• Nenhum resultado encontrado

Mana vol.8 número1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Mana vol.8 número1"

Copied!
36
0
0

Texto

(1)

O se r h u m an o, tal com o o im ag in am os, n ão e x iste . N e lson Rod rig u e s

As p á g in a s a se g u ir fora m a d a p ta d a s d o a rra zoa d o in trod u tório a u m livro e m p re p a ra çã o, on d e d e se n volvo a n á lise s e tn og rá fica s a n te riorm e n te e sb oça d a s. A p rin cip a l d e la s foi u m a rtig o p u b lica d o e m M an a, “ O s Pro-n om e s C osm ológ icos e o Pe rsp e ctivism o Am e ríPro-n d io” (Vive iros d e C a stro 1996), cu jos p re ssu p ostos m e ta te óricos, d ig a m os a ssim , sã o a g ora e xp licita d os. Em b ora o p re se n te te xto p ossa se r lid o se m n e n h u m a fa m ilia rid a d e p ré via com o a rtig o d e 1996, o le itor d e ve te r e m m e n te q u e a s re fe -rê n cia s a n oçõe s com o ‘p e rsp e ctiva ’ e ‘p on to d e vista ’, b e m com o à id é ia d e u m ‘p e n sa m e n to in d íg e n a ’, re m e te m à q u e le tra b a lh o.

As regras do jogo

O ‘a n trop ólog o’ é a lg u é m q u e d iscorre sob re o d iscu rso d e u m ‘n a tivo’. O n a tivo n ã o p re cisa se r e sp e cia lm e n te se lva g e m , ou tra d icion a lista , ta m p ou co n a tu ra l d o lu g a r on d e o a n trop ólog o o e n con tra ; o a n trop ólo-g o n ã o ca re ce se r e xce ssiva m e n te civiliza d o, ou m od e rn ista , se q u e r e stra n g e iro a o p ovo sob re o q u a l d iscorre . O s d iscu rsos, o d o a n trop ólo-g o e sob re tu d o o d o n a tivo, n ã o sã o forçosa m e n te te xtos: sã o q u a isq u e r p rá tica s d e se n tid o1. O e sse n cia l é q u e o d iscu rso d o a n trop ólog o (o ‘ob

-se rva d or’) e sta b e le ça u m a ce rta re la çã o com o d iscu rso d o n a tivo (o ‘ob -se r-va d o’). Essa re la çã o é u m a re la çã o d e se n tid o, ou , com o se d iz q u a n d o o p rim e iro d iscu rso p re te n d e à C iê n cia , u m a re la çã o d e con h e cim e n to. M a s o con h e cim e n to a n trop ológ ico é im e d ia ta m e n te u m a re la çã o socia l, p o is é o e fe it o d a s r e la ç õ e s q u e c o n s t it u e m r e c ip r o c a m e n t e o s u je it o q u e con h e ce e o su je ito q u e e le con h e ce , e a ca u sa d e u m a tra n sform a

-O N ATIV-O RELATIV-O

(2)

ç ã o (t o d a r e la ç ã o é u m a t r a n s fo r m a ç ã o ) n a c o n s t it u iç ã o r e la c io n a l d e a m b os2.

Essa (m e ta )re la çã o n ã o é d e id e n tid a d e : o a n trop ólog o se m p re d iz, e p orta n to fa z, ou tra coisa q u e o n a tivo, m e sm o q u e p re te n d a n ã o fa ze r m a is q u e re d ize r ‘te xtu a lm e n te ’ o d iscu rso d e ste , ou q u e te n te d ia log a r — n oçã o d u vid osa — com e le . Ta l d ife re n ça é o e fe ito d e con h e cim e n to d o d iscu rso d o a n trop ólog o, a re la çã o e n tre o se n tid o d e se u d iscu rso e o se n tid o d o d iscu rso d o n a tivo3.

A a lte rid a d e d iscu rsiva se a p óia , e stá cla ro, e m u m p re ssu p osto d e se m e lh a n ça . O a n trop ólog o e o n a tivo sã o e n tid a d e s d e m e sm a e sp é cie e con d içã o: sã o a m b os h u m a n os, e e stã o a m b os in sta la d os e m su a s cu ltu -ra s re sp e ctiva s, q u e p od e m , e ve n tu a lm e n te , se r a m e sm a . M a s é a q u i q u e o jog o com e ça a fica r in te re ssa n te , ou m e lh or, e stra n h o. Ain d a q u a n d o a n trop ólog o e n a tivo com p a rtilh a m a m e sm a cu ltu ra , a re la çã o d e se n ti-d o e n tre os ti-d ois ti-d iscu rsos ti-d ife re n cia ta l com u n iti-d a ti-d e : a re la çã o ti-d o a n tro-p ólog o com su a cu ltu ra e a d o n a tivo com a d e le n ã o é e xa ta m e n te a m e s-m a . O q u e fa z d o n a tivo u s-m n a tivo é a p re ssu p osiçã o, p or p a rte d o a n tro-p ólog o, d e q u e a re la çã o d o tro-p rim e iro com su a cu ltu ra é n a tu ra l, isto é , in trín se ca e e sp on tâ n e a , e , se p ossíve l, n ã o re fle xiva ; m e lh or a in d a se for in con scie n te . O n a tivo e xp rim e su a cu ltu ra e m se u d iscu rso; o a n trop ólo-g o ta m b é m , m a s, se e le p re te n d e se r ou tra coisa q u e u m n a tivo, d e ve p od e r e xp rim ir su a cu ltu ra cu ltu ra lm e n te , isto é , re fle xiva , con d icion a l e con scie n te m e n te . Su a cu ltu ra se a ch a con tid a , n a s d u a s a ce p çõe s d a p a la -vra , n a re la çã o d e se n tid o q u e se u d iscu rso e sta b e le ce com o d iscu rso d o n a tivo. J á o d iscu rso d o n a tivo, e ste e stá con tid o u n ivoca m e n te , e n ce rra d o e m su a p róp ria cu ltu ra . O a n trop ólog o u sa n e ce ssa ria m e n te su a cu ltu -ra ; o n a tivo é su ficie n te m e n te u sa d o p e la su a .

Ta l d ife re n ça , é ocioso le m b ra r, n ã o re sid e n a a ssim ch a m a d a n a tu re za d a s coisa s; e la é p róp ria d o jog o d e lin g u a g e m q u e va m os d e scre -ve n d o, e d e fin e a s p e rson a g e n s d e sig n a d a s (a rb itra ria m e n te n o m a scu li-n o) com o ‘o a li-n trop ólog o’ e ‘o li-n a tivo’. Ve ja m os m a is a lg u m a s re g ra s d e s-se jog o.

(3)

l-d a l-d e n o p la n o l-d o con h e cim e n to. O a n trop ólog o te m u su a lm e n te u m a va n ta g e m e p iste m ológ ica sob re o n a tivo. O d iscu rso d o p rim e iro n ã o se a ch a situ a d o n o m e sm o p la n o q u e o d iscu rso d o se g u n d o: o se n tid o q u e o a n trop ólog o e sta b e le ce d e p e n d e d o se n tid o n a tivo, m a s é e le q u e m d e té m o se n tid o d e sse se n tid o — e le q u e m e xp lica e in te rp re ta , tra d u z e in tro-d u z, te xtu a liza e con te xtu a liza , ju stifica e sig n ifica e sse se n titro-d o. A m a triz re la cion a l d o d iscu rso a n trop ológ ico é h ile m órfica : o se n tid o d o a n trop ólog o é form a ; o d o n a tivo, m a té ria . O d iscu rso d o n a tivo n ã o d e té m o se n -tid o d e se u p róp rio se n -tid o. De fa to, com o d iria G e e rtz, som os tod os n a ti-vos; m a s d e d ire ito, u n s se m p re sã o m a is n a tivos q u e ou tros.

Este a rtig o p rop õe a s p e rg u n ta s se g u in te s. O q u e a con te ce se re cu -sa rm os a o d iscu rso d o a n trop ólog o su a va n ta g e m e stra té g ica sob re o d is-cu rso d o n a tivo? O q u e se p a ssa q u a n d o o d isis-cu rso d o n a tivo fu n cion a , d e n tro d o d iscu rso d o a n trop ólog o, d e m od o a p rod u zir re cip roca m e n te u m e fe ito d e con h e cim e n to sob re e sse d iscu rso? Q u a n d o a form a in trín -se ca à m a té ria d o p rim e iro m od ifica a m a té ria im p lícita n a form a d o se g u n d o? Tra d u tor, tra id or, d iz-se ; m a s o q u e a con te ce se o tra d u tor d e ci-d ir tra ir su a p róp ria lín g u a ? O q u e su ce ci-d e se , in sa tisfe itos com a m e ra ig u a ld a d e p a ssiva , ou d e fa to, e n tre os su je itos d e sse s d iscu rsos, re ivin d i-ca rm os u m a ig u a ld a d e a tiva , ou d e d ire ito, e n tre os d iscu rsos e le s m e sm os? Se a d isp a rid a d e e n tre os se n tid os d o a n trop ólog o e d o n a tivo, lon -g e d e n e u tra liza d a p or ta l e q u iva lê n cia , for in te rn a liza d a , in trod u zid a e m a m b os os d iscu rsos, e a ssim p ote n cia liza d a ? Se , e m lu g a r d e a d m itir com -p la ce n te m e n te q u e som os tod os n a tivos, le va rm os à s ú ltim a s, ou d e vid a s, con se q ü ê n cia s a a p osta op osta — q u e som os tod os ‘a n trop ólog os’ (Wa g -n e r 1981:36), e -n ã o u -n s m a is a -n trop ólog os q u e os ou tros, m a s a p e -n a s ca d a u m a se u m od o, isto é , d e m od os m u ito d ife re n te s? O q u e m u d a , e m su m a , q u a n d o a a n trop olog ia é tom a d a com o u m a p rá tica d e se n tid o e m con tn u id a d e e p istê m ica com a s p rá tica s sob re a s q u a is d iscorre , com o e q u iva le n te a e la s? Isto é , q u a n d o a p lica m os a n oçã o d e “ a n trop olog ia sim é -trica ” (La tou r 1991) à a n trop olog ia e la p róp ria , n ã o p a ra fu lm in á -la p or colon ia lista , e xorciza r se u e xotism o, m in a r se u ca m p o in te le ctu a l, m a s p a ra fa zê -la d ize r ou tra coisa ? O u tra coisa n ã o a p e n a s q u e o d iscu rso d o n a tivo, p ois isso é o q u e a a n trop olog ia n ã o p od e d e ixa r d e fa ze r, m a s ou tra q u e o d iscu rso, e m g e ra l su ssu rra d o, q u e o a n trop ólog o e n u n cia sob re si m e sm o, a o d iscorre r sob re o d iscu rso d o n a tivo?4

