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De Miguilim a Miguel: a infância e recalque

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Academic year: 2021

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UNVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ DEPARTAMENTO ACADÊMICO LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E

LITERATURA

NARA ALEXO DA SILVA

DE MIGUILIM A MIGUEL: INFÂNCIA E RECALQUE

MONOGRAFIA DE ESPECIALIZAÇÃO

CURITIBA - PR 2018

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NARA ALEXO DA SILVA

DE MIGUILIM A MIGUEL: INFÂNCIA E RECALQUE

Monografia de Especialização apresentada ao Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná como requisito parcial para obtenção do título de “Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura”

Orientador: Prof. Dr. Zama Caixeta Nascentes

CURITIBA - PR 2018

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DEDICATÓRIA

A João Guimarães Rosa, que escreveu “Campo Geral” e Primeiras Estórias, e me fez entender a criança sensível que há em mim.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Zama Caixeta Nascentes, pela imensa paciência, dedicação e apoio ao meu trabalho.

Ao Rodrigo, pela paciência em todas as noites.

A Eliana Bueno, tutora do polo Osasco – SP, por todo auxílio durante o curso e todo o apoio que me deu nessa jornada de escrita.

Ao Ensino público e gratuito, que permaneça fazendo a diferença ao nosso país.

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RESUMO

Esta pesquisa apresenta uma abordagem psicanalítica dos problemas da infância à travessia para a vida adulta da personagem Miguilim/Miguel. Para a compreensão dos processos entre a infância e a vida adulta, em que vive a personagem nas novelas “Campo Geral” e “Buriti”, respectivamente, empregou-se o estudo da Psicanálise criado por Freud. Os conceitos buscam explicar o que ocorre com a criança em seu período de vivência familiar nos primeiros anos de vida, em que a criança se depara com sentimentos que não compreende, que influenciam o restante de sua vida adulta e todas as suas relações. O estudo investigou quais marcas dessa infância restam no adulto.

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ABSTRACT

This research presents a psychoanalytic approach of the problems of childhood to the crossing to the adult life of the character Miguilim / Miguel. For the understanding of the processes between childhood and adult life, in which the character lives in the novels "Campo Geral" and "Buriti", respectively, was used the study of Psychoanalysis created by Freud. The concepts seek to explain what happens to the child in the period of family life in the first years of life, in which the child is faced with feelings that he does not understand that influence the rest of his adult life and all his relationships. The study investigated which marks of this childhood remain in the adult.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 8

2 CAPÍTULO 1: MIGUILIM E AS MULHERES ...11

3 CAPÍTULO 2: MIGUILIM E OS HOMENS ...18

4 CAPÍTULO 3: MIGUILIM A MIGUEL... 22

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 25

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1 INTRODUÇÃO

As novelas “Campo Geral” e “Buriti” fazem parte da obra Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, de 1956. As duas primeiras edições continham um total de sete novelas, e a partir da terceira edição foram desmembradas em três outras obras: Manuelzão e Miguilim, em que foi publicada “Campo Geral”, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão, em que consta a novela “Buriti”. Na primeira publicação, há a história de Miguilim e sua família e depois a continuação da personagem estava no mesmo livro, mas, depois do desmembramento, ficaram separadas.1

O tema trabalhado será quais os processos que surgem na infância de Miguilim que implicam em sua vida adulta, que surge em “Buriti”. As adversidades que o menino Miguilim e o adulto Miguel passam e como esses ciclos da vida são finalizados, ou seja, quem são depois de atravessarem seus problemas e como termina Miguel na vida adulta, são as preocupações que nos levaram a refletir sobre as obras. Pensando no tema, a bibliografia apontada ao final deste estudo foi lida, devidamente fichada e aplicada às obras estudadas, com a cooperação do professor na explicação das dúvidas sobre a teoria freudiana.

O objetivo é, a partir das duas obras e teorias referidas, analisar como foi o desenvolvimento da personagem Miguilim dentro de sua trajetória na infância até a vida adulta através do olhar psicanalítico de Freud, utilizando para esta análise o material bibliográfico existente sobre psicanálise na infância e análise das duas novelas.

Na novela Campo Geral, a história que se passa no Mutum, um lugar “longe, longe (…), muito depois da Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas” (p. 13), Miguilim, personagem principal, tem oito anos e vive com sua família. Há a tia-avó, Vó Izidra, o pai Nhô Berno e seu irmão Tio Terêz, a mãe Nhanina, os irmãos Dito, Tomezinho, Drelina, Chica e outras personagens que vivem agregados na mesma casa: Mãitina, uma ex-escrava, Rosa, Maria Pretinha e Je.

1 Para este trabalho, foi utilizada o Volume I de Corpo de Baile, 3ªed. 2010. Rio de Janeiro: Nova

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Muitas são as questões e interpretações a respeito da obra de Guimarães Rosa, muitos mistérios a serem elucidados, revelando complexas questões a serem discutidas. A personagem Miguilim, a qual este estudo vai investigar, é dotada de uma série de características especiais que fazem da infância não apenas uma época a ser conhecida, mas um período em que diversas forças atuam, fazendo da criança um ser em constante conflito com seu momento. A narrativa é escrita em terceira pessoa, mas é contada a partir da percepção da personagem principal, transmitindo suas impressões sobre sua vida em família e sobre o mundo, recurso este que potencializa a narrativa, dando a ela o caráter infantil e delicado, poético, da ficção roseana.

