, Executivo e Legislativo. Percebe-se daí advindo o gérmen da preocupação em tornar os atos estatais limitados e submetidos a um controle pelo próprio Estado, pois este representa, em última análise, o povo.

Diante disso, tem-se que os Estados Unidos idealizaram o Poder Judiciário como um “ponto de equilíbrio”, objetivando, dessa forma, evitar possíveis excessos dos outros poderes. Para que esse ideal fosse alcançando era necessário que os juízes fossem escolhidos pelo povo e ocupassem o cargo por tempo determinado, na concepção da época. Atualmente, apenas juízes de condados são escolhidos pelo povo, opção já em revisão em muitos estados americanos.

A questão da judicatura estadunidense passou por muitas discussões e modificações, de modo que o que hoje se estabelece é a ausência de vitaliciedade aos juízes, os quais exercem a função por tempo determinado, cabendo, contudo, a reeleição. Há exceção à regra da vitaliciedade, é o que se vislumbra dos juízes federais e em alguns tribunais estaduais. A essência da Constituição é o mote norteador do Judiciário nos Estados Unidos, embora lá as fontes formais do direito passam pela Constituição, tratados, leis ordinárias, regulamentos e decisões judiciais. As decisões judiciais são entendidas como “direito comum” e revelam que a função interpretativa é

14

TONI M. FINE. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 16.

15 Section 1. The judicial Power of the Unidet States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time ordain and establish. The Judges, both of the su preme and inferior Courts, shall hold their Offices during good Behavior, and shall, at stated times, recive for their services a compensation n office. CONSTITUÇÃO DO ESTADOS UNIDOS.

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a mais importante tarefa do Judiciário americano. A Corte Constitucional norte- americana será alvo de melhor estudo a frente. 16

Retomando-se a análise histórica, impossível deixar de analisar em pormenores os efeitos que a Revolução Francesa exerceu sobre a atividade judicante, não somente na França, mas em todos os demais países pelos quais se disseminou o ideal republicano encetado pela burguesia, espalhado por todo o continente europeu e por parcela da América já colonizada. A esses ideais típicos do modelo de pensamento que inaugurou o período convencionou-se chamar de Idade Contemporânea. A Revolução Francesa, além de propugnar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, trazendo consigo o gérmen dos direitos individuais, teve sobre a magistratura um verdadeiro efeito de ruptura. Muitos juízes foram perseguidos e sancionados por terem atuado apenas em benefício da autoridade que havia lhes indicado. Tais juízes foram forçados a se submeter ao ideal republicano, tendo seus poderes restritos e suas atividades moldadas de acordo com a separação dos poderes concebida por Montesquieu.

Em dito contexto, os juízes passaram a ser apenas a “boca da lei”, ou seja, reproduziam os textos previstos previamente na lei, sendo-lhes vedado interpretar e adequar a lei diante do caso concreto. Não cabia ao magistrado exercer juízo de valor frente à norma, pouco importando se a lei era imoral ou injusta: ao juiz apenas atribuía-se a função de aplicar a norma legislada ao caso concreto que lhe fosse apresentado.

A criação de códigos casuísticos, que a um só tempo petrificavam o pensamento do magistrado, impedindo qualquer exercício efetivo de poder construtivo pela magistratura, escondia-se sob o subterfúgio da legalidade. É fato que o Estado Liberal teve por condão extinguir as arbitrariedades do absolutismo, sustentando-se no princípio da legalidade. Todavia, a escolha do princípio da legalidade para embasar decisões do novo Estado escondia um lado negro, conforme asseverado alhures:

[...] Acontece que o motivo pelo qual os legisladores elegeram o princípio da legalidade como base da nova era social não era tão puro e justo quanto se pensava. À época, a lei nascia de ato

16

Ademais, a legislação das colônias não era verdadeiramente submetida à lei inglesa, mas sim vinculada ao direito inglês. O controle da legitimidade das leis coloniais se dava a partir do common law, até porque o Parlamento, como já dito, estava submetido a um metadireito ou a uma metalinguagem (o common law), e não simplesmente escrevendo as pri meiras linhas de um direito novo, como aconteceu com o poder (legislativo) que se instalou com a Revolução Francesa. LUIZ GUILHERME MARINONI. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. p. 47.