(4)

q u e d e té m a p osse e m in e n te d a s ra zõe s q u e a ra zã o d o n a tivo d e scon h e -ce . Ele te m a ciê n cia d a s d ose s p re cisa s d e u n ive rsa lid a d e e p a rticu la ri-d a ri-d e con tiri-d a n o n a tivo, e ri-d a s ilu sõe s q u e e ste e n tre té m a re sp e ito ri-d e si p róp rio — ora m a n ife sta n d o su a cu ltu ra n a tiva a cre d ita n d o m a n ife sta r a n a tu re za h u m a n a (o n a tivo id e olog iza se m sa b e r), ora m a n ife sta n d o a n a tu re za h u m a n a a cre d ita n d o m a n ife sta r su a cu ltu ra n a tiva (e le cog n iti-za à re ve lia )5. A re la çã o d e con h e cim e n to é a q u i con ce b id a com o u n ila

-te ra l, a a l-te rid a d e e n tre o se n tid o d os d iscu rsos d o a n trop ólog o e d o n a ti-vo re solve -se e m u m e n g lob a m e n to. O a n trop ólog o con h e ce d e ju re o n a tivo, a in d a q u e p ossa d e scon h e cê -lo d e facto. Q u a n d o se va i d o n a tivo a o a n trop ólog o, d á -se o con trá rio: a in d a q u e e le con h e ça d e facto o a n tro-p ólog o (fre q ü e n te m e n te m e lh or d o q u e e ste o con h e ce ), n ã o o con h e ce d e ju re , p ois o n a tivo n ã o é , ju sta m e n te , a n trop ólog o com o o a n trop ólo-g o. A ciê n cia d o a n trop óloólo-g o é d e ou tra ord e m q u e a ciê n cia d o n a tivo, e p re cisa sê -lo: a con d içã o d e p ossib ilid a d e d a p rim e ira é a d e sle g itim a çã o d a s p re te n sõe s d a se g u n d a , se u “ e p iste m ocíd io” , n o forte d ize r d e Bob Sch olte (1984:964). O con h e cim e n to p or p a rte d o su je ito e xig e o d e sco-n h e cim e sco-n to p or p a rte d o ob je to.

M a s n ã o é re a lm e n te p re ciso fa ze r u m d ra m a a re sp e ito d isso. C om o a te sta a h istória d a d iscip lin a , e sse jog o d iscu rsivo, com ta is re g ra s d e si-g u a is, d isse m u ita coisa in stru tiva sob re os n a tivos. A e xp e riê n cia p ro-p osta n o ro-p re se n te a rtig o, e n tre ta n to, con siste ro-p re cisa m e n te e m re cu sá -lo. N ã o p orq u e ta l jog o p rod u za re su lta d os ob je tiva m e n te fa lsos, isto é , re p re se n te d e m od o e rrôn e o a n a tu re za d o n a tivo; o con ce ito d e ve rd a d e ob je tiva (com o os d e re p re se n ta çã o e d e n a tu re za ) é p a rte d a s re g ra s d e s-se jog o, n ã o d o q u e s-se p rop õe a q u i. De re sto, u m a ve z d a d os os ob je tos q u e o jog o clá ssico se d á , se u s re su lta d os sã o fre q ü e n te m e n te con vin ce n -te s, ou p e lo m e n os, com o g osta m d e d ize r os a d e p tos d e sse jog o, ‘p la u síve is’6. Re cu sa r e sse jog o sig n ifica a p e n a s d a r-se ou tros ob je tos,

com p a tíve is com a s ou tra s re g ra s a cim a e sb oça d a s.

(5)

in ve stig a çã o sã o con ce itu alm e n te d a m e sm a ord e m q u e os p roce d im e n -tos in ve stig a d os7. Ta l e q u iva lê n cia n o p la n o d os p roce d im e n tos, su b

li-n h e -se , su p õe e p rod u z u m a li-n ão-e q u iva lê li-n cia ra d ica l d e tu d o o m a is. Pois, se a p rim e ira con ce p çã o d e a n trop olog ia im a g in a ca d a cu ltu ra ou socie d a d e com o e n ca rn a n d o u m a solu çã o e sp e cífica d e u m p rob le m a g e n é rico — ou com o p re e n ch e n d o u m a form a u n ive rsa l (o con ce ito a n tro-p ológ ico) com u m con te ú d o tro-p a rticu la r —, a se g u n d a , a o con trá rio, su sp e ita q u e os sp rob le m a s e le s m e sm os sã o ra d ica lm e n te d ive rsos; sob re tu -d o, e la p a rte -d o p rin cíp io -d e q u e o a n trop ólog o n ã o sa b e -d e a n te m ã o q u a is sã o e le s. O q u e a a n trop olog ia , n e sse ca so, p õe e m re la çã o sã o p ro-b le m a s d ife re n te s, n ã o u m p roro-b le m a ú n ico (‘n a tu ra l’) e su a s d ife re n te s solu çõe s (‘cu ltu ra is’). A “ a rte d a a n trop olog ia ” (G e ll 1999), p e n so e u , é a a rte d e d e te rm in a r os p rob le m a s p ostos p or ca d a cu ltu ra , n ã o a d e a ch a r solu çõe s p a ra os p rob le m a s p ostos p e la n ossa . E é e xa ta m e n te p or isso q u e o p ostu la d o d a con tin u id a d e d os p roce d im e n tos é u m im p e ra tivo e p iste m ológ ico8.

Dos p roce d im e n tos, re p ito, n ã o d os q u e os le va m a ca b o. Pois ta m p ou co se tra ta d e con d e n a r o jog o clá ssico p or p rod u zir re su lta d os su b je -tiva m e n te fa lse a d os, a o n ã o re con h e ce r a o n a tivo su a con d içã o d e Su je i-to: a o m irá -lo com u m olh a r d ista n cia d o e ca re n te d e e m p a tia , con stru í-lo com o u m ob je to e xótico, d im in u í-lo com o u m p rim itivo n ã o coe vo a o ob se rva d or, n e g a r-lh e o d ire ito h u m a n o à in te rlocu çã o — con h e ce -se a lita n ia . N ã o é n a d a d isso. An te s p e lo con trá rio, p e n so. É ju sto p orq u e o a n trop ólog o tom a o n a tivo m u ito fa cilm e n te p or u m ou tro su je ito q u e e le n ã o con se g u e vê -lo com o u m su je ito ou tro, com o u m a fig u ra d e O u tre m q u e , a n te s d e se r su je ito ou ob je to, é a e xp re ssã o d e u m m u n d o p ossíve l. É p or n ã o a ce ita r a con d içã o d e ‘n ã o-su je ito’ (n o se n tid o d e ou tro q u e o su je ito) d o n a tivo q u e o a n trop ólog o in trod u z, sob a ca p a d e u m a p rocla -m a d a ig u a ld a d e d e fa to co-m e ste , su a sorra te ira va n ta g e -m d e d ire ito. Ele sa b e d e m a is sob re o n a tivo d e sd e a n te s d o in ício d a p a rtid a ; e le p re d e fin e e circu fin scre ve os m u fin d os p ossíve is e xp re ssos p or e sse ou tre m ; a a lte rid a d e d e ou tre m foi ra d ica lm e n te se p a ra d a d e su a ca p a cid a d e d e a lte ra -çã o. O a u tê n tico a n im ista é o a n trop ólog o, e a ob se rva -çã o p a rticip a n te é a ve rd a d e ira (ou se ja , fa lsa ) p a rticip a çã o p rim itiva .

N ã o se tra ta , p orta n to, d e p rop u g n a r u m a form a d e id e a lism o in te rsu b je tivo,

n e m d e fa ze r va le r os d ire itos d a ra zã o com u n ica cion a l ou d o con se n so d ia

-lóg ico. M e u p on to d e a p oio a q u i é o con ce ito a cim a e voca d o, o d e O u tre m

com o e stru tu ra a p riori. Ele e stá p rop osto n o con h e cid o com e n tá rio d e G ille s

(6)

d e scriçã o ficcion a l d e u m a e xp e riê n cia m e ta física — o q u e é u m m u n d o se m

ou tre m ? —, De le u ze p roce d e a u m a in d u çã o d os e fe itos d a p re se n ça d e sse

ou tre m a p a rtir d os e fe itos ca u sa d os p or su a a u sê n cia . O u tre m a p a re ce ,

a ssim , com o a con d içã o d o ca m p o p e rce p tivo: o m u n d o fora d o a lca n ce d a

p e rce p çã o a tu a l te m su a p ossib ilid a d e d e e xistê n cia g a ra n tid a p e la p re se n

ça virtu a l d e u m ou tre m p or q u e m e le é p e rce b id o; o in visíve l p a ra m im su b

-siste com o re a l p or su a visib ilid a d e p a ra ou tre m10. A a u sê n cia d e ou tre m

a ca rre ta a d e sa p a riçã o d a ca te g oria d o p ossíve l; ca in d o e sta , d e sm oron a o

m u n d o, q u e se vê re d u zid o à p u ra su p e rfície d o im e d ia to, e o su je ito se d

is-solve , p a ssa n d o a coin cid ir com a s coisa s-e m -si (a o m e sm o te m p o e m q u e

e sta s se d e sd ob ra m e m d u p los fa n ta sm á ticos). O u tre m , p oré m , n ã o é n in

-g u é m , n e m su je ito n e m ob je to, m a s u m a e stru tu ra ou re la çã o, a re la çã o a b so-lu ta q u e d e te rm in a a ocu p a çã o d a s p osiçõe s re la tiva s d e su je ito e d e ob je to

p or p e rson a g e n s con cre tos, b e m com o su a a lte rn â n cia : ou tre m d e sig n a a

m im p a ra o ou tro Eu e o ou tro e u p a ra m im . O u tre m n ã o é u m e le m e n to d o

ca m p o p e rce p tivo; é o p rin cíp io q u e o con stitu i, a e le e a se u s con te ú d os.

O u tre m n ã o é , p orta n to, u m p on to d e vista p a rticu la r, re la tivo a o su je ito (o

‘p on to d e vista d o ou tro’ e m re la çã o a o m e u p on to d e vista ou vice -ve rsa ),

m a s a p ossib ilid a d e d e q u e h a ja p on to d e vista — ou se ja , é o con ce ito d e

p on to d e vista . Ele é o p on to d e vista q u e p e rm ite q u e o Eu e o O u tro a ce

-d a m a u m p on to -d e vista11.