Para a crítica, especialmente para Leite (2002)

Essa capacidade [infantil] de conhecimento se revela integralmente em Dito, mas aparece também em Miguilim, na percepção por meio da qual as coisas são decifradas. Portanto, o que “Campo Geral” afirma é que a experiência, longe de ser uma forma de conhecimento ou ampliação da possibilidade de compreender o universo e os homens, é um véu que recobre o conhecimento verdadeiro, de que a criança é capaz. (LEITE, p. 278)

Na análise do crítico, a infância é carregada de um conhecimento genuíno a respeito do mundo e que a experiência dos adultos não é determinante ou não é suficiente para o saber-se na existência. O adulto está impregnado do que vivenciou e perdeu a habilidade dessa genuidade.

Contudo, o que também se percebe em Campo Geral é que a experiência da criança é distinta daquela vivida pelos adultos, adquirindo sua própria experiência e sendo capaz de observar os mais velhos, elaborando escolhas pra si para a vida apesar dos maiores. A força da Infância como capacidade de elaboração da vivência humana é que faz a diferença para Miguilim e Dito.

Guimarães Rosa aproveitou muitas personagens de “Campo Geral” em outras novelas, como Drelina, Chica e Tomezinho aparecem em A história de Lélio e Lina. Mas é em Buriti que vemos a experiência da infância no desenvolvimento da obra. Miguilim, agora Miguel, reflete sobre seus diversos dilemas da infância, fazendo com que tenha muitos receios sobre seu relacionamento com Maria da Glória. Na novela vemos surgir o desenvolvimento da personagem Miguel percebendo o efeito da sua infância na vida adulta. Mesmo nessa fase, sente a falta do irmão e pensa nele quando necessita de um apoio, como fazia ainda criança.

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Ao conhecermos “Campo Geral”, vemos nascer uma forma de narrar. Rosa, ao explorar o tema da infância nesta obra, utiliza um recurso que insere o leitor no universo infantil desde o início: o narrador é em terceira pessoa. Segundo Soares (2007)

Seu leitor apreende a realidade ficcional da forma como ela se reflete, e apenas na medida em que se reflete, na sensibilidade de seu maior personagem (…). O narrador não impõe à estória a sua perspectiva; ao contrário, aproxima-se tanto do protagonista que é capaz de expressar as nuances mais delicadas da subjetividade do menino e sua forma de perceber o mundo. (SOARES, 2007)

A perspectiva do leitor é privilegiada na medida em que consegue acompanhar todas as intempéries da vida de Miguilim e a forma como ele reage a elas, como a infância, lugar de inomináveis passagens, pode ser uma experiência rica em poesia e em elaboração do crescer.

Em “Buriti”, a leitura fica garantida pela presença do menino, agora adulto. Segundo Roncari (2008)

Com o reconhecimento de Miguel como o menino Miguilim, toda a simpatia que o leitor havia adquirido pelo menino, pelos afetos maternos (grifo meu), pelas suas dores e perdas, ele a transfere a Miguel, já homem feito, que parece, de início, ser o protagonista da nova história. Na verdade, ele é só uma promessa, para o leitor, e o esperado, como mensageiro que irá livrar Glorinha de seus demônios internos e externos. É assim que ele é aguardado, como um anjo salvador de Glorinha, que, por sua vez, o ajudará a encontrar o seu destino. (RONCARI L., 2008)

Ao reconhecermos sua aparição na novela, fica inevitável dissociar a personalidade que conhecemos do menino no adulto, e fica também impossível separar o passado e seus problemas do que ele vai viver ao lado de Glorinha. Nesta análise, veremos que é impossível pensar o Miguel sem entender sua história com sua família.

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CAPÍTULO 1 - MIGUILIM E AS MULHERES

O objetivo neste capítulo é analisar como a Psicanálise procura entender as diversas sensações e movimentos em que a criança está sujeita ao passar pela infância. A teoria de Freud explica como a infância afeta a formação do ser humano, desde os anos iniciais, para que se compreenda o adulto. O fundamento geral da teoria psicanalítica auxilia nisso, “tornar consciente aquilo que é inconsciente”. (FREUD, 1915)

Miguilim é um menino de oito anos dotado de características peculiares, como uma grande sensibilidade, vive com sua família no Mutum, no sertão de Minas Gerais. Como a narrativa foi elaborada a partir da perspectiva de Miguilim, é necessário analisar as relações familiares e sua relevância para a personagem a partir do ponto de vista da infância, incluindo nesta análise os efeitos sofridos em consequência de sua vivência familiar, já que ele se mostra sensível a elas.

No início da história, Miguilim viaja a cavalo com seu tio Terez para ser crismado, no Sucurijú. Logo se percebe que entre os dois há vínculo, pois o tio cuida bem do menino ao longo da viagem : “Tio Terez, quando davam com um riacho, sem se apear do cavalo abaixava o copo de chifre na ponta de uma correntinha, e subia um punhado de água”. (p. 14) Ao longo da história, percebe-se que Miguilim gosta muito do tio2.

Nhanina, ou Nina, é a mãe de Miguilim, filha de Benvinda. É alfabetizada, conhece coisas que muitos ali não tiveram a oportunidade de ver, como o circo ou o teatro. É uma mulher com sensibilidade e sonhos. Não gosta de viver no Mutum, está sempre desejando ir embora dali. Não é por acaso então que ela está sempre insatisfeita com uma série de aspectos da sua vida. Pelo que se diz a respeito dela na obra, através da fala da personagem Luizaltino, ela se casou muito jovem, tendo o pai escolhido o seu marido. O leitor fica sabendo também que a mãe dela foi uma prostituta:

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Um vaqueiro contou ao Dito, de segredo. Vó Benvinda quando moça tinha sido mulher-atôa. Mulher-atôa é que os homens vão em casa dela e ela quando morre vai para o inferno. (ROSA, 2010)

Percebe-se que pelo fato da mãe de Benvinda ter sido prostituta, traz uma inevitável marca para Nhanina. Vó Izidra, irmã de Benvinda, que vive nesse núcleo familiar, não a deixa esquecer que sua mãe viveu essa vida.