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emanado pela assembléia parlamentar francesa, a qual substituiu o rei na tarefa de legislar. Assim, em tal panorama, manteve-se uma espécie de “absolutismo velado”, uma vez que a vontade do tirano foi simplesmente substituída pela vontade legislada dos parlamentares, os quais, astutamente, reservaram para si, mediante processo político e legal, bem como utilizando a fórmula do princípio da legalidade, o poder absoluto e descomprometido.17

Paralelamente, voltando os olhos para Inglaterra, percebe-se que o parlamento conteve rigidamente o absolutismo sem a necessidade de tolher o poder conferido à magistratura, mas ao revés, aliando-se a ela. Este e outros traços marcantes definiram o que hoje conhecemos como common law.

O cenário continental europeu do século XVII mostra que o legislativo, ao confeccionar as normas, pouco se preocupava em observar se estas refletiam justiça e moral. Tal cenário se tornava ainda mais grave na medida em que o Poder Executivo apenas poderia atuar mediante a permissão legal, e ao Judiciário era cabível apenas a aplicação da norma, sem interpretações ou criações, chegando mesmo a ser concebido como poder nulo, sem voz. Tal contexto tornava impossível o controle dos atos legislativos.

Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier:

Não foi pequena a desconfiança dos legisladores franceses em relação aos juízes. Em decorrência disto, acabou-se restringindo a atividade jurisdicional – especialmente no que diz respeito à interpretação – a um âmbito estrito, pois que o juiz era tido como um ser inanimado e não deveria ser nada, além de ser a boca da lei. A Corte de Cassação francesa nasceu como órgão anexo ou auxiliar do Corps Legislatif.18

A restrição da atividade judicial ao exercício da mera subsunção entre fato e norma ensejou a denegação de julgar por parte de magistrados, que, frente a casos concretos não previstos pela norma, viam-se impossibilitados de exercer a jurisdição. Por este fato, convencionou-se a solução ainda hoje utilizada pelo direito brasileiro, inserida neste ordenamento desde meados de 1900, na qual se prevê que, quando determinado caso não encontra previsão legal casuística, na qual pudesse ser feita a

17

RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 26.

18

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subsunção, resta autorizado o uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito, encetando aí, ainda que timidamente, uma abertura hermenêutica deferida ao magistrado. Na atualidade, o novo Código de Processo Civil brasileiro determina que, “ao aplicar a lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência”. 19 No mesmo sentido, demonstrava-se a maior liberdade hermenêutica do magistrado através da previsão constante do art. 472 do projeto do mesmo diploma, o qual dispunha:

Parágrafo único: Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas, demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.

Esse projeto sofreu restrições severas e o artigo 489 do novíssimo código determina apenas que a inobservância dos precedentes poderá produzir a nulidade da sentença por falta de fundamentação específica. Como se verá adiante, a aplicação do mecanismo dos precedentes judiciais teve uma importante diminuição quando positivado no Brasil.

Na concepção do positivismo jurídico, a lei era produto da atividade legislativa. A função da lei era justamente limitar a atuação do jurista, fazendo com que o magistrado se detivesse apenas na letra da norma legislada. Dessa forma, o juiz passou a ser mero figurante da atividade judicante, posto que não possuía liberdade para julgar, afastando-se mais ainda da sociedade que já o desprezava.

Cumpre ressaltar que, para o positivismo jurídico, o direito deve ser estudado como fato social, tendo como objeto as normas que vigoram em determinado Estado, em época específica, não importando se tais normas obedecem ou não o ideal de justiça, cuja conceituação estende-se fora dos limites da ciência jurídica, conforme preconizado por Hans Kelsen.20

Elival da Silva Ramos acentua, neste contexto, que “a objetividade metodológica não importa, necessariamente, na aceitação passiva do direito posto

19 Lei n.º 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil, artigo 8.º 20 HANS KELSEN. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 116.

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(legislado ou costumeiro), pela completa desconsideração dos juízos de valor nele encarnado”. 21 Contudo, as normas positivas não deixam de determinar condutas, impondo, ainda que implicitamente, juízos de valor.

Ramos compara o positivismo jurídico com a dogmática jurídica conhecida na modernidade, aduzindo que o positivismo jurídico não está superado, pois “participa da base comum a todas as correntes doutrinárias que, a partir da metodologia positiva, se digladiam quanto a aspectos mais específicos de Teoria do Direito, como é o caso, por exemplo, da Teoria da Interpretação”.22 Mesmo Norberto Bobbio já acentuava que o método do positivismo era um método científico.23

O positivismo jurídico consiste, no tocante às fontes do Direito, na superioridade da legislação em relação às demais fontes do Direito, notadamente à jurisprudência e aos costumes. Como consequência, tem-se que o Estado passou a controlar a edição das normas, elegendo para isso órgão competente. Essa característica do positivismo jurídico deriva do fato da norma ser posta pelo Estado, e não por fonte diversa24.