De le u ze p rolon g a a q u i critica m e n te a fa m osa a n á lise d e Sa rtre sob re o

‘olh a r’, a firm a n d o a e xistê n cia d e u m a e stru tu ra a n te rior à re cip rocid a d e d e

p e rsp e ctiva s d o re g ard sa rtria n o. O q u e é e ssa e stru tu ra ? Ela é a e stru tu ra

d o p ossíve l: O u tre m é a e x p re ssão d e u m m u n d o p ossív e l. Um p ossíve l q u e

e xiste re a lm e n te , m a s q u e n ã o e xiste a tu a lm e n te fora d e su a e xp re ssã o e m

ou tre m . O p ossíve l e xp rim id o e stá e n volvid o ou im p lica d o n o e xp rim e n te

(q u e lh e p e rm a n e ce e n tre ta n to h e te rog ê n e o), e se a ch a e fe tu a d o n a lin g u a

-g e m ou n o si-g n o, q u e é a re a lid a d e d o p ossíve l e n q u a n to ta l — o se n tid o. O

Eu su rg e e n tã o com o e xp lica çã o d e sse im p lica d o, a tu a liza çã o d e sse p

ossí-ve l, a o tom a r o lu g a r q u e lh e ca b e (o d e ‘e u ’) n o jog o d e lin g u a g e m . O su je

ito é a ssim e fe iito, n ã o ca u sa ; e le é o re su lta d o d a in te rioriza çã o d e u m a re la

-çã o q u e lh e é e xte rior — ou a n te s, d e u m a re la -çã o à q u a l e le é in te rior: a s

re la çõe s sã o orig in a ria m e n te e xte riore s a os te rm os, p orq u e os te rm os sã o

in te riore s à s re la çõe s. “ H á vá rios su je itos p orq u e h á ou tre m , e n ã o o con trá

-rio” (De le u ze e G u a tta ri 1991:22).

(7)

q u e o n a tivo ob rig a o a n trop ólog o a p ôr e m d ú vid a . Ta l é a ‘cog ita çã o’ e sp e cifica m e n te a n trop ológ ica ; só e la p e rm ite à a n trop olog ia a ssu m ir a p re se n ça virtu a l d e O u tre m q u e é su a con d içã o — a con d içã o d e p a ssa -g e m d e u m m u n d o p ossíve l a ou tro —, e q u e d e te rm in a a s p osiçõe s d e ri-va d a s e vicá ria s d e su je ito e d e ob je to.

O físico in te rrog a o n e u trin o, e n ã o p od e d iscord a r d e le ; o a n trop ólog o re sp on d e p e lo n a tivo, q u e e n tã o só p od e (d e d ire ito e , fre q ü e n te -m e n te , d e fa to) con cord a r co-m e le . O físico p re cisa se a ssocia r a o n e u tri-n o, p e tri-n sa r com se u re ca lcitra tri-n te ob je to; o a tri-n trop ólog o a ssocia o tri-n a tivo a si m e sm o, p e n sa n d o q u e se u ob je to fa z a s m e sm a s a ssocia çõe s q u e e le — isto é , q u e o n a tivo p e n sa com o e le . O p rob le m a é q u e o n a tivo ce rta m e n -te p e n sa, com o o a n trop ólog o; m a s, m u ito p rova ve lm e n -te , e le n ã o p e n sa com o o a n trop ólog o. O n a tivo é , se m d ú vid a , u m ob je to e sp e cia l, u m ob je -to p e n sa n te ou u m su je i-to. M a s se e le é ob je tiva m e n te u m su je i-to, e n tã o o q u e e le p e n sa é u m p e n sa m e n to ob je tivo, a e xp re ssã o d e u m m u n d o p ossíve l, a o m e sm o títu lo q u e o q u e p e n sa o a n trop ólog o. Por isso, a d ife re n ça m a lin ow sk ia n a e n tre o q u e o n a tivo p e n sa (ou fa z) e o q u e e le p e n -sa q u e p e n -sa (ou q u e fa z) é u m a d ife re n ça e sp ú ria . É ju sta m e n te p or a li, p or e ssa b ifu rcação d a n atu re z a d o ou tro, q u e p re te n d e e n tra r o a n trop ó-log o (q u e fa ria o q u e p e n sa )12. A b oa d ife re n ça , ou d ife re n ça re a l, é e n tre

o q u e p e n sa (ou fa z) o n a tivo e o q u e o a n trop ólog o p e n sa q u e (e fa z com o q u e ) o n a tivo p e n sa , e sã o e sse s d ois p e n sa m e n tos (ou fa ze re s) q u e se con fron ta m . Ta l con fron to n ã o p re cisa se re su m ir a u m a m e sm a e q u ivoci-d a ivoci-d e ivoci-d e p a rte a p a rte — o e q u ívoco n u n ca é o m e sm o, a s p a rte s n ã o o se n d o; e d e re sto, q u e m d e fin iria a a d e q u a d a u n ivocid a d e ? —, m a s ta m -p ou co -p re cisa se con te n ta r e m se r u m d iá log o e d ifica n te . O con fron to d e ve p od e r p rod u zir a m ú tu a im p lica çã o, a com u m a lte ra çã o d os d iscu r-sos e m jog o, p ois n ã o se tra ta d e ch e g a r a o con se n so, m a s a o con ce ito.

Evoq u e i a d istin çã o criticista e n tre o q u id facti e o q u id ju ris. Ela m e p a re ce u ú til p orq u e o p rim e iro p rob le m a a re solve r con siste n e ssa a va lia -çã o d a p re te n sã o a o con h e cim e n to im p lícita n o d iscu rso d o a n trop ólog o. Ta l p rob le m a n ã o é cog n itivo, ou se ja , p sicológ ico; n ã o con ce rn e à p ossi-b ilid a d e e m p írica d o con h e cim e n to d e u m a ou tra cu ltu ra13. Ele é e p iste

(8)

No limit e

N os ú ltim os te m p os, os a n trop ólog os te m os m ostra d o g ra n d e in q u ie ta çã o a re sp e ito d a id e n tid a d e e d e stin o d e n ossa d iscip lin a : o q u e e la é , se e la a in d a é , o q u e e la d e ve se r, se e la te m o d ire ito d e se r, q u a l é se u ob je to p róp rio, se u m é tod o, su a m issã o, e p or a í a fora (ve r, p or e xe m p lo, M oore 1999). Fiq u e m os com a q u e stã o d o ob je to, q u e im p lica a s d e m a is. Se ria e le a cu ltu ra , com o n a tra d içã o d iscip lin a r a m e rica n a ? A org a n iza çã o socia l, com o n a tra d içã o b ritâ n ica ? A n a tu re za h u m a n a , com o n a tra d içã o fra n ce sa ? Pe n so q u e a re sp osta a d e q u a d a é : tod a s a s re sp osta s a n te rio-re s, e n e n h u m a d e la s. C u ltu ra , socie d a d e e n a tu rio-re za d ã o n a m e sm a ; ta is n oçõe s n ã o d e sig n a m o ob je to d a a n trop olog ia , se u assu n to, m a s sim se u p rob le m a , a q u ilo q u e e la ju sta m e n te n ã o p od e assu m ir (La tou r 1991:109-110, 130), p orq u a n to h á u m a ‘tra d içã o’ a m a is a le va r e m con ta , a q u e la q u e con ta m a is: a tra d içã o d o n a tivo.

Ad m ita m os, p ois se h á d e com e ça r p or a lg u m lu g a r, q u e a m a té ria p rivile g ia d a d a a n trop olog ia se ja a socia lid a d e h u m a n a , isto é , o q u e va -m os ch a -m a n d o d e ‘re la çõe s socia is’; e a ce ite -m os a p on d e ra çã o d e q u e a ‘cu ltu ra ’, p or e xe m p lo, n ã o te m e xistê n cia in d e p e n d e n te d e su a a tu a liza -çã o n e ssa s re la çõe s14. Re sta , p on to im p orta n te , q u e ta is re la çõe s va ria m

n o e sp a ço e n o te m p o; e se a cu ltu ra n ã o e xiste fora d e su a e xp re ssã o re la cion a l, e n tã o a va ria çã o re la cion a l ta m b é m é va ria çã o cu ltu ra l, ou , d ito d e ou tro m od o, ‘cu ltu ra ’ é o n om e q u e a a n trop olog ia d á à va ria çã o re la cion a l.

(9)

d ife re n ça s — m a ior q u e a s cu ltu ra s, n ã o m e n or q u e e la s —, ou a lg o com o a in te g ra l p a rcia l d a s d ife re n te s con fig u ra çõe s re la cion a is q u e ch a m a m os ‘cu ltu ra s’15. O ‘m ín im o’ é , n e sse ca so, a m u ltip licid a d e com u m a o h u m a

-n o — h u m a-n itas m u ltip le x . A d ita -n a tu re za d e ixa ria a ssim d e se r u m a su b stâ n cia a u to-se m e lh a n te situ a d a e m a lg u m lu g a r n a tu ra l p rivile g ia d o (o cé re b ro, p or e xe m p lo), e a ssu m iria e la p róp ria o e sta tu to d e u m a re la -çã o d ife re n cia l, d isp osta e n tre os te rm os q u e e la ‘n a tu ra liza ’: torn a r-se -ia o con ju n to d e tra n sform a çõe s re q u e rid a s p a ra se d e scre ve r a s va ria çõe s e n tre a s d ife re n te s con fig u ra çõe s re la cion a is con h e cid a s. O u , p a ra u sa r-m os a in d a u r-m a ou tra ir-m a g e r-m , e la se torn a ria a q u i u r-m p u ro lir-m ite — r-m a s n ã o n o se n tid o g e om é trico d e lim ita çã o, isto é , d e p e rím e tro ou te rm o q u e con stra n g e e d e fin e u m a form a su b sta n cia l (re cord e se a id é ia , tã o p re -se n te n o voca b u lá rio a n trop ológ ico, d a s e n ce in te s m e n tale s), e sim n o se n tid o m a te m á tico d e p on to p a ra o q u a l te n d e u m a sé rie ou u m a re la -çã o: lim ite -te n são, n ã o lim ite -con torn o16. A n a tu re za h u m a n a , n e sse ca so,

se ria u m a op e ra çã o te órica d e ‘p a ssa g e m a o lim ite ’, q u e in d ica a q u ilo d e q u e os se re s h u m a n os sã o virtu a lm e n te ca p a ze s, e n ã o u m a lim ita çã o q u e os d e te rm in a a tu a lm e n te a n ã o se r ou tra coisa17. Se a cu ltu ra é u m siste

-m a d e d ife re n ça s, co-m o g osta va -m d e d ize r os e stru tu ra lista s, e n tã o a n a tu re za ta m b é m o é : d ife re n ça s d e d ife re n ça s.