Os meninos necessitam de saber, valença de rezar junto. Inocência deles é que pode livrar a gente de brabos castigos, o pecado já firmou aqui no meio, braseado, você mesma é quem sabe, minha filha!. (p. 36)

Vê-se que Nina, por não ter escolhido o marido e provavelmente não gostar dele, vive insatisfeita com seu casamento, por mais que goste dos filhos:

Mirou triste e apontou o morro; dizia: - Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver…. (p. 15)

Quando Vó Izidra a acusa de se parecer com a mãe, refere-se a uma possível infidelidade de Nina. Há indícios na história de que ela se relacionou com Luisaltino, um trabalhador da fazenda. Miguilim a viu conversando interessadamente com o rapaz um dia, e depois de um tempo acusa: “ Mãe gostava era de Luisaltino…” (p. 136). Sabe-se também que Nina tinha uma paixão por Terez, pois logo após Nho Berno morrer, Tio Terez volta para viver com a mãe de Miguilim.

Quando Miguilim, no início da história, chega de viagem, eufórico, para dizer para a mãe que o Mutum é um lugar bonito, que estranhos haviam dado essa afirmação (ou seja, alguém desinteressado), a mãe não se interessa pela novidade, pois vive triste naquele lugar.

Miguilim é muito apegado à Nhanina. Muitas de suas ações têm a ver com o fato de querer agradar a mãe, ou por se sentir excluído do amor e atenção dela. Existem certos sentimentos e reações que encontramos resposta na Psicanálise. Freud, criador da psicanálise, descobriu que esse tipo de apego, essa forma de reagir da criança tem a ver com o tipo de laço criado entre mãe e filho, desde a mais tenra

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infância. Chamamos de Complexo de Édipo esse laço criado. Para compreendê-lo, é necessário entender antes que

(…) nos anos da infância anteriores à puberdade, o objeto encontrado vem a ser quase idêntico ao primeiro objeto do instinto de prazer oral, que foi obtido por ligação [ao instinto nutricional] . Embora esse objeto não seja realmente o seio materno, pelo menos é a mãe. Dizemos que a mãe é o primeiro objeto de amor.

A essa escolha que a criança faz, ao tornar sua mãe seu primeiro objeto de amor, vincula-se tudo aquilo que, sob o nome de “Complexo de Édipo” veio a ter tanta importância na explicação psicanalítica das neuroses. (FREUD, 1915, p. 121)

Miguilim tem a mãe como sua escolha objetal, mesmo sem compreender esse tipo de laço entre eles. A mãe tem, então, uma grande importância na vida do menino, na sua função materna, na forma como o menino pode vir a se relacionar com outras mulheres. Há várias situações ao longo da história em que fica claro essa direção e intensidade do seu sentimento.

O menino fica bravo quando Patorí, filho de Seo Deográcias, “conta como foi feita a mãe de Miguilim” (p. 43) e, o que mais deixa Miguilim nervoso, diz que a mãe tem as pernas formosas, que ia casar com Drelina, sua irmã (p. 43) . Miguilim não suporta Patorí falar assim e até o ameaça, quer brigar com ele. O que Miguilim sente mas não sabe colocar em palavras é o ciúme das irmãs e da mãe. Além de Patorí falar da primeira escolha objetal de Miguilim, também fala das outras escolhas objetais dele. Freud afirma também, no Complexo de Édipo, que “ [o menino] pode tomar suas(s) irmã (s) como objeto de amor” (1915, p. 126). Por isso, para Miguilim é muito difícil ouvir um outro menino falando com desejo sexual sobre sua irmã e sua mãe.

Miguilim precisa lidar, diante de situações como essa, com sentimentos que não sabe entender, que não sabe por que sente. Ele não consegue explicar a si mesmo esses desejos porque, como não podem ser realizados, são reprimidos, estão imperceptíveis para ele.

A Repressão, no estudo de Freud, ocorre quando

(…)um processo mental deve não ter sido conduzido normalmente até seu objetivo normal – que era poder tornar-se consciente. O sintoma é o substituto daquilo que não aconteceu nesse ponto. Uma violenta oposição deve ter-se

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iniciado contra o acesso à consciência e, por esse motivo, ele permaneceu inconsciente. Por constituir algo inconsciente, teve o poder de construir um sintoma. Esta mesma oposição se insurge contra nosso esforço de tornar consciente aquilo que é inconsciente. É isto que percebemos como resistência, que propusemos dar ao processo patogênico o nome de Repressão.

(…)é uma cisão marcante entre a atividade mental consciente e a inconsciente; a essência da repressão consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância, no inconsciente. (FREUD, 1915)

Ainda no estudo de Freud, o inconsciente

designa , ideias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade. Assim, a ideia inconsciente acha-se excluída da consciência por forças vivas que se opõem à sua recepção, embora não objetem a outras ideias, as pré-conscientes. A psicanálise não deixa campo para dúvida de que a repulsão das ideias inconscientes só é provocada pelas tendências incluídas na essência destas. A inconsciência é uma fase regular e inevitável nos processos que constituem nossa atividade psíquica; todo ato psíquico começa como um ato inconsciente e pode permanecer assim ou continuar a evoluir para a consciência, segundo encontra resistência ou não. A distinção entre atividade pré-consciente e inconsciente não é primária, mas vem a ser estabelecida após a repulsão ter surgido. Somente então a diferença entre ideias pré-conscientes, que podem aparecer na consciência e reaparecer a qualquer momento, e ideias inconscientes, que não podem fazê-lo, adquire um valor tanto teórico quanto prático. (FREUD, 1915)