Outra característica do direito positivo consiste na imperatividade do direito, que se baseia na ideia de que norma jurídica corresponde a um comando do soberano em relação os seus súditos, ou seja, a lei se exterioriza como verdadeiro poder estatal. A Teoria da Imperatividade foi duramente criticada por Kelsen, uma vez que o núcleo imperativo da norma estaria voltado aos magistrados, verdadeiros operadores do direito, e não aos súditos.

Ressalta-se que a mais notória característica do positivismo jurídico reside na adoção do conceito de ordenamento jurídico, ou seja, na concepção de que as normas são integradas em um único sistema. Cuida-se de ideia tratada por Hans Kelsen em sua obra, Teoria Pura do Direito, em que o membro da Escola de Viena defendeu que a

21

ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p 36.

22

ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37.

23

NORBERTO BOBBIO. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.299. 24

[...] A preponderância do ato decorrente do exercício da função legislativa sobre as demais fontes não é, propriamente, um traço tipificador das proposições positivistas, em sentido estrito, tendo aparecido nos escritos dos positivistas europeus do século XIX e das primeiras décadas do século XX pela circunstância de se viver, então, no Velho Continente o período do Estado Legal. Com a definitiva

consolidação do sistema europeu de controle de constitucionalidade, principalmente após a segunda metade do século passado, a Constituição, e não a lei, passou a assumir a primazia das fontes de produção do direito estatal, sem que isso venha a representar alteração significativa nos marcos do positivismo teórico. ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 39.

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norma jurídica nasce de algo que se encontra externo ao direito, ou seja, de um aspecto exterior à ciência jurídica, mas de cunho político, quando o povo aceita os comandos inseridos na Carta Constitucional.

Da noção de ordenamento jurídico enquanto sistema único25 decorrem, ainda,

duas características, quais sejam, a coerência e a completude. Fica certo, entretanto, que nenhum sistema jurídico é puro e intocável quando comparado à base da ciência jurídica, segundo Karl Popper.26 A coerência significa dizer que em um sistema não se admitem normas conflitantes entre si. No tocante à completude, cuida-se de característica ligada à ideia central do movimento positivista – certeza do direito. Do princípio da completude, podemos extrair duas conclusões: a vedação ao juiz quanto à criação do direito e a vedação ao juiz quanto à esquiva em solucionar controvérsia, sob o subterfúgio de ausência de previsão legal.

Para se chegar ao nível de coerência dentro do ordenamento jurídico, revela a doutrina:

A coerência do ordenamento jurídico é assegurada pelo estabelecimento dos chamados critérios de solução de antinomias, a saber, o hierárquico (lex superior derogat inferiori), o cronológico (lex posterior derogat priori) e da especialidade (lex specialis derogat generali). Entretanto, não há como negar a insuficiência dos três critérios em algumas situações, ou seja, quando há um conflito entre os próprios critérios, no sentido de que a uma mesma antinomia se possa aplicar dois critérios, cada um deles levando a um resultado diverso e quando não é possível aplicar nenhum dos três

25

Segundo TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, a ideia de ordenamento como sistema é resultado do surgimento do Estado Moderno e capitalista no século XVI. In Introduçao ao estudo do direito. 4. ed. Sao Paulo: Atlas. 2003. p. 178. Larenz sustenta que onde quer que tenhamos de tratar com uma verdadeira ordem jurídica, teremos de tratar com a ideia de sistema, em decorrência de princípios imanentes que se permeiam no seu conjunto, em um sistema. Aduz o autor que a única espécie de sistema cabível à ciência do direito é o sistema aberto, móvel em si até certo grau, que nunca está completo e pode ser continuamente posto em questão, tornando clara a racionalidade inerente aos princípios jurídicos. KARL LARENZ. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 231-241.

Para Bobbio, “Sistema é uma totalidade ordenada, um conjunto de organismos entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar em ordem, é preciso que os organismos constitutivos estejam em relação com o todo, mas também estejam em relação de compatibilidade entre si. Quando perguntamos se o ordenamento jurídico constitui um sistema, perguntamo-nos se as normas que o compõem estão em relação de compatibilidade entre si e em que condições é possível esta relação”. NORBERTO BOBBIO.