O m otivo (ca ra cte ristica m e n te k a n tia n o, e scu sa d o d ize r) d o lim ite -con torn o,

tã o p re se n te n o im a g in á rio d a d iscip lin a , é p a rticu la rm e n te con sp ícu o q u a n

-d o o h orizon te a ssim -d e lim ita -d o con siste n a ch a m a -d a n atu re z a h u m an a,

com o é o ca so d a s orie n ta çõe s n a tu ra l-u n ive rsa lista s ta is a sociob iolog ia ou

a p sicolog ia e volu cion á ria , e , e m b oa m e d id a , o p róp rio e stru tu ra lism o. M a s

e le e stá p re se n te ta m b é m n os d iscu rsos sob re a s cu ltu ras h u m an as, on d e d á

te ste m u n h o d a s lim ita çõe s — se p osso m e e xp rim ir a ssim — d a p ostu ra cu

l-tu ra l-re la tivista clá ssica . Re cord e -se o te m a con sa g ra d o p e la fra se d e Eva n

s-Pritch a rd a re sp e ito d a b ru xa ria za n d e — “ os Aza n d e n ã o p od e m p e n sa r q u e

se u p e n sa m e n to e stá e rra d o” —; ou a im a g e m a n trop ológ ica corre n te d a cu

l-tu ra com o p róte se ocu la r (ou crivo cla ssifica tório) q u e só p e rm ite ‘ve r a s

coisa s’ d e u m ce rto m od o (ou q u e ocu lta ce rtos p e d a ços d a re a lid a d e ); ou

a in d a , p a ra cita rm os u m e xe m p lo m a is re ce n te , a m e tá fora d o “b ocal” e m

q u e ca d a é p oca h istórica e sta ria e n ce rra d a (Ve yn e 1983)18. Se ja com re sp e

i-to à n a tu re za , se ja à s cu ltu ra s, o m otivo m e p a re ce ig u a lm e n te ‘lim ita d o’. Se

q u isé sse m os se r p e rve rsos, d iría m os q u e su a n e u tra lid a d e e stra té g ica , su a

co-p re se n ça n os ca m p os in im ig os d o u n ive rsa lism o e d o re la tivism o, é u m a

p rova e loq ü e n te d e q u e a n oçã o d e e n ce in te m e n tale é u m a d a s e n ce in te s

(10)

m od o, e la m ostra b e m q u e a su p osta op osiçã o e n tre u n ive rsa lism o n a tu ra

lis-ta e re la tivism o cu ltu ra lislis-ta é , n o m ín im o, m u ito re la tiva (e p e rfe ilis-ta m e n te

cu ltu ra l), p ois se re su m e a u m a q u e stã o d e e scolh e r a s d im e n sõe s d o b oca l,

o ta m a n h o d o cá rce re e m q u e ja ze m os p rision e iros: a ce la in clu iria ca tolica

-m e n te tod a a e sp é cie h u -m a n a , ou se ria fe ita sob -m e d id a p a ra ca d a cu ltu ra ?

H a ve ria ta lve z u m a só g ra n d e p e n ite n ciá ria ‘n a tu ra l’, com d ife re n te s a la s

‘cu l tu ra is’, u m a s com ce la s ta lve z u m p ou co m a is e sp a çosa s q u e ou tra s?19

O ob je to d a a n trop olog ia , a ssim , se ria a va ria çã o d a s re la çõe s socia is. N ã o d a s re la çõe s socia is tom a d a s com o u m a p rovín cia on tológ ica d istin ta , m a s d e tod os os fe n ôm e n os p ossíve is e n q u a n to re la çõe s socia is, e n -q u a n to im p lica m re la çõe s socia is: d e tod a s a s re la çõe s com o socia is. M a s isso d e u m a p e rsp e ctiva q u e n ã o se ja tota lm e n te d om in a d a p e la d ou trin a ocid e n ta l d a s re la çõe s socia is; u m a p e rsp e ctiva , p orta n to, p ron ta a a d m i-tir q u e o tra ta m e n to d e tod a s a s re la çõe s com o socia is p od e le va r a u m a re con ce itu a çã o ra d ica l d o q u e se ja ‘o socia l’. Dig a m os e n tã o q u e a a n tro-p olog ia se d istin g a d os ou tros d iscu rsos sob re a socia lid a d e h u m a n a n ã o p or d isp or d e u m a d ou trin a p a rticu la rm e n te sólid a sob re a n a tu re za d a s re la çõe s socia is, m a s, a o con trá rio, p or te r a p e n a s u m a v ag a id é ia in icial d o q u e se ja u m a re la çã o. Pois se u p rob le m a ca ra cte rístico con siste m e n os e m d e te rm in a r q u a is sã o a s re la çõe s socia is q u e con stitu e m se u ob je to, e m u ito m a is e m se p e rg u n ta r o q u e se u ob je to con stitu i com o re la çã o socia l, o q u e é u m a re la çã o socia l n os te rm os d e se u ob je to, ou m e lh or, n os te rm os form u lá ve is p e la re la çã o (socia l, n a tu ra lm e n te , e con stitu tiva ) e n tre o ‘a n trop ólog o’ e o ‘n a tivo’.

Da concepção ao conceit o

(11)

n a tivo d e p on to d e vista n ã o coin cid e com o con ce ito d e p on to d e vista d o n a tivo; e p orq u e m e u p on to d e vista n ã o p od e se r o d o n a tivo, m a s o d e m in h a re la çã o com o p on to d e vista n a tivo. O q u e e n volve u m a d im e n -sã o e sse n cia l d e ficção, p ois se tra ta d e p ôr e m re sson â n cia in te rn a d ois p on tos d e vista com p le ta m e n te h e te rog ê n e os.

O q u e fiz e m m e u a rtig o sob re o p e rsp e ctivism o foi u m a e xp e riê n cia d e p e n sa m e n to e u m e xe rcício d e ficçã o a n trop ológ ica . A e xp re ssã o ‘e xp e riê n cia d e p e n sa m e n to’ n ã o te m a q u i o se n tid o u su a l d e e n tra d a im a g in á ria n a e xp e riê n cia p e lo (p róp rio) p e n sa m e n to, m a s o d e e n tra d a n o (ou tro) p e n sa m e n to p e la e xp e riê n cia re a l: n ã o se tra ta d e im a g in a r u m a e xp e riê n cia , m a s d e e xp e rim e n ta r u m a im a g in a çã o20. A e xp e riê n

-cia , n o ca so, é a m in h a p róp ria , com o e tn óg ra fo e com o le itor d a b ib lio-g ra fia e tn olólio-g ica sob re a Am a zôn ia in d ílio-g e n a , e o e xp e rim e n to, u m a fic-çã o con trola d a p or e ssa e xp e riê n cia . O u se ja , a ficfic-çã o é a n trop ológ ica , m a s su a a n trop olog ia n ã o é fictícia .

Em q u e con siste ta l ficçã o? Ela con siste e m tom a r a s id é ias in d íg e n a s com o con ce itos, e e m e xtra ir d e ssa d e cisã o su a s con se q ü ê n cia s: d e -te rm in a r o solo p ré -con ce itu a l ou o p la n o d e im a n ê n cia q u e ta is con ce itos p re ssu p õe m , os p e rson a g e n s con ce itu a is q u e e le s a cion a m , e a m a té -ria d o re a l q u e e le s p õe m . Tra ta r e ssa s id é ia s com o con ce itos n ã o sig n ifi-ca , n ote -se b e m , q u e e la s se ja m ob je tiva m e n te d e te rm in a d a s com o ou tra coisa , ou tro tip o d e ob je to a tu a l. Pois tra tá -la s com o cog n içõe s in d ivid u a is, re p re se n ta çõe s cole tiva s, a titu d e s p rop osicion a is, cre n ça s cosm ológ ica s, e sq u e m a s in con scie n te s, d isp osiçõe s e n corp ora d a s e p or a í a fora — e sta s se ria m ou tra s ta n ta s ficçõe s te órica s q u e a p e n a s e scolh i n ã o a colh e r.

(12)

m a s d e re a liza r u m a e x p e rim e n tação com e le , e p orta n to com o n osso. N o in g lê s d ificilm e n te tra d u zíve l d e Roy Wa g n e r: “ e ve ry u n d e rsta n d in g of a n oth e r cu ltu re is a n e xp e rim e n t w ith on e ’s ow n ” (1981:12).

Tom a r a s id é ia s in d íg e n a s com o con ce itos é a firm a r u m a in te n çã o a n tip sicolog ista , p ois o q u e se visa é u m a im a g e m d e ju re d o p e n sa m e n -to, irre d u tíve l à cog n içã o e m p írica , ou à a n á lise e m p írica d a cog n içã o fe i-ta e m te rm os p sicológ icos. A ju risd içã o d o con ce ito é e xtra te rritoria l à s fa cu ld a d e s cog n itiva s e a os e sta d os in te rn os d os su je itos: os con ce itos sã o ob je tos ou e ve n tos in te le ctu a is, n ã o e sta d os ou a trib u tos m e n ta is. Ele s ce rta m e n te ‘p a ssa m p e la ca b e ça ’ (ou , com o se d iria e m in g lê s, ‘cru za m a m e n te ’): m a s e le s n ã o fica m lá , e sob re tu d o, n ã o e stã o lá p ron tos — e le s sã o in ve n ta d os. De ixe m os a s coisa s cla ra s. N ã o a ch o q u e os ín d ios a m e ri-ca n os ‘cog n ize m ’ d ife re n te m e n te d e n ós, isto é , q u e se u s p roce ssos ou ca te g oria s ‘m e n ta is’ se ja m d ife re n te s d os d e q u a isq u e r ou tros h u m a n os. N ã o é o ca so d e im a g in a r os ín d ios com o d ota d os d e u m a n e u rofisiolog ia p e cu lia r, q u e p roce ssa ria d ive rsa m e n te o d ive rso. N o q u e m e con ce rn e , p e n so q u e e le s p e n sa m e xa ta m e n te ‘com o n ós’; m a s p e n so ta m b é m q u e o q u e e le s p e n sa m , isto é , os con ce itos q u e e le s se d ã o, a s ‘d e scriçõe s’ q u e e le s p rod u ze m , sã o m u ito d ife re n te s d os n ossos — e p orta n to q u e o m u n d o d e scrito p or e sse s con ce itos é m u ito d ive rso d o n osso21. N o q u e

con ce rn e a os ín d ios, p e n so — se m in h a s a n á lise s d o p e rsp e ctivism o e stã o corre ta s — q u e e le s p e n sa m q u e tod os os h u m a n os, e a lé m d e ste s, m u i-tos ou tros su je ii-tos n ã o-h u m a n os, p e n sa m e xa ta m e n te ‘com o e le s’, m a s q u e isso, lon g e d e p rod u zir (ou re su lta r d e ) u m a con ve rg ê n cia re fe re n cia l u n ive rsa l, é e xa ta m e n te a raz ão d a s d ive rg ê n cia s d e p e rsp e ctiva .

(13)

e le s p re ssu p õe m . O s con ce itos, ou se ja , a s id é ia s e os p rob le m a s d a ‘ra -zã o’ in d íg e n a , n ã o su a s ca te g oria s d o ‘e n te n d im e n to’.