A teoria psicanalítica apresenta o inconsciente como aquilo que armazena os conteúdos reprimidos, entre muitos outros elementos, como atos falhos, sonhos, lapsos de linguagem, erros nas ações, esquecimentos, pequenos acidentes domésticos e até doenças (FREUD, 1915). No caso de Miguilim (e de toda criança), a paixão incestuosa não é suportada pelo consciente, sendo assim retida no inconsciente. Mas, ao reprimir essa paixão, algum desses conteúdos são gerados:

as pessoas adoecem de neurose quando impedidas da possibilidade de satisfazer sua libido – que adoecem devido à ‘frustração’ – e que seus sintomas são justamente um substituto para sua satisfação frustrada. (…) Os sintomas são um substituto da satisfação sexual de que são privados. Ampliando a tese, os sintomas objetivam ou satisfação sexual ou o rechaço da mesma. (FREUD, 1915, p. 139)

As ações de Miguilim, no que se referem à sua família, são seu conteúdo reprimido, surgido por não poder realizar seu amor, sua satisfação libidinal, com eles, mesmo os dois irmãos.

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Retorna em Dito, inevitavelmente. O irmão é um esteio emocional para Miguilim, também uma escolha objetal do menino, afinal, de acordo com a Psicanálise, os irmãos também podem ser essa escolha. Dito é atencioso, esperto e está sempre tentando auxiliar Miguilim. Quando este acha que vai morrer, ressente-se também com Dito, pois acha que ele e todos não estão se importando com sua morte (p. 55), ou ainda quando Miguilim cisma em brigar com Dito (p. 67). Mas um dos momentos mais marcantes da vida do menino e da história toda é quando Dito morre: Miguilim se sente perdido por um bom tempo, não sabe o que pensar ou como lidar com essa dor ( p. 122).

Quando não está tentando realizar seu amor pela mãe e pelas irmãs, está rechaçando-o. Isso ocorre, por exemplo, quando acha que vai morrer e que a família não vai sentir tanto a sua falta. Ele, sem perceber, cria situações, como imaginar que vai morrer, ao sentir-se excluído ou ver em si esse laço forte com a mãe, mas é o amor por ela (e pelas irmãs, afinal também são escolhas objetais que substituem a mãe) que rechaça dentro de si, achando que vai ser punido com a morte. (p. 48)

Outra situação em que Miguilim não suporta e age como alguém capaz de defender a mãe, como um “substituto” do pai, é quando Nho Berno ameaça bater em Nhanina, por ciúmes dela e de seu irmão, tio Terez. Miguilim corre e se abraça com a mãe, tentando protegê-la. O pai dá-lhe uma surra e o põe de castigo. Miguilim não suporta a ideia da mãe sofrendo a violência. (p. 23).

Miguilim tem desejos pela mãe que não consegue reprimir. Ele sente ciúme quando, numa noite de luar, em que Nho Berno e Vó Izidra não estão presentes, todos vão passear e Nina vai caminhando e conversando com Luizaltino. (p. 102) O menino pensa: “Mãe conversando só com Luizaltino, atenção naquilo [no luar e nas conversas] ela nem não estava pondo. Mas Miguilim queria que, a lua assim, Mãe conversasse com ele também. A gente olha Mãe, imaginava saudade”. (p.102)

Esse é um momento relevante, pois Miguilim se lembra que a mãe deu mais atenção a Luizaltino que a ele. Quando o menino apanha violentamente do pai, num dos episódios mais marcantes da história, um dos pensamentos do menino, além do desejo de matar o pai, é o de que a mãe não foi capaz de defendê-lo.

não gostava mais da Mãe. Mãe sofria junto mas era mole – não punia em defesa, não brigava até o fim por conta dele, que era fraco e menino, Pai podia judiar o quanto queria. Mãe gostava era de Luizaltino. Mas Miguilim não queria mais ter medo de ninguém, de jeito nenhum. (p. 137)

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Ele visivelmente sofre com os desejos reprimidos da mãe, ela que deseja outro (s) homem (s). O fato de a mãe ter em esses desejos cria uma insatisfação grande em Miguilim, que gostaria de estar no lugar desses homens, e isso é um marco na vida dele, pois é um conteúdo que ele reprime: o de desejar a mãe e o de ela preferir outros a ele. O que é gerado então é um medo, um receio da rejeição de outra mulher, já que sua própria mãe, seu primeiro objeto de amor, preferiu outros a ele.

O menino então inicia um processo de desamor com a mãe, decepcionado com ela pela falta de defesa para com ele e por ela preteri-lo. A escolha objetal de Miguilim precisa ir então se modificando. Freud também entendeu esse processo na vida da criança passando por ritos como esse:

Nesse ponto, desenrolam-se, assim, processos emocionais muito intensos que seguem na direção do Complexo de Édipo ou reagem contra ele. (…) Dessa época em diante, o indivíduo humano tem de se dedicar à grande tarefa de desvincular-se de seus pais e, enquanto essa tarefa não for cumprida, ele não pode deixar de ser uma criança para se tornar membro da comunidade social. (FREUD, 1915, p. 129)

Miguilim precisa então ir deixando aos poucos seu objeto de amor para que seja aceito na sociedade e tente transferir essa escolha a uma outra mulher.

Por outro lado, a mãe contribui para esse processo de desamor e amadurecimento do menino. No fim da história, quando passa pelo Mutum um doutor, ela tem a ideia de mandar Miguilim junto com o médico. Pergunta ao menino se quer ir. Miguilim fica em dúvida, percebe que sentirá falta de todos. A mãe, nesse momento, percebe que talvez seja uma oportunidade para Miguilim, um menino inteligente e sensível, que vivendo num sertão sem muitas oportunidades de novas formas de viver, deve deixá-lo ir. Inconscientemente ela está liberando Miguilim de sua paixão por ela, o que é um gesto grandioso, já que ela também o preferia. Ela diz:

Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve o poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram...” E Mãe foi arrumar a roupinha dele. “Miguilim, me abraça, meu filhinho, que eu tenho tanto amor... (p. 154).

