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Arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso. Organizadores

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Academic year: 2021

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TEcnoiNdiA

Arquitetura, antropologia e

tecnologias indígenas em Mato Grosso

Organizadores

Maria Fátima Roberto Machado

José Afonso Botura Portocarrero

Dorcas Florentino de Araújo Silva

(2)

© 2020. Todos os direitos desta edição reservados para Entrelinhas Editora.

Av. Senador Metelo, 3773, Jardim Cuiabá | Cuiabá-MT – CEP 78030-005 Tel.: (65) 3624 5294 | 3624 8711

e-mail: editora@entrelinhaseditora.com.br | www.entrelinhaseditora.com.br Editora

Coordenação de Produção Designer Gráfico Imagem da Capa Revisão

Maria Teresa Carrión Carracedo Ricardo Miguel Carrión Carracedo Maike Vanni

Detalhe da cobertura da casa Paresí

[ Foto: J. A. B. Portocarrero ]

Marinaldo Custódio

Índices para catálogo sistemático:

1. Povos indígenas : Mato Grosso : Arquitetura indígena 728.098172

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

20-47142 CDD-728.098172

Tecnoíndia : arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso / organizadores Maria Fátima Roberto Machado, José Afonso Botura Portocarrero, Dorcas Florentino de Araújo Silva. -- 1. ed. -- Cuiabá, MT : Entrelinhas Editora, 2020. Bibliografia.

ISBN 978-65-86328-09-7

1. Arquitetura 2. Antropologia 3. Arquitetura de habitação (MT) 4. Arquitetura indígena (MT) 5. Índios (MT) - Habitações 6. Tecnologias de construção (MT) I. Machado, Maria Fátima Roberto. II. Portocarrero, José Afonso Botura. III. Silva, Dorcas Florentino de Araújo.

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Detalhe da cobertura da casa Paresí J. A. B . P or toc arr er o

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Detalhe da cobertura da casa Yawalapiti J. A. B . P or toc arr er o

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O Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas – Tecnoíndia foi criado em 2007, a partir do diálogo entre arquitetura e antropologia, dando continuidade à pesquisa de mesmo nome anteriormente contratada pela Funasa (Ministério da Saúde). Conta hoje com doze anos de ininterruptas atividades dedicadas aos povos indígenas de Mato Grosso, especialmente no es-tudo das suas habitações. O Núcleo Tecnoíndia é ligado institucionalmente ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e tem como sede, no campus de Cuiabá, um módulo (protótipo) da pesquisa Tecnoíndia.

Tendo produzido estudos e projetos que contribuem para aproximar a tecnologia dos po-vos indígenas dos fluxos de informações digitais e desafios da aldeia global, o Núcleo Tecnoín-dia procura seguir trilhando os caminhos explorados por nomes como Hercule Florence e Ayme Adrien Taunay, Karl von den Steinen, Max Schmidt, Paul Ehrenreich, Kurt Nimuendajú, Cândido Mariano da Silva Rondon, Maybury Lewis, Claude Lévi-Strauss, Luís de Castro Faria e tantos que dedicaram parte de suas vidas aos estudos, pesquisas, registros e relatos, legando às nossas ge-rações trabalhos e informações fundamentais acerca das populações indígenas brasileiras. Con-tinuamos seguindo essas trilhas, e um caminho importante tem sido a realização dos seminá-rios Diálogos que, em sua terceira edição em 2017, recebeu os professores Mario Rinke e Mathias Beck, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ).

Os textos aqui apresentados propõem um recorte da história dos pesquisadores do Tecnoín-dia e foram divididos em duas partes: “Lançando Bases” e “Diálogos”. São trabalhos que capturam e que marcam nossas trajetórias em pleno desenvolvimento, parte de uma complexa e viva re-lação, que emite inovadores sinais. A inclusão de alunos indígenas nas universidades reforça a

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crença de que a formação de pensamento crítico entre os próprios povos indígenas abre promis-sores campos, misturando os saberes ancestrais com a ciência moderna.

A antropóloga Dra. Maria Fátima Roberto Machado coordenou a pesquisa que deu o nome ao Núcleo e continua a perquirir os estudos com energia que instiga o grupo, resiliente, enfren-tando e assumindo os desafios. O valor da experiência de campo e o trabalho intelectual a indi-car rumos.