C om o te rá fica d o cla ro, a n oçã o d e con ce ito te m a q u i u m se n tid o b e m d e te rm in a d o. Tom a r a s id é ia s in d íg e n a s com o con ce itos sig n ifica tom á -la s com o d ota d a s d e u m a sig n ifica çã o p rop ria m e n te filosófica , ou com o p ote n cia lm e n te ca p a ze s d e u m u so filosófico.

De cisã o irre sp on sá ve l, d ir-se -á , ta n to m a is q u e n ã o sã o só os ín d ios q u e n ã o sã o filósofos, m a s, su b lin h e -se com força , ta m p ou co o p re se n te a u tor. C om o a p lica r, p or e xe m p lo, a n oçã o d e con ce ito a u m p e n sa m e n to q u e , a p a re n te m e n te , n u n ca a ch ou n e ce ssá rio se d e b ru ça r sob re si m e sm o, e q u e re sm e te ria a n te s a o e sq u e sm a tissm o flu e n te e va rie g a d o d o sísm -b olo, d a fig u ra e d a re p re se n ta çã o cole tiva q u e à a rq u ite tu ra rig orosa d a ra zã o con ce itu a l? N ã o e xiste u m b e m con h e cid o a b ism o h istórico e p sico-lóg ico, u m a “ ru p tu ra d e cisiva ” e n tre a im a g in a çã o m ítica p a n -h u m a n a e o u n ive rso d a ra cion a lid a d e h e lê n ico-ocid e n ta l (Ve rn a n t 1996:229)? En tre a b ricola g e m d o sig n o e a e n g e n h a ria d o con ce ito (Lé vi-Stra u ss 1962)? En tre a tra n sce n d ê n cia p a ra d ig m á tica d a Fig u ra e a im a n ê n cia sin ta g m á tica d o C on ce ito (De le u ze e G u a tta ri 1991)? En tre u m a e con om ia in te -le ctu a l d e tip o im a g ístico-m ostra tiva e ou tra d e tip o d ou trin a l-d e m on s-tra tiva (Wh ite h ou se 2000)? En fim , q u a n to a tu d o isso, q u e é ca u d a tá rio m a is ou m e n os d ire to d e H e g e l, te n h o a lg u m a s d ú vid a s. E a n te s d isso, te n h o m e u s m otivos p a ra fa la r e m con ce ito. Vou -m e a te r a q u i a p e n a s a o p rim e iro d e le s, q u e d e corre d a d e cisã o d e tom a r a s id é ia s n a tiva s com o situ a d a s n o m e sm o p la n o q u e a s id é ia s a n trop ológ ica s.

A e xp e riê n cia p rop osta a q u i, d izia e u a cim a , com e ça p or a firm a r a e q u iva lê n cia d e d ire ito e n tre os d iscu rsos d o a n trop ólog o e d o n a tivo, b e m com o a con d içã o m u tu a m e n te con stitu in te d e sse s d iscu rsos, q u e só a ce d e m com o tais à e xistê n cia a o e n tra re m e m re la çã o d e con h e cim e n to. O s con ce itos a n trop ológ icos a tu a liza m ta l re la çã o, e sã o p or isso com p le -ta m e n te re la cion a is, -ta n to e m su a e xp re ssã o com o e m se u con te ú d o. Ele s n ã o sã o, n e m re fle xos ve ríd icos d a cu ltu ra d o n a tivo (o son h o p ositivista ), n e m p roje çõe s ilu sória s d a cu ltu ra d o a n trop ólog o (o p e sa d e lo con stru -cion ista ). O q u e e le s re fle te m é u m a ce rta re la çã o d e in te lig ib ilid a d e e n tre a s d u a s cu ltu ra s, e o q u e e le s p roje ta m sã o a s d u as cu ltu ra s com o se u s p re ssu p ostos im a g in a d os. Ele s op e ra m , com isso, u m d u p lo d e se n ra iza -m e n to: sã o co-m o ve tore s se -m p re a a p on ta r p a ra o ou tro la d o, in te rfa ce s tra n scon te xtu a is cu ja fu n çã o é re p re se n ta r, n o se n tid o d ip lom á tico d o te r-m o, o ou tro n o se io d o r-m e sr-m o, lá cor-m o cá .

(14)

costu m a m vir m a rca d a s n a ‘a ssin a tu ra ’ ca ra cte rística d e sse s con ce itos p or u m a p a la vra e stra n h a : m a n a , tote m , k u la , p otla tch , ta b u , g u m sa / g u m -la o… O u tros con ce itos, n ã o m e n os a u tê n ticos, p orta m u m a a ssin a tu ra e ti-m ológ ica q u e e voca a n te s a s a n a log ia s e n tre a tra d içã o cu ltu ra l d e on d e e m e rg iu a d iscip lin a e a s tra d içõe s q u e sã o se u ob je to: d om , sa crifício, p a re n te sco, p e ssoa … O u tros, e n fim , ig u a lm e n te le g ítim os, sã o in ve n çõe s voca b u la re s q u e p rocu ra m g e n e ra liza r d isp ositivos con ce itu a is d os p ovos e stu d a d os — a n im ism o, op osiçã o se g m e n ta r, troca re strita , cism og ê n e -se … —, ou , in ve rsa m e n te , e m a is p rob le m a tica m e n te , d e svia m p a ra o in te rior d e u m a e con om ia te órica e sp e cífica ce rta s n oçõe s d ifu sa s d e n osa tra d içã o — p roib içã o d o in ce sto, g ê n e ro, sím b olo, cu ltu ra … —, b u s-ca n d o u n ive rsa lizá -la s22.

Ve m os e n tã o q u e n u m e rosos con ce itos, p rob le m a s, e n tid a d e s e a g e n te s p rop ostos p e la s te oria s a n trop ológ ica s tê m su a orig e m n o e sfor-ço im a g in a tivo d a s socie d a d e s m e sm a s q u e e la s p re te n d e m e xp lica r. N ã o e sta ria a í a orig in a lid a d e d a a n trop olog ia , n e ssa sin e rg ia e n tre a s con -ce p çõe s e p rá tica s p rove n ie n te s d os m u n d os d o ‘su je ito’ e d o ‘ob je to’? Re con h e ce r isso a ju d a ria , e n tre ou tra s coisa s, a m itig a r n osso com p le xo d e in fe riorid a d e d ia n te d a s “ ciê n cia s n a tu ra is” . C om o ob se rva La tou r:

“ A d e scriçã o d o k u la e q u ip a ra se à d e scriçã o d os b u ra cos n e g ros. O s com p le

-xos siste m a s d e a lia n ça sã o tã o im a g in a tivos com o os com p le -xos ce n á rios e

vo-lu tivos p rop ostos p a ra os g e n e s e g oísta s. C om p re e n d e r a te olog ia d os a b

oríg in e s a u stra lia n os é tã o im p orta n te q u a n to ca rtooríg ra fa r a s oríg ra n d e s fa lh a s su b

-m a rin a s. O siste -m a d e p osse d a te rra n a s Trob ria n d é u -m ob je tivo cie n tífico

tã o in te re ssa n te com o a son d a g e m d o g e lo d a s ca lota s p ola re s. Se a q u e stã o é

sa b e r o q u e im p orta n a d e fin içã o d e u m a ciê n cia — a ca p a cid a d e d e in ova çã o

n o q u e d iz re sp e ito à s a g ê n cia s q u e p ovoa m n osso m u n d o —, e n tã o a a n trop

o-log ia e sta ria b e m p róxim a d o top o d a h ie ra rq u ia d iscip lin a r […]” (1996a :5)23.

(15)

-d a é a e stra té g ia a q u i a -d vog a -d a . C u i-d o q u e a a n trop olog ia se m p re a n -d ou d e m a sia d o ob ce ca d a com a ‘C iê n cia ’, n ã o só e m re la çã o a si m e sm a — se e la é ou n ã o, p od e ou n ã o, d e ve ou n ã o se r u m a ciê n cia —, com o sob re -tu d o, e e ste é o re a l p rob le m a , e m re la çã o à s con ce p çõe s d os p ovos q u e e stu d a : se ja p a ra d e sq u a lificá -la s com o e rro, son h o, ilu sã o, e e m se g u id a e xp lica r cie n tifica m e n te com o e p or q u e os ‘ou tros’ n ã o con se g u e m (se ) e xp lica r cie n tifica m e n te ; se ja p a ra p rom ovê -la s com o m a is ou m e n os h om og ê n e a s à ciê n cia , fru tos d e u m a m e sm a von ta d e d e sa b e r con su b s-ta n cia l à h u m a n id a d e . Assim a sim ila rid a d e d e H orton , a ssim a ciê n cia d o con cre to d e Lé vi-Stra u ss (La tou r 1991:133-134). A im a g e m d a ciê n cia , e ssa e sp é cie d e p a d rã oou ro d o p e n sa m e n to, n ã o é p oré m o ú n ico te rre -n o, -n e m -n e ce ssa ria m e -n te o m e lh or, e m q u e p od e m os -n os re la cio-n a r com a a tivid a d e in te le ctu a l d os p ovos e stra n g e iros à tra d içã o ocid e n ta l.

Im a g in e -se u m a ou tra a n a log ia q u e a d e La tou r, ou u m a ou tra sim ila rid a d e q u e a d e H orton . Um a a n a log ia on d e , e m lu g a r d e tom a r a s con -ce p çõe s in d íg e n a s com o e n tid a d e s se m e lh a n te s a os b u ra cos n e g ros ou à s fa lh a s te ctôn ica s, tom e m o-la s com o a lg o d e m e sm a ord e m q u e o cog ito ou a m ôn a d a . Diría m os e n tã o, p a ra fra se a n d o a cita çã o a n te rior, q u e o con ce ito m e la n é sio d a p e ssoa com o “ d ivíd u o” (Stra th e rn 1988) é tã o im a -g in a tivo com o o in d ivid u a lism o p osse ssivo d e Lock e ; q u e com p re e n d e r a “ filosofia d a ch e fia a m e rín d ia ” (C la stre s 1974) é tã o im p orta n te q u a n to com e n ta r a d ou trin a h e g e lia n a d o Esta d o; q u e a cosm og on ia m a ori se e q u ip a ra a os p a ra d oxos e le á ticos e à s a n tin om ia s k a n tia n a s (Sch re m p p 1992); q u e o p e rsp e ctivism o a m a zôn ico é u m ob je tivo filosófico tã o in te -re ssa n te com o com p -re e n d e r o siste m a d e Le ib n iz… E se a q u e stã o é sa b e r o q u e im p orta n a a va lia çã o d e u m a filosofia — su a ca p a cid a d e d e cria r n ovos con ce itos —, e n tã o a a n trop olog ia , se m p re te n d e r su b stitu ir a filo-sofia , n ã o d e ixa d e se r u m p od e roso in stru m e n to filosófico, ca p a z d e a m p lia r u m p ou co os h orizon te s tã o e tn ocê n tricos d e n ossa filosofia , e d e n os livra r, d e p a ssa g e m , d a a n trop olog ia d ita ‘filosófica ’. N a d e fin içã o vig orosa d e Tim In g old (1992:696), q u e é m e lh or d e ixa r n o orig in a l: “ a n th rop olog y is p h ilosop h y w ith th e p e op le in ” . Por ‘p e op le ’, In g old e n te n d e a q u i os “ord in ary p e op le ”, a s p e ssoa s com u n s (In g old 1992:696); m a s e le e stá ta m b é m jog a n d o com o sig n ifica d o d e ‘p e op le ’ com o ‘p ovo’, e m a is a in d a , com o ‘p ovos’. Um a filosofia com ou tros p ovos d e n tro, e n tã o: a p ossib ilid a d e d e u m a a tivid a d e filosófica q u e m a n te n h a u m a re la çã o com a n ã o-filosofia — a vid a — d e ou tros p ovos d o p la n e ta , a lé m d e com a n ossa p róp ria24. N ã o só a s p e ssoa s com u n s, e n tã o, m a s sob re tu d o os

(16)

-d a p e la a n trop olog ia fa z u m a filosofia ‘im a g in á ria ’ com se lva g e n s re a is. Re al toad s in im ag in ary g ard e n s, com o d isse a p oe ta M a ria n n e M oore .