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Miguilim então tem a oportunidade de crescer em outro lugar, na tentativa de deixar aquela vivência para trás.

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CAPÍTULO 2 - MIGUILIM E OS HOMENS

É possível também entender a situação de rivalidade que o menino tem com o pai e o pai com ele: no Complexo de Édipo, o pai é um estorvo, pois este impede o menino de ter a mãe só pra si. Enfrenta-o no episódio da briga com a mãe como se fosse alguém à altura para isso. Mais adiante na história, Miguilim defende Grivo de seu irmão Liovaldo, batendo neste, e seu pai levou-o debaixo de pancadas. Foi uma coça violenta, e ele só tinha o pensamento de que, quando crescesse, mataria o pai. Nota-se então que o conteúdo reprimido de Miguilim não é apenas o desejo pela mãe, é também de que o pai não exista e não o impeça de realizar seu impulso sexual. Mas todos esses sentimentos não são nada fáceis de se compreender, principalmente para uma criança, que mal compreende que tem impulsos, que dirá os sexuais. Assim, Miguilim, ao reprimir os sentimentos pela mãe, vê essa Repressão retornando em forma dessas várias ações. A implicância dele com o pai é por este estar no caminho dele para suas realizações libidinais.

Miguilim gosta muito de seu tio Terez. É possível reconhecer, através da teoria psicanalítica, que Terez e Bero foram rivais, anteriormente, em sua infância (pois tiveram a mesma escolha objetal, a mãe), sendo a rivalidade um conteúdo recalcado para os dois. Um menino tem um outro irmão como um oponente. Freud diz que

À medida que os irmãos e irmãs crescem, a atitude do menino para com eles sofre transformações muito significativas. Pode tomar sua irmã como objeto de amor, à maneira de substituta da mãe infiel [com o outro irmão]. Onde há diversos irmãos, todos cotejando o mesmo objeto de amor, surgem, já na época infantil, situações de rivalidade hostil que são tão importantes, na vida, mais tarde. Uma criança que tenha sido posta em segundo lugar pelo nascimento de um irmão ou irmã, e que agora é quase isolada de sua mãe, não perdoa a esta sua perda de lugar; sentimentos que em um adulto seria descrito como ressentimento, surgem na criança e frequentemente constituem a base de permanente desavença (grifo meu). (FREUD, 1915, p. 126)

Nho Bero tem uma briga feia com seu irmão Terez, e há indícios de que Terez tenha um romance com a mãe de Miguilim. Através das palavras de Vó Izidra, que

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acusa Terez de ser “Caim”, também por Terez tentar enviar um bilhete para Nhanina por Miguilim, ou ainda por Terez retornar e querer viver com Nhanina depois que Nho Bero morre. Logo, não é difícil de imaginar o porquê os dois irmãos são também rivais na vida adulta. Na infância, os dois tiveram o mesmo objeto de amor e ambos foram isolados dele (da mãe), em alguma medida, tornando-os rivais. Deste modo, a hostilidade entre eles advém, inicialmente, das neuroses originadas na infância pela disputa de seu primeiro objeto de amor, e que retornam agora na vida adulta. E ambos tornam a ser oponentes por amor à Nhanina. Terez, por já possuir a disputa reprimida dentro de si, vê uma oportunidade de sobrepujar o irmão conquistando sua esposa. É por ela que há uma briga entre eles, em que Vó Izidra, que se opõe totalmente a essa relação entre Nina e Terez, expulsa da casa o irmão de Nho Berno.

Delegar a Nho Berno apenas a oposição com seu irmão como seu conteúdo reprimido é ignorar razões de ele ser tão cruel com Miguilim. O garoto é para ele a imagem de um outro rival, também com sua esposa. Há uma preferência sexual da mãe pelo menino, e Nhanina não esconde certa preferência por Miguilim. Freud esclarece que

Não se pode deixar de acrescentar que os próprios pais frequentemente exercem influência decisiva no despertar da atitude edipiana da criança, ao cederem ao empuxo da atração sexual e que, onde houver diversas crianças, o pai dará definidas provas de sua maior afeição por sua filhinha e a mãe por seu filho. (FREUD, 1915, p. 125)

Por perceber a preferência de Nhanina e esta ceder ao empuxo sexual, Berno vê Miguilim como um oponente, mas um que ele pode se vingar diretamente, com a força. Fica claro também que, por ter o sentimento de rivalidade, Nho Berno repudia a sensibilidade de Miguilim porque não a compreende, não tem recurso intelectual para isso, e principalmente por ser um fator que aproxima Nina de Miguilim, algo que ela se identifica com o filho e faz com que os dois tenham mais aproximação.

Nho Berno também vê a preferência de Miguilim ao tio, como se este também pudesse ser um substituto do pai, e essa preferência, além de um laço de amor de pai substituto, também pode representar algo mais oculto. Se uma das intenções do menino, segundo Freud, é retirar o pai do caminho entre ele e a mãe, Miguilim inconscientemente se “alia” ao tio. “Aliar-se” ao tio, que é um adulto e poderia

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lo, é inconsciente e vantajoso. Por isso, em várias oportunidades, Nho Berno implicava com o menino, batia, punha-o de castigo.

Miguilim, após a morte de Dito, perde-se em dor, inconformado. A experiência da perda de alguém tão importante o faz passar por uma espécie de rito em que sente que precisa abandonar muitos de seus amores. O pai, então, exige que Miguilim comece a trabalhar na lavoura junto com ele. Apesar de Izidra se opor, ele acha que já pode começar a trabalhar. Inicia-se então uma série de pequenos acontecimentos que fazem Miguilim começar a agir de forma diferente.