Teoria geral do direito. Trad. Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 219.

26 KARL RAYMUND POPPER. Lógica das ciências sociais. Trad. Estevão de Rezende Martins. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 16.

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critérios, visto que há duas normas antinômicas que são contemporâneas, paritárias e gerais.27

Diante de tal obstáculo, o princípio da completude foi rigidamente criticado. Para Maria Helena Diniz, as lacunas existentes no Direito devem ser preenchidas pelo poder competente, através de meios jurídicos, possibilitando manter a completude do sistema jurídico.28

O positivismo filosófico exerceu forte influência sobre o positivismo jurídico, motivo pelo qual este último buscou interpretar o direito como ele é, entretanto, o positivismo parece ir além da mera questão de entender o direito, atingindo também a forma do direito objetivado, ou seja, o movimento positivista não é apenas um modelo para entender o direito, mas também de como se pretende que o direito seja. Na Alemanha do século XIX podem ser encontrados resquícios da ideologia positivista, uma vez que tal país foi adepto de tal corrente. Muito embora a Alemanha afirmasse possuir uma essência racionalista, cultuando o direito positivo como um organismo racional, guardava em seu interior resquícios do pensamento jusnaturalista, conforme leciona Bobbio:

Essa tendência ideológica recebeu influência direta da concepção hegeliana de Estado, que não lhe atribui mero valor técnico, não sendo o Estado ‘um simples instrumento de realização dos fins dos indivíduos (como é no pensamento liberal), mas um valor ético, é a manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico e portanto é ele mesmo o fim último ao qual os indivíduos estão subordinados.29

O que se mostra curioso é que a adoração ao direito estatal que marcou fortemente a Alemanha recebeu duras críticas dos não positivistas, que sustentam a opinião que o apego ao positivismo foi a base do regime nazista germânico,

27

ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 41.

28

MARIA HELENA DINIZ. As lacunas do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 72. 29

NORBERTO BOBBIO. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 223-224. E ainda: Estado Liberal e Estado Democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz de garantiras liberdades fundamentais.

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fortalecendo suas ideias em conjunto com a crise ideológica e monetária enfrentada pelos alemães após a derrota na primeira guerra mundial.

Embora as críticas tenham sido relevantes, não há nada concreto que demostre, de maneira inquestionável, que o positivismo ideológico radical e o nazismo, assim como o fascismo, ocorrido na Itália de Mussolini, tenham alguma relação. Aliás, cumpre-nos lembrar que o apego à lei está inserido no contexto de Estado de Direito Liberal, o que claramente está longe de possuir afinidades com regimes totalitários. Tanto o fascismo italiano, quanto o nazismo na Alemanha, vieram com o duplo objetivo, o de combater o liberalismo democrático e de reagir contra a infiltração comunista, contudo foi a história mostra o qual amargo foi este remédio.

Entretanto, há quem sustente que o desuso do positivismo se encontra associado ao fracasso do nazismo alemão e do fascismo italiano. Esses poderes estatais, que se caracterizaram por violações de vários direitos fundamentais conhecidos hoje, atuaram sempre em nome da lei, tendo suas condutas legitimadas, enquanto chefes de Estado, pela lei. A lei era vangloriada e tudo justificava, conforme ensina Luís Roberto Barroso: “os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente”.30

Frise-se que o direito posto atualmente no Brasil reforça a ideia de um Estado que busca trazer previsibilidade ao direito, porém, oferecendo ao julgador mecanismos de colmatação da norma à realidade, ou seja, embora positivado, o juiz pode optar pela opção do precedente judicial. No decorrer da história percebemos que não há um trato indissolúvel entre o positivismo jurídico em face do positivismo ético extremista. Na contramão de tal constatação, temos que o modelo dogmático adotado positivista é a versão “prudente” do positivismo ético, que não se contenta em apenas afirmar que o direito é a saída para se obter a ordem social; vai mais além, aduzindo que a lei é o melhor meio de exteriorizar o direito, porém, espera-se que esta seja, acima de tudo, justa.

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LUÍS ROBERTO BARROSO. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional

brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Rio de janeiro. Disponível em:

<http://www.direitopublico.com.br/pdf_6/DIALOGO-JURIDICO-06-SETEMBRO-2001- LUISROBERTO-BARROSO.pdf>. Acesso em: 28.09.2011.

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