N ote -se , n a p a rá fra se q u e fize m os m a is a cim a , o d e sloca m e n to q u e im p orta . Ag ora n ã o se tra ta ria m a is, ou a p e n a s, d a d e scriçã o an trop ológ i-ca d o k u la (e n q u a n to form a m e la n é sia d e socia lid a d e ), m a s d o k u la e n q u a n to d e scriçã o m e lan é sia (d a ‘socia lid a d e ’ com o form a a n trop ológ ica ); ou a in d a , se ria p re ciso con tin u a r a com p re e n d e r a “ te olog ia a u stra lia n a ” , m a s a g ora com o con stitu in d o e la p róp ria u m d isp ositivo d e com -p re e n são; d o m e sm o m od o, os com -p le xos siste m a s d e a lia n ça ou d e -p os-se d a te rra d e ve ria m os-se r vistos com o im a g in a çõe s sociológ ica s in d íg e n as. É cla ro q u e se rá se m p re n e ce ssá rio d e scre ve r o k u la com o u m a d e scrçã o, com p re e n d e r a re lig iã o a b oríg in e com o u m com p re e n d e r, e im a g i-n a r a im a g ii-n a çã o ii-n d íg e i-n a : é p re ciso sa b e r tra i-n sform a r a s coi-n ce p çõe s e m con ce itos, e xtra í-los d e la s e d e volvê -los a e la s. E u m con ce ito é u m a re la çã o com p le xa e n tre con ce p çõe s, u m a g e n cia m e n to d e in tu içõe s p ré -con ce itu a is; n o ca so d a a n trop olog ia , a s -con ce p çõe s e m re la çã o in clu e m , a n te s d e m a is n a d a , a s d o a n trop ólog o e a s d o n a tivo — re la çã o d e re la -çõe s. O s con ce itos n a tivos sã o os con ce itos d o a n trop ólog o. Por h ip óte se .

Não explicar, nem int erpret ar: mult iplicar, e experiment ar

Roy Wa g n e r, d e sd e se u Th e In v e n tion of Cu ltu re , foi u m d os p rim e iros a n trop ólog os q u e sou b e ra d ica liza r a con sta ta çã o d e u m a e q u iva lê n cia e n tre o a n trop ólog o e o n a tivo d e corre n te d e su a com u m con d içã o cu ltu ra l. Do fa to d e q u e a a p roxim a çã o a u m a ou tra cu ltu ra só p od e se fa ze r n os te r-m os d a q u e la d o a n trop ólog o, Wa g n e r con clu i q u e o con h e cir-m e n to a n tro-p ológ ico se d e fin e tro-p or su a “ob je tiv id ad e re lativ a” (1981:2). Isto n ã o sig n ifica u m a ob je tivid a d e d e ficie n te , isto é , su b je tiva ou p a rcia l, m a s u m a ob je -tivid a d e in trin se ca m e n te re lacion al, com o se d e p re e n d e d o q u e se se g u e :

“ A id é ia d e cu ltu ra […] coloca o p e sq u isa d or e m p osiçã o d e ig u a ld a d e com

a q u e le q u e e le p e sq u isa : a m b os ‘p e rte n ce m a u m a cu ltu ra ’. C om o ca d a cu

l-tu ra p od e se r vista com o u m a m a n ife sta çã o e sp e cífica […] d o fe n ôm e n o

h u m a n o, e com o ja m a is se d e scob riu u m m é tod o in fa líve l d e ‘g ra d u a r’ d ife

-re n te s cu ltu ra s e a rra n já -la s e m tip os n a tu ra is, a ssu m im os q u e ca d a cu ltu ra ,

com o ta l, é e q u iva le n te a q u a lq u e r ou tra . Ta l p ostu la d o ch a m a -se ‘re la

tivid a tivid e cu ltu ra l’. […] A com b in a çã o tivid e ssa s tivid u a s im p lica çõe s tivid a itivid é ia tivid e cu ltu

-ra , isto é , o fa to d e q u e os a n trop ólog os p e rte n ce m os a u m a cu ltu -ra (ob je

(17)

e q u iva le m (re la tivid a d e cu ltu ra l), le va -n os a u m a p rop osiçã o g e ra l a re sp e

i-to d o e stu d o d a cu ltu ra . C om o a te sta a re p e tiçã o d a id é ia d e ‘re la tivo’, a

a p re e n sã o d e ou tra cu ltu ra e n volve o re la cion a m e n to [re lation sh ip ] e n tre

d u a s va rie d a d e s d o fe n ôm e n o h u m a n o; e la visa a cria çã o d e u m a re la çã o

in te le ctu a l e n tre e la s, u m a com p re e n sã o q u e in clu a a a m b a s. A id é ia d e ‘re

la cion a m e n to’ é im p orta n te a q u i p orq u e é m a is a p rop ria d a a e ssa a p roxim a

-çã o d e d u a s e n tid a d e s (ou p on tos d e vista ) e q u iva le n te s q u e n oçõe s com o

‘a n á lise ’ ou ‘e xa m e ’, q u e tra e m u m a p re te n sã o a u m a ob je tivid a d e a b solu

-ta ” (Wa g n e r 1981:2-3).

O u , com o d iria De le u ze : n ã o se tra ta d e a firm a r a re la tivid a d e d o ve r-d a r-d e iro, m a s sim a ve rr-d a r-d e r-d o re la tivo. É r-d ig n o r-d e n ota q u e Wa g n e r a ssocie a n oçã o d e re la çã o à d e p on to d e vista (os te rm os re la cion a d os sã o p on tos d e vista ), e q u e e ssa id é ia d e u m a ve rd a d e d o re la tivo d e fin a ju sta -m e n te o q u e De le u ze ch a -m a d e “ p e rsp e ctivis-m o” . Pois o p e rsp e ctivis-m o — o d e Le ib n iz e N ie tzsch e com o o d os Tu k a n o ou J u ru n a — n ã o é u m re la tivism o, isto é , a firm a çã o d e u m a re la tivid a d e d o ve rd a d e iro, m a s u m re la cion a lism o, p e lo q u a l se a firm a q u e a v e rd ad e d o re lativ o é a re lação.

In d a g u e i o q u e a con te ce ria se re cu sá sse m os a va n ta g e m e p iste m o-lóg ica d o d iscu rso d o a n trop ólog o sob re o d o n a tivo; se e n te n d ê sse m os a re la çã o d e con h e cim e n to com o su scita n d o u m a m od ifica çã o, n e ce ssa ria -m e n te re cíp roca , n os te r-m os p or e la re la cion a d os, isto é , a tu a liza d os. Isso é o m e sm o q u e p e rg u n ta r: o q u e a con te ce q u a n d o se le va o p e n sa m e n to n a tivo a sé rio? Q u a n d o o p rop ósito d o a n trop ólog o d e ixa d e se r o d e e xp li-ca r, in te rp re ta r, con te xtu a liza r, ra cion a liza r e sse p e n sa m e n to, e p a ssa a se r o d e o u tiliza r, tira r su a s con se q ü ê n cia s, ve rifica r os e fe itos q u e e le p od e p rod u zir n o n osso? O q u e é p e n sa r o p e n sa m e n to n a tivo? Pe n sa r, d ig o, se m p e n sa r se a q u ilo q u e p e n sa m os (o ou tro p e n sa m e n to) é “ a p a -re n te m e n te irra cion a l”25, ou p ior a in d a , n a tu ra lm e n te ra cion a l26, m a s

p e n sá -lo com o a lg o q u e n ã o se p e n sa n os te rm os d e ssa a lte rn a tiva , a lg o in te ira m e n te a lh e io a e sse jog o?

(18)

Le va r a sé rio sig n ifica ria , e n tã o, ‘a cre d ita r’ n o q u e d ize m os ín d ios, tom a r se u p e n sa m e n to com o e xp rim in d o u m a ve rd a d e sob re o m u n d o? De form a a lg u m a ; e sta é ou tra q u e stã o m a l coloca d a . Pa ra cre r ou n ã o cre r e m u m p e n sa m e n to, é p re ciso p rim e iro im a g in á -lo com o u m siste m a d e cre n ça s. M a s os p rob le m a s a u te n tica m e n te a n trop ológ icos n ã o se p õe m ja m a is n os te rm os p sicolog ista s d a cre n ça , n e m n os te rm os log icis-ta s d o va lor d e ve rd a d e , p ois n ã o se tra icis-ta d e tom a r o p e n sa m e n to a lh e io com o u m a op in iã o, ú n ico ob je to p ossíve l d e cre n ça ou d e scre n ça , ou com o u m con ju n to d e p rop osiçõe s, ú n icos ob je tos p ossíve is d os ju ízos d e ve r-d a r-d e . Sa b e -se o e stra g o ca u sa r-d o p e la a n trop olog ia a o r-d e fin ir a re la çã o d os n a tivos com se u d iscu rso e m te rm os d e cre n ça — a cu ltu ra vira u m a e sp é cie d e te olog ia d og m á tica (Vive iros d e C a stro 1993) —, ou a o tra ta r e sse d iscu rso com o u m a op in iã o ou com o u m con ju n to d e p rop osiçõe s — a cu ltu ra vira u m a te ra tolog ia e p istê m ica : e rro, ilu sã o, lou cu ra , id e olo-g ia …27. C om o ob se rva La tou r (1996b :15), “ a cre n ça n ã o é u m e sta d o m e n

-ta l, m a s u m e fe ito d a re la çã o e n tre os p ovos” — e o tip o m e sm o d o e fe ito q u e n ão p re te n d o p rod u zir.