Depois da morte de Dito a família é visitada pelo irmão mais velho, Liovaldo, e o tio Osmundo. Liovaldo é uma personagem parecida com Patorí (p. 134) em se tratando de falar sobre sexualidade, sobre as irmãs e as outras mulheres da casa para Miguilim. Um dia Liovaldo judia de Grivo, um menino amigo de Miguilim, e este não suporta outra vez e avança em direção ao irmão mais velho. Liovaldo é um outro rival de Miguilim, sendo irmão e mais velho, com a mãe e as irmãs dele.

O problema é que, quando Miguilim enfrenta o irmão mais velho, o pai não gosta e lhe dá a surra mais dolorida de todas. Tira a roupa do menino, pega uma cinta e bate nele por muito tempo, “batia e xingava, mordia a ponta da língua, enrolada, se comprazia” (p. 136). Miguilim vai ficando com o corpo todo marcado e o pai despeja tudo o que tem reprimido naquela surra, até que o solta e o menino cai no chão, fraco. Miguilim tem um pensamento, que o leitor a essa altura já se compreende bem, pois é um desejo reprimido nele: matar o pai quando crescesse.

Esse momento da sova também é importante para compreendermos um sentimento gerado a partir disso: Miguilim, além da vontade de matar o pai, sente-se ao mesmo tempo indefeso, não só pela mãe, mas também pelo pai. A figura paterna também deveria proteger os filhos, e não feri-los tão violentamente. Aparentemente o menino apenas não gosta não do pai e o vê como rival, mas há mais sentimentos do menino pelo pai: ele também gosta da figura paterna. Da parte do menino, há um sentimento de ambivalência, segundo Freud:

Há no Complexo de Édipo para o menino a circunstância de, em várias ocasiões, a própria criança dar mostras de grande afeição pelo pai. Atitudes emocionais contrárias – ou, seria melhor dizer, ‘ambivalentes’ – que, em adultos, conduziriam a um conflito, permanecem, porém, compatíveis uma com a outra, por longo tempo, nas crianças, como também, mais tarde,

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encontram um lugar permanente, lado a lado, no inconsciente. (FREUD, 1915, p. 124)

Miguilim, mesmo odiando o pai, sente-se ferido pois também gosta deste, e sente-se injustiçado pela forma de tratamento que o pai dispensa a ele. Essa ambivalência, que o menino não sabe explicar, já que é latente, fica reprimida, visto que conscientemente o menino não suporta lidar com amar e odiar o pai. Esse sentimento reprimido retorna para a vida do menino de outra forma: Miguilim sente na pele quando alguém maltrata qualquer animal, identificando-se com a injustiça dessas situações. Não compreende o porquê de alguém maltratar os mais frágeis. Esse conteúdo reprimido é muito importante, pois permanece no menino até chegar no adulto Miguel.

Depois dessa surra violenta, Miguilim passa uns dias na casa do vaqueiro Salúz e, quando retorna, não toma a benção do pai (movimento que demonstra respeito). Todos, inclusive Miguilim, esperam que o pai dê-lhe outra surra, mas o pai toma outra atitude: joga no quintal as gaiolas com todos os animaizinhos que Miguilim tinha. Miguilim, por vontade própria, pega seus brinquedos e lembranças e os joga também, destruindo-os (p. 139-140). É como um rito em que precisa abandonar a infância.

Depois desse episódio, Nho Berno mata Luizaltino. Imediatamente Miguilim grita, mesmo acamado: “Não me mata, não me mata, implorava Miguilim, gritando soluçado” (p. 148). Miguilim sabe que o pai matou um rival e sente medo de ser morto por também ser um rival do pai.

Mas o sentimento de ambivalência retorna quando o pai se mata. Miguilim fica triste por tantas desgraças no meio de sua família. Pensa que se Dito estivesse ali não haveria tantos infortúnios naquele meio.

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CAPÍTULO 3 - DE MIGUILIM A MIGUEL

A novela “Buriti”3 traz como uma das personagens o menino Miguilim, agora

Miguel, adulto. Como já foi dito, ele está no início da história e é um grande atrativo para o leitor, que já o conhece de “Campo Geral”. A história, como um todo, tem uma atmosfera carregada de erotismo, bem diferente do que encontramos na história de Miguilim, enredando outros personagens, entre elas Maria da Glória, peça importante para compreendermos como Miguilim se tornou Miguel. Ele conhece Maria da Glória e se apaixona por ela. Passa uns dias na casa da moça, no Buriti Bom.

A narrativa, em terceira pessoa, inicia com Miguel relembrando como conheceu o Buriti Bom e as pessoas que o habitam e voltando para lá. Logo, não é de se estranhar que o leitor se atraia pela história, afinal é um personagem conhecido e querido, que o leitor se compadece, pois conhecemos de perto como foi sua infância dolorosa.

Maria da Glória é filha de Liodoro, patriarca da família. Ele tem um relacionamento com a nora, Lalinha. A maior parte da história gira em torno da tensão sexual existente entre Lalinha e Liodoro, mas também Maria da Glória o sente, aplacando seus desejos sexuais com Gualberto, vizinho e amigo de Liodoro. Ela é vista por Miguel como “Bonita não dizendo bem: ela é bela, formosa. Quanto tudo nela respira saúde. Natural. Glória: o olhar dado brilhante, sempre o sem-disfarce do sorriso como se abre, as descidas do rosto se assinalando...” (p. 83)

Miguel, a princípio, é receoso de se aproximar de Glória. Durante toda a primeira parte, em que está presente, ele, ao observá-la e refletir se gosta dela, lembra-se do Mutum. Primeiro, quando os dois discutem suas origens, o sertão. (p. 82). Depois, por outros motivos, é possível entender o porquê Miguel fica reticente: no momento em que ele observa que ela tem “faceirice de mulher, mas para agradar diretamente; outras vaidades não mostra. Perto dela, a gente vai sentindo a precisão de viver apenas o momento” (p. 82). Essa faceirice, somada a alegria, dão a Miguel a

3 A edição citada será sempre a Rosa, J. G. (2013). Buriti. Em Noites do Sertão (pp. 79 - 206). Rio de

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impressão de já ter conhecido uma mulher assim, ainda que não possa dizer diretamente quem.