As professoras doutoras Yara Galdino e Dorcas Araújo, ambas com graduação pela UFMT, desde 2011 conduzem pesquisas que tratam da formação dos espaços contemporâneos e em constituição nas aldeias, objetos de referência para políticas públicas em áreas indígenas. A par-tir de 2017 contamos com a colaboração de Leonardo Roberto, agora mestre em Estudos de Cul-tura Contemporânea e também membro do Tecnoíndia, a quem muito agradecemos pela dedi-cação voluntária. Em 2019 o Prof. Dr. Ricardo Castor passou a integrar o núcleo, sendo detentor de produção relevante e reconhecida na área de Teoria e História da Arquitetura, que recebemos com alegria e satisfação.

Ao longo desses anos tivemos o apoio de muitos amigos, nas aldeias e na academia, que nos animaram e incentivaram a prosseguir. Especiais agradecimentos aos professores Carlos Zi-bel Costa e Cristina Sá e ao arquiteto Jucimar Ipaikire, do povo Bakairi, que ainda estudante exe-cutou as maquetes indígenas da coleção do Núcleo e segue junto nos caminhos do Tecnoíndia. Participam desta edição o engenheiro e professor Alberto Rodrigues Dalmaso e os alunos de arquitetura da UFMT Lucas Luan dos Santos e João Francisco Ciochi Souza, que tomaram parte da pesquisa Natureza da Forma, coordenada pela professora Dorcas Araújo. Os textos apresen-tados atestam o compromisso do núcleo em ampliar os estudos com novas gerações de pesqui-sadores e também representam aqui todos os alunos que passaram pelo Tecnoíndia, desde sua fundação.

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Construção de uma casa Xavante. In: GIACCARIA, B.; HEIDE, A. Xavante (auwe uptabi: povo autêntico). São Paulo: Editorial Dom Bosco, 1972.

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Detalhe do corte dos folíolos do babaçu pelos Bororo

J. A. B . P or toc arr er o

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Apresentação

[ p. 9 ]

Os autores

[ p. 17 ]

PARTE I

Lançando bases

CAPÍTULO 1

O grande cerco à casa ancestral

[ p. 23 ]

Maria Fátima Roberto Machado

CAPÍTULO 2

Arquitetura e culturas indígenas no Brasil:

tecnologias apropriadas

[ p. 41 ]

José Afonso Botura Portocarrero

CAPÍTULO 3

Reconfigurações espaciais e infraestrutura

nas aldeias indígenas: em busca de um

entendimento histórico

[ p. 51 ]

Dorcas Florentino de Araújo Silva

CAPÍTULO 4

À contraluz do regionalismo: um estudo sobre

a arquitetura de José Afonso Portocarrero em

Mato Grosso

[ p. 65 ]

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PARTE II

Diálogos

CAPÍTULO 5

Antropologia e tecnologia no Oeste do

Brasil. Pensando com Ingold

[ p. 89 ]

Maria Fátima Roberto Machado • José Afonso Botura Portocarrero • Leonardo Afonso Roberto

CAPÍTULO 6

Tecnologia e design indígena: bases para

uma antropologia aplicada à arquitetura

[ p. 111 ]

Dorcas Florentino de Araújo Silva • José Afonso Botura Portocarrero • Maria Fátima Roberto Machado • Yara da Silva Nogueira Galdino

CAPÍTULO 7

Diálogo entre arquitetura e estrutura

a partir da tecnologia das habitações

indígenas

[ p. 121 ]

José Afonso Botura Portocarrero • Dorcas Florentino de Araújo Silva • Yara da Silva Nogueira Galdino • Maria Fátima Roberto Machado

CAPÍTULO 8

O uso do desenho de observação na

construção de repertório arquitetônico

[ p. 133 ]

João Francisco Ciochi Souza • Dorcas Florentino de Araújo Silva • Yara da Silva Nogueira Galdino

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CAPÍTULO 9

Natureza da forma e as formas da

natureza: o desenhar como meio de

apreensão e entendimento formal

[ p. 147 ]

Dorcas Florentino de Araújo Silva • Yara da Silva Nogueira Galdino • Alberto Rodrigues Dalmaso • Lucas Luan dos Santos

CAPÍTULO 10

Núcleo de Estudos em

Tecnologias Indígenas: uma experiência

de curadoria científica digital

[ p. 159 ]

Leonardo Afonso Roberto

CAPÍTULO 11

“Meu encontro com a arquitetura”.