O a n im ism o, p or e xe m p lo, sob re o q u a l já e scre vi a n te s (Vive iros d e C a stro 1996). O Vocab u lário d e La la n d e , q u e n ã o se m ostra , q u a n to a isso, m u ito d e stoa n te e m fa ce d e e stu d os p sico-a n trop ológ icos re ce n te s sob re o tóp ico, d e fin e “ a n im ism o” n e ste s e xa tos te rm os: com o u m “ e sta d o m e n -ta l” . M a s o a n im ism o a m e rín d io p od e se r tu d o, m e n os isso. Ele é u m a im ag e m d o p e n sam e n to, q u e re p a rte o fa to e o d ire ito, o q u e ca b e d e d i-re ito a o p e n sa m e n to e o q u e i-re m e te con tin g e n te m e n te a os e sta d os d e coi-sa s; é , m a is e sp e cifica m e n te , u m a con v e n ção d e in te rp re tação (Stra th e rn 1999a :239) q u e p re ssu p õe a p e rson itu d e form a l d o q u e h á a con h e ce r, fa ze n d o a ssim d o p e n sa m e n to u m a a tivid a d e e u m e fe ito d a re la çã o (‘socia l’) e n tre o p e n sa d or e o p e n sa d o. Se ria a p rop ria d o d ize r q u e , p or e xe m -p lo, o -p ositivism o ou o ju sn a tu ra lism o sã o e sta d os m e n ta is? O m e sm o (n ã o) se d ig a d o a n im ism o a m a zôn ico: e le n ã o é u m e sta d o m e n ta l d os su je itos in d ivid u a is, m a s u m d isp ositivo in te le ctu a l tra n sin d ivid u a l, q u e tom a , a liá s, os ‘e sta d os m e n ta is’ d os se re s d o m u n d o com o u m d e se u s ob je tos. Ele n ã o é u m a con d içã o d a m e n te d o n a tivo, m a s u m a ‘te oria d a m e n te ’ a p lica d a p e lo n a tivo, u m m od o d e re solve r, a liá s — ou m e lh or, d e d issolve r —, o p rob le m a e m in e n te m e n te filosófico d a s ‘ou tra s m e n te s’.

(19)

-d o q u e e le -d a ria a ce sso à e ssê n cia ín tim a e ú ltim a -d a s coisa s, -d e te n tor q u e se ria d e u m a ciê n cia e soté rica in fu sa . “ Um a a n trop olog ia q u e […] re d u z o se n tid o [m e an in g ] à cre n ça , a o d og m a e à ce rte za ca i forçosa -m e n te n a a r-m a d ilh a d e te r d e a cre d ita r ou n os se n tid os n a tivos, ou e -m n ossos p róp rios” (Wa g n e r 1981:30). M a s o p la n o d o se n tid o n ã o é p ovoa -d o p or cre n ça s p sicológ ica s ou p rop osiçõe s lóg ica s, e o ‘fu n -d o’ con té m ou tra coisa q u e ve rd a d e s. N e m u m a form a d a d ox a, n e m u m a fig u ra d a lóg ica — n e m op in iã o, n e m p rop osiçã o —, o p e n sa m e n to n a tivo é a q u i tom a d o com o a tivid a d e d e sim b oliza çã o ou p rá tica d e se n tid o: com o d is-p ositivo a u to-re fe re n cia l ou ta u te g órico d e is-p rod u çã o d e con ce itos, isto é , d e “ sím b olos q u e re p re se n ta m a si m e sm os” (Wa g n e r 1986).

Re cu sa rse a p ôr a q u e stã o e m te rm os d e cre n ça p a re ce m e u m tra ço cru cia l d a d e cisã o a n trop ológ ica . Pa ra m a rcá lo, re e voq u e m os o O u -tre m d e le u zia n o. O u -tre m é a e xp re ssã o d e u m m u n d o p ossíve l; m a s e ste m u n d o d e ve se m p re , n o cu rso u su a l d a s in te ra çõe s socia is, se r a tu a liza d o p or u m Eu : a im p lica çã o d o p ossíve l e m ou tre m é e xp lica d a p or m im . Isto sig n ifica q u e o p ossíve l p a ssa p or u m p roce sso d e v e rificação q u e d issip a e n trop ica m e n te su a e stru tu ra . Q u a n d o d e se n volvo o m u n d o e xp rim id o p or ou tre m , é p a ra va lid á -lo com o re a l e in g re ssa r n e le , ou e n tã o p a ra d e sm e n ti-lo com o irre a l: a ‘e xp lica çã o’ in trod u z, a ssim , o e le m e n to d a cre n ça . De scre ve n d o ta l p roce sso, De le u ze in d ica va a con d içã o-lim ite q u e lh e p e rm itiu a d e te rm in a çã o d o con ce ito d e O u tre m :

“ [E]ssa s re la çõe s d e d e se n volvim e n to, q u e form a m ta n to n ossa s com u n id a

d e s com o n ossa s con te sta çõe s com ou tre m , d issolve m su a e stru tu ra , e a re d u

-ze m , e m u m ca so, a o e sta d o d e ob je to, e , n o ou tro, a o e sta d o d e su je ito. Eis

p or q u e , p a ra a p re e n d e r ou tre m com o ta l, se n tim on os n o d ire ito d e e xig ir con

d içõe s e sp e cia is d e e xp e riê n cia , p or m a is a rtificia is q u e fosse m e la s: o m om e n

-to e m q u e o e xp rim id o a in d a n ã o p ossu i (p a ra n ós) e xistê n cia fora d o q u e o

e xp rim e — O u tre m com o e xp re ssã o d e u m m u n d o p ossíve l” (1969a :335).

E con clu ía re cord a n d o u m a m á xim a fu n d a m e n ta l d e su a re fle xã o: “ A re g ra q u e in vocá va m os a n te riorm e n te : n ã o se e xp lica r d e m a is, sig n i-fica va , a n te s d e tu d o, n ã o se e xp lica r d e m a is com ou tre m , n ã o e xp lica r ou tre m d e m a is, m a n te r se u s va lore s im p lícitos, m u ltip lica r n osso m u n d o p ovoa n d o-o d e tod os e sse s e xp rim id os q u e n ã o e xiste m fora d e su a s e xp re ssõe s” (De le u ze 1969a :335).

(20)

p e n sa m e n to in d íg e n a , a d e lib e ra çã o d e g u a rd á -los in d e fin id am e n te com o p ossíve is — n e m d e sre a liza n d oos com o fa n ta sia s d os ou tros, n e m fa n ta -sia n d o-os com o a tu a is p a ra n ós. A e xp e riê n cia a n trop ológ ica , n e sse ca so, d e p e n d e d a in te rioriza çã o form a l d a s “ con d içõe s e sp e cia is e a rtificia is” d e q u e fa la De le u ze : o m om e n to e m q u e o m u n d o d e ou tre m n ã o e xiste fora d e su a e xp re ssã o tra n sform a -se e m u m a con d içã o e te rn a , isto é , in te rn a à re la çã o a n trop ológ ica , q u e re a liza e sse p ossíve l com o v irtu al28. Se h á a lg o

q u e ca b e d e d ire ito à a n trop olog ia , n ã o é ce rta m e n te a ta re fa d e e x p licar o m u n d o d e ou tre m , m a s a d e m u ltip licar n osso m u n d o, “ p ovoa n d o-o d e tod os e sse s e xp rim id os q u e n ã o e xiste m fora d e su a s e xp re ssõe s” .

De porcos e corpos

Re a liza r os p ossíve is n a tivos com o virtu a lid a d e s é o m e sm o q u e tra ta r a s id é ia s n a tiva s com o con ce itos. Dois e xe m p los.

1. Os porcos dos índios.É com u m e n con tra r-se n a e tn og ra fia a m e rica n a a id é ia d e q u e , p a ra os ín d ios, os a n im a is sã o h u m a n os. Ta l form u -la çã o con d e n sa u m a n e b u losa d e con ce p çõe s su tilm e n te va ria d a s, q u e n ã o ca b e a q u i e la b ora r: n ã o sã o tod os os a n im a is q u e sã o h u m a n os, e n ã o sã o só e le s q u e o sã o; os a n im a is n ã o sã o h u m a n os o te m p o tod o; e le s fora m h u m a n os m a s n ã o o sã o m a is; e le s torn a m -se h u m a n os q u a n d o se a ch a m fora d e n ossa s vista s; e le s a p e n a s p e n sa m q u e sã o h u m a n os; e le s vê e m -se com o h u m a n os; e le s tê m u m a a lm a h u m a n a sob u m corp o a n im a l; e le s sã o g e n te a ssiim coim o os h u im a n os, im a s n ã o sã o h u im a n os e xa ta m e n te com o a g e n te ; e a ssim p or d ia n te . Alé m d isso, ‘a n im a l’ e ‘h u m a n o’ sã o tra d u çõe s e q u ívoca s d e ce rta s p a la vra s in d íg e n a s — e n ã o e sq u e -ça m os q u e e sta m os d ia n te d e ce n te n as d e lín g u a s d istin ta s, n a m a ioria d a s q u a is, a liá s, a cóp u la n ã o costu m a vir m a rca d a p or u m ve rb o. M a s n ã o im p orta , n o m om e n to. Su p on h a m os q u e e n u n cia d os com o “ os a n i-m a is sã o h u i-m a n os” ou “ ce rtos a n ii-m a is sã o g e n te ” fa ça i-m a lg u i-m se n tid o, e u m se n tid o q u e n a d a te n h a d e ‘m e ta fórico’, p a ra u m d a d o g ru p o in d íg e n a . Ta n to se n tid o, d iíg a m os (m a s n ã o e xa ta m e n te o m e sm o tip o d e se n -tid o), q u a n to o q u e a a firm a çã o a p a re n te m e n te in ve rsa , e h oje tã o p ou co e sca n d a losa — “ os h u m a n os sã o a n im a is” —, fa z p a ra n ós. Su p on h a m os, e n tã o, q u e o p rim e iro e n u n cia d o fa ça se n tid o p a ra , p or e xe m p lo, os Ese Eja d a Am a zôn ia b olivia n a : “ A a firm a çã o, q u e e u fre q ü e n te m e n te ou vi, d e q u e ‘tod os os a n im a is sã o Ese Eja ’ […]” (Ale xia d e s 1999:179)29.