Mas há um elemento que nos ajuda a deslindar de quem Miguel se lembra. Maria da Glória é uma mulher com impulso sexual, mesmo que Miguel, a princípio, veja-a como alguém puro. Ela ainda afirma: “Saí ao Papai...” (p. 82). O leitor sabe que Liodoro cede ao seu desejo sexual pela nora, Lalinha. Maria da Glória não é diferente do pai nisso, tem a mesma expansividade sexual, tanto que, na ausência de Miguel, cede ao desejo também, junto com Gualberto (um substituto do pai).

Esse impulso é velho conhecido de Miguel, que o via na sua mãe, em sua capacidade de ser expansiva também, de trocar de parceiros, como o então Miguilim achou de sua mãe com Luizaltino e depois presenciou com seu tio Terez. Miguel não vê esse impulso mas o reconhece nessa mulher Glória. É por isso que, quando conhece Glória, fica reticente, inseguro. Glória é a representação de sua mãe na expansividade sexual. Miguel a princípio tem receio de se envolver emocionalmente com ela porque tem o medo da rejeição gerado em seu passado, quando sua mãe preferiu outros homens a ele. Essa rejeição retorna na mulher Glória que ele quer se envolver. Miguel, nesse momento, depara-se com mais de um conteúdo do passado: além do medo da rejeição, soma-se a isso sentir-se fragilizado por não ter sido protegido pela mãe e pelo pai. Logo, na relação em que ele pensa viver, a mulher que lhe lembra sua mãe traz à tona esses sentimentos. Miguel então tem que superá-los para conseguir se relacionar com uma mulher. Freud também falou sobre a dificuldade do menino em conseguir desvincular seu amor da mãe para uma outra mulher:

Para o filho, essa tarefa consiste em desligar seus desejos libidinais de sua mãe e empregá-los na escolha de um objeto amoroso real externo. Essas tarefas são propostas a todas as pessoas e é de causar espécie quão raramente as pessoas enfrentam tais tarefas de maneira ideal – isto é, de maneira tal que seja correta, tanto psicológica quanto socialmente. (...) Nesse sentido, o Complexo de Édipo justificadamente pode ser considerado como o núcleo das neuroses. (FREUD, 1915, p. 129)

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Miguel então está sempre na tentativa de superar aquilo que retorna quando pensa em se relacionar com uma mulher. “Quando Miguel temia, seu medo era o da repetição” (p. 114)

Contudo, Maria da Glória parece alheia a esse turbilhão dentro do nosso herói. Ela é também aquilo que ele deseja, beleza e alegria (grifo meu), para que possa conseguir conviver bem com o passado. Ele mesmo compara: “Minha meninice é beleza e tristeza” (p. 139). Miguel, que vai embora e retorna após um ano, espera poder superar as tristezas que carrega desde a infância, com a presença de Glória na sua vida. Ele pretende superar a mulher que não pode amá-lo e protegê-lo como deveria, superar o pai que o maltratava e desamava, superar a vida no sertão que era difícil, com tantas idas e vindas no amor e no tratamento dos pais. Quando Miguel diz

Contra o sertão, Miguel tinha sua pessôa, sua infância, que ele, de anos, pelejava por deslembrar, num esforço que era a mesma saudade, em sua forma mais eficaz. Mas o grande sertão dos Gerais povoava-o, nele estava, em seu amor, carnal marcado. Então, em fim de vencer e ganhar o passado no presente, o que ele se socorrera de aprender era a precisão de transformar o poder do sertão — em seu coração mesmo e entendimento. (ROSA, Buriti, 2013, p. 90)

A superação de suas repressões do passado, que insistem em voltar em Maria da Glória, é o que Miguel quer, e ele consegue realizá-la.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das leituras e da análise das obras destacadas, pudemos compreender a relevância do olhar psicanalítico sobre a infância e os grandes reflexos dela na vida adulta. Miguilim, sensível e profundo, é um menino com muitos sentimentos conflituosos sobre aos pais: amor e ódio caminharam juntos em suas primeiras relações amorosas, além de desproteção e rejeição, o que tornou a vida da criança cheia de conteúdos recalcados. A infância, diante desse olhar abordado, pode ser uma passagem alegre, cheia de boas lembranças, mas é um momento em que muitas tensões se dão. Todos esses sentimentos foram inevitavelmente trazidos até a vida adulta de Miguilim/Miguel, de forma que dificultou seu relacionamento com a moça Maria da Glória.

A teoria psicanalítica propõe uma forma de entender a infância a partir da observação de como são as crianças e como elas reagem, inconscientemente, à convivência familiar, especialmente suas relações com o pai e a mãe. Para Freud, essa fase é tão especial por ser feita de tantos conflitos e dissabores para a criança, que não consegue dar nomes para o que lhes acontece. É nos primeiros meses que o menino percebe, por exemplo, quem e o que lhe traz prazer, ao ser amamentado pela mãe, e não sabe inibir esse prazer, aliás, ainda não precisa inibir, já que o adulto geralmente não percebe que a criança está estimulando-o. Logo, fica perceptível que a mãe é uma fonte de realização necessidades básicas e este pequeno ser se apaixona por ela.