Ipaikire: um Bakairi arquiteto [ Relato ]

[ p. 171 ]

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J. A. B . P or toc arr er o

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Maria Fátima Roberto Machado

Doutora em Antropologia pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também realizou o seu pós-doutorado, professora apo-sentada pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso e membro fundadora do Núcleo de Estudos em Tecnologias Indígenas – Tecnoíndia, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo / Fa-culdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia, da mesma Universidade.

José Afonso Botura Portocarrero

Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Católica de Santos (1976), especialização em Planejamento Urbano pela de de Dortmund - Alemanha (1985), mestrado em História pela Universida-de FeUniversida-deral Universida-de Mato Grosso (2001) e doutorado em Arquitetura pela Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da UniversiFacul-dade de São Paulo (2006). É Professor Associado IV da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisa-dor e membro fundaPesquisa-dor do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas – Tecnoíndia.

Dorcas Florentino de Araújo Silva

Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso na área de Projeto de Arquitetura e Representação Gráfica. Doutora em Urbanismo desde 2015, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Educação pelo Instituto de Educação da Universi-dade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora do Núcleo Tecnoíndia desde o ano de 2010, e sua atual coordenadora.

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Leonardo Afonso Roberto

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), com especialização em Comunicação e Marketing Digital pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM/SP), mestrando pela Faculdade de Comunicação e Artes, em Estudos de Cultura Contemporâ-nea (ECCO), da Universidade Federal de Mato Grosso. É membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas – Tecnoíndia, do Departa-mento de Arquitetura e Urbanismo / Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia, da mesma Universidade e do Núcleo de Estudos do Contem-porâneo (NEC), do departamento de Comunicação e Artes da UFMT.

Yara da Silva Nogueira Galdino

Arquiteta e Urbanista graduada pela UFMT em 2002, mestre em Ecologia e Conservação da Biodiversidade (UFMT-2006), tendo sua dissertação com-templada com o Prêmio Darrel Posey pela Sociedade Brasileira de Etnoe-cologia. Especialista em Reabilitação Ambiental Arquitetônica e Urbanística (UnB, 2008) e doutora em Urbanismo pelo Prourb-UFRJ (2015). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso e pesquisadora do Núcleo Tecnoíndia – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas desde 2010. Autora do livro Casa e

Pai-sagem Pantaneira – conhecimento e práticas tradicionais, e autora de artigos

tendo como tema paisagens culturais, paisagens fluviais e processos de re-novação urbana em paisagens históricas.

Ricardo Silveira Castor

Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de São Carlos (1996), mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Universi-dade de Brasília (2004) e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Uni-versidade de São Paulo (2013). Atualmente é professor adjunto da Universi-dade Federal de Mato Grosso. Tem experiência na área de Arquitetura e Ur-banismo, com ênfase em Teoria da Arquitetura, atuando principalmente nos seguintes temas: arquitetura moderna, modernização conflitual, moderni-zação em Mato Grosso, revitalimoderni-zação e restauração.

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Alberto Rodrigues Dalmaso

Engenheiro civil graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso (2002). Pós-graduação em Gestão de Projetos e Obras (2006). Experiência na área de Engenharia Civil, com ênfase em Estruturas e Construção Civil e professor de Estruturas do Departamento de Engenharia Civil – UFMT.

Jucimar Ipaikire Rondon

Jucimar Ipaikire é o primeiro indígena arquiteto do Brasil, graduado pela Universidade de Cuiabá (Unic) e é um colaborador voluntário do Núcleo de Pesquisas Tecnoíndia há vários anos, confeccionando maquetes de habita-ções de várias etnias de Mato Grosso. Ele é descendente dos antigos Bakai-ri do Xingu e nasceu na aldeia Pakuera, no município de Paranatinga, onde mantém fortes vínculos familiares. Atualmente, trabalha em Cuiabá como arquiteto na área de saúde indígena, vinculado à Secretaria Especial de Saú-de Indígena (Sesai), do governo feSaú-deral. Sua maquete da casa xinguana está exposta no Centro Sebrae de Sustentabilidade, na