(21)

-so q u e e m m a io d e 1998, se e u a cre d ita va q u e os p e ca ris sã o h u m a n os, com o d ize m os ín d ios. Re sp on d i q u e n ã o — e o fiz p orq u e su sp e ite i (se m n e n h u m a ra zã o) q u e e la a cre d ita va q u e , se os ín d ios d izia m ta l coisa , e n tã o d e via se r ve rd a d e . Acre sce n te i, p e rve rsa e a lg o m e n tirosa m e n te , q u e só ‘a cre d ita va ’ e m á tom os e g e n e s, n a te oria d a re la tivid a d e e n a e vo-lu çã o d a s e sp é cie s, n a vo-lu ta d e cla sse s e n a lóg ica d o ca p ita l, e n fim , n e sse tip o d e coisa ; m a s q u e , com o a n trop ólog o, tom a va p e rfe ita m e n te a sé rio a id é ia d e q u e os p e ca ris sã o h u m a n os. Ela m e con te stou : “ C om o você p od e su ste n ta r q u e le va o q u e os ín d ios d ize m a sé rio? Isso n ã o é só u m m od o d e se r p olid o com se u s in form a n te s? C om o você p od e le vá -los a sé rio se só fin g e a cre d ita r n o q u e e le s d ize m ?”

Essa in tim a çã o d e h ip ocrisia m e ob rig ou , é cla ro, a re fle tir. Estou con ve n cid o d e q u e a q u e stã o d e Isa b e lla é a b solu ta m e n te cru cia l, d e q u e tod a a n trop olog ia d ig n a d e sse n om e p re cisa re sp on d ê -la , e d e q u e n ã o é n a d a fá cil re sp on d ê -la b e m .

Um a re sp osta p ossíve l, n a tu ra lm e n te , é a q u e la con tid a e m u m a ré p lica corta n te d e Lé vi-Stra u ss a o h e rm e n e u tism o m í(s)tico d e Ricœ u r: “ É p re ciso e scolh e r o la d o e m q u e se e stá . O s m itos n ã o d ize m n a d a ca p a z d e n os in stru ir sob re a ord e m d o m u n d o, a n a tu re za d o re a l, a orig e m d o h om e m ou o se u d e stin o” (1971:571). Em troca , p rosse g u e o a u tor, os m itos n os e n sin a m m u ito sob re a s socie d ad e s d e on d e p rovê m , e , sob re -tu d o, sob re ce rtos m od os fu n d a m e n ta is (e u n ive rsa is) d e op e ra çã o d o e sp írito h u m an o (Lé vi-Stra u ss 1971:571). O p õe -se , a ssim , à va cu id a d e re fe re n cia l d o m ito, su a p le n itu d e d ia g n óstica : d ize r q u e os p e ca ris sã o h u m a n os n ã o n os ‘d iz’ n a d a sob re os p e ca ris, m a s m u ito sob re os h u m a -n os q u e o d ize m .

(22)

sob re a socie d a d e , n ã o sob re o q u e fa la m . Ele s n ã o e n sin a ria m n a d a sob re a ord e m d o m u n d o e a n a tu re za d o re a l, p orta n to, n e m p a ra n ós, n e m p ara os ín d ios. Le va r a sé rio u m a a firm a çã o com o “ os p e ca ris sã o h u m a n os” , n e sse ca so, con sistiria e m m ostra r com o ce rtos h u m a n os p od e m le vá -la a sé rio, e m e sm o a cre d ita r n e la , se m q u e se m ostre m , com isso, irra cion a is — e , n a tu ra lm e n te , se m q u e os p e ca ris se m ostre m , p or isso, h u m a n os. Sa lva -se o m u n d o: sa lva m -se os p e ca ris, sa lva m -se os n a tivos, e sa lva -se , sob re tu d o, o a n trop ólog o.

Essa solu çã o n ã o m e sa tisfa z. Ao con trá rio, e la m e in com od a p rofu n -d a m e n te . Ela p a re ce im p lica r q u e , p a ra le va r os ín -d ios a sé rio, q u a n -d o a firm a m coisa s com o “ os p e ca ris sã o h u m a n os” , é p re ciso n ão a cre d ita r n o q u e e le s d ize m , visto q u e , se o fizé sse m os, n ã o e sta ría m os n os le va n -d o a sé rio. É p re ciso a ch a r ou tra sa í-d a . C om o n ã o te n h o e sp a ço n e m , sob re tu d o e e vid e n te m e n te , com p e tê n cia p a ra re p a ssa r a va sta lite ra tu ra filosófica sob re a g ra m á tica d a cre n ça , a ce rte za , a s a titu d e s p rop osicio-n a is e tc., a p re se osicio-n to a q u i a p e osicio-n a s ce rta s coosicio-n sid e ra çõe s su scita d a s, iosicio-n tu iti-va m a is q u e re fle xiiti-va m e n te , p or m in h a e xp e riê n cia d e e tn óg ra fo.

Sou a n trop ólog o, n ã o su in ólog o. O s p e ca ris (ou , com o d isse u m ou tro a n trop ólog o a p rop ósito d os N u e r, a s va ca s) n ã o m e in te re ssa m e n orm e m e n te , os h u m a n os sim . M a s os p e ca ris in te re ssa m e n orm e m e n te à q u e -le s h u m a n os q u e d ize m q u e e -le s sã o h u m a n os. Porta n to, a id é ia d e q u e os p e ca ris sã o h u m a n os m e in te re ssa , a m im ta m b é m , p orq u e ‘d iz’ a lg o sob re os h u m a n os q u e d ize m isso. M a s n ão p orq u e e la d ig a a lg o q u e e sse s h u m a n os n ã o sã o ca p a ze s d e d ize r sozin h os, e sim p orq u e , n e la , e sse s h u m a n os e stã o d ize n d o a lg o n ã o só sob re os p e ca ris, m a s ta m b é m sob re o q u e é se r ‘h u m a n o’. (Por q u e os N u e r, a o con trá rio e p or e xe m -p lo, n ã o d ize m q u e o g a d o é h u m a n o?) O e n u n cia d o sob re a h u m a n id a d e d os p e ca ris, se ce rta m e n te re v e la — a o a n trop ólog o — a lg o sob re o e sp í-rito h u m a n o, fa z m a is q u e isso — p a ra os ín d ios: e le afirm a a lg o sob re o con ce ito d e h u m a n o. Ele a firm a , in te r alia, q u e a n oçã o d e ‘e sp írito h u m a n o’, e o con ce ito in d íg e n a d e socia lid a d e , in clu e m e m su a e xte n sã o os p e ca ris — e isso m od ifica ra d ica lm e n te a in te n sã o d e sse s con ce itos re la tiva m e n te a os n ossos.

(23)

sa b e r — u m sa b e r e sse n cia lm e n te a rb itrá rio, p a ra n ã o d ize rm os b u rro — d e ve p a ra r a í: se u ú n ico in te re sse con siste e m te r d e sp e rta d o o in te re sse d o a n trop ólog o. N ã o se d e ve p e d ir m a is a e le . N ã o se p od e , a cim a d e tu d o, in corp orá -lo im p licita m e n te n a e con om ia d o com e n tá rio a n trop oló-g ico, com o se fosse n e ce ssá rio e xp lica r (com o se o e sse n cia l fosse e xp li-ca r) p or q u e os ín d ios crê e m q u e os p e li-ca ris sã o h u m a n os q u a n d o d e fato e le s n ã o o sã o. É in ú til p e rg u n ta r-se se os ín d ios tê m ou n ã o ra zã o a e sse re sp e ito: p ois já n ã o o ‘sa b e m os’? M a s o q u e é p re ciso sa b e r é ju sta m e n te o q u e n ão se sa b e — a sa b e r, o q u e os ín d ios e stã o d ize n d o, q u a n d o d ize m q u e os p e ca ris sã o h u m a n os.

Um a id é ia com o e sta e stá lon g e d e se r e vid e n te . O p rob le m a q u e e la coloca n ã o re sid e n a cóp u la d a p rop osiçã o, com o se ‘p e ca ri’ e ‘h u m a n o’ fosse m n oçõe s com u n s p a rtilh a d a s p e lo a n trop ólog o e p e lo n a tivo, e a ú n ica d ife re n ça re sid isse n a e q u a çã o b iza rra e n tre os d ois te rm os. É p e rfe ita -m e n te p ossíve l, d ig a -se d e p a ssa g e -m , q u e o sig n ifica d o le xica l ou a in te r-p re ta çã o se m â n tica d e ‘r-p e ca ri’ e ‘h u m a n o’ se ja m m a is ou m e n os os m e s-m os p a ra os d ois in te rlocu tore s; n ã o se tra ta d e u s-m p rob le s-m a d e tra d u çã o, ou d e d e cid ir se os ín d ios e n ós te m os os m e sm os n atu ral k in d s (ta lve z, ta lve z). O p rob le m a é q u e a id é ia d e q u e os p e ca ris sã o h u m a n os é p a rte d o se n tid o d os ‘con ce itos’ d e p e ca ri e d e h u m a n o n a q u e la cu ltu ra , ou m e lh or, é e ssa id é ia q u e é o ve rd a d e iro con ce ito e m p otê n cia — o con ce ito q u e d e te rm in a o m od o com o a s id é ia s d e p e ca ri e d e h u m a n o se re la -cion a m . Pois n ã o h á ‘p rim e iro’ os p e ca ris e os h u m a n os, ca d a q u a l d e se u la d o, e ‘d e p ois’ sob re vé m a id é ia d e q u e os p e ca ris sã o h u m a n os: a o con -trá rio, os p e ca ris, os h u m a n os e su a re la çã o sã o d a d os sim u ltan e am e n te30.

Referências

Documentos relacionados

The behavior presented by TDC may also be related to the degradation of organic matter by the sediments of the intertidal areas of the estuary (Pereira et al., 2007), and the

O estudo foi realizado com objetivo de determinar a produção de massa seca total, a composição botânica, e a variação da produção de massa seca das misturas das gramíneas

A) o sentimento do mundo é exemplificado pela percepção particular sobre a cidade do Rio de Janeiro, marcada pela metáfora do Morro da Babilônia. C) a alusão

Observa-se, portanto, que o melhor método de filetagem do saramunete é aquele onde a pele é retirada após a remoção dos filés, podendo acontecer com o peixe inteiro sem escamas

Escoamento interno (em dutos). Fator de fricção. Dutos não cilíndricos: diâmetro hidráulico equivalente. Escoamento em torno de objetos. Escoamento em leitos de

O Plano de Autoavaliação do Programa de Pós-Graduação Ensino em Ciências da Saúde, modalidade Mestrado Profissional (PPGECS-MP) da Universidade Federal de São

Quanto ao modo de gestão do tanque de monitorização, conforme os valores de COT e pH medidos será acionado o grupo eletrobomba submersível colocado no tanque que elevará as

Seguindo esse entendimento, o COMAER estabeleceu em sua Concepção Estratégica (DCA 11-45) que, para o ano de 2041, a Força Aérea deveria ter grande capacidade dissuasória,