A partir disso, uma série de consequências acontecem. O menino, que se apaixonou pela mãe, precisa lidar com diversos sentimentos que surgem a partir desse fato, mesmo que não entenda e não consiga nomear essas emoções. Por certo, uma das funções do Inconsciente é armazená-las, já que não são aceitas pelo Ego e, portanto, não servem para a vida em sociedade. Mesmo assim, essas emoções e sensações permanecem no inconsciente tentando ser realizadas. A criança passa, então, à tentativa de realização desse amor: quer a atenção da mãe para si e passa a ser rival de outros integrantes da família, como o pai ou alguns dos irmãos. Esse fator é um grande complicador para a vida infantil, pois o que se espera é que o pai e os irmãos sejam sempre amados, mas o menino, além de amar, também os vê como rivais da sua realização amorosa. Portanto, surge o que Freud chamou de

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ambivalência emocional: a criança, que deveria amar a família, uma cobrança social, não administra bem o sentimento de preferência pela mãe, rivalizando com o pai. Além disso, há também o fato de que a sociedade não aceita o incesto, gerando mais desses conflitos.

Todas essas contradições acontecem com Miguilim. Sua ambivalência se mostra quando defende a mãe do pai, mas depois quer ser obediente a ele e às determinações sociais, como rezar, ser temente a Deus e aos mandos dos mais velhos. A personagem demonstra o seu conflito advindo da ambivalência quando diz que vai obedecer ao pai mas ao mesmo tempo não o faz quando está em questão qualquer coisa que se refira a mãe; ou ainda, quando o pai dá-lhe uma surra e o menino só pensa em matá-lo; quando seu irmão, Liovaldo, que é mais velho e não vive no Mutum, fala de suas irmãs, e este briga com o irmão.

Sua preferência pela mãe é clara, quando ele a observa e vê sua beleza, quando sente ciúmes da mãe com Luizaltino, quando ela lhe dá carinho. Percebe-se também seu amor e seu conflito por ela quando ela deixa de lhe dar a atenção devida e ele passa a achar que vai morrer, que a família não se importa com ele. Como aponta a teoria de Freud, a criança, quando sente-se rejeitada pela mãe, pode rechaçar esse amor, e Miguilim rechaça-o criando, por seus sentimentos ambíguos e toda a ambivalência, a ideia de que vai morrer.

Entretanto, há o momento na história em que Miguilim percebe que precisa desligar-se da família. Ele, com a ajuda da mãe, decide ir embora, na tentativa de desvincular-se do tipo de vida que levava e da não realização de seu amor materno, para, assim, poder se tornar um membro da sociedade. Para o menino, a tarefa é desvincular-se e empregar seus desejos e seu amor em uma outra mulher.

O olhar lançado, neste trabalho, para a infância, procurou entender, com o auxílio da teoria psicanalítica, que ela não é uma passagem em que a aprendizagem se dá facilmente, nem seja possível, talvez, precisar se há algo que Miguilim aprendeu. Os acontecimentos se acumulam na vida do menino sem que ele compreenda o porquê acontecem. Contudo, esses eventos são decisivos para que a personagem prossiga na vida adulta da forma como o fez. Os inúmeros desafios da personagem principal estão ligados ao que é misterioso para qualquer ser humano a respeito de si mesmo, que a psicanálise procura desvendar: as relações vividas na infância são modelos para a vida adulta, tanto para aplacá-las quanto para rejeitá-las.

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Miguel tem as marcas de suas relações com sua família e elas ajudam a defini-lo como quem se tornou. Maria da Glória, que, a princípio, não conhecia o passado de Miguel, não entendeu por que no início ele não se aproximou. Ele, internamente, tinha uma experiência de rejeição, feita pela primeira mulher de sua vida, sua mãe, e carregava isso até a vida adulta, até conhecer Glorinha. Para Miguel, “em fim de vencer e ganhar o passado no presente” era superar a rejeição, recalcada nele há tempos, para realizar seu amor com Glória.

O herói de Guimarães Rosa não é de fácil leitura, mesmo para o leitor atento. Conhecer as intempéries na vida de Miguilim/ Miguel é compreender a criança na obra de Rosa como um ser elevado, dotado de profundidade, emoções e continuidade, pois esse nosso herói não se esgota nesse olhar.

A contribuição deste trabalho vem somar-se com a crítica já existente sobre a obra de Guimarães Rosa. Se os aspectos até hoje abordados, como a visão da personagem em que podemos acompanhar a vida do menino, as questões sociais que afetam a vivência da família da criança, ou a força da infância como forma de perceber a história de Miguilim, esta pesquisa contribui em analisar que, antes de todos esses aspectos, é necessário o olhar para como Miguilim se formou, que tipo de influências sofreu, quais as consequências destas, para entender as ações da personagem na história e o que delas são geradas. Acrescenta-se a todos os aspectos que Miguilim é um sobrevivente não apenas da pobreza, mas do passado que pesou em seu presente por sua vivência familiar.

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REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1912). Uma nota sobre inconsciente na Psicanálise. Atas da Sociedade de Pesquisas Psíquicas (p. 7). Rio de Janeiro: IMAGO.

______(1915). Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise - Teoria Geral das Neuroses I. Rio de Janeiro: IMAGO .

LEITE, D. M. (2002). Psicologia e Literatura. São Paulo: UNESP.

RONCARI, L. (2008). Patriarcalismo e dionisismo no santuário do Buriti Bom. Em M. FANTINI, A poética migrante de Guimarães Rosa (pp. 145 - 189). Belo

Horizonte: Editora UFMG.

ROCHA, E. S. (2016). O corpo da noite: uma leitura de Buriti. São Paulo: USP. ROSA, J. G. (2010). Corpo de Baile Volume I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. ______(2013). Buriti. In Noites do Sertão (pp. 79 - 206). Rio de Janeiro: Nova

Fronteira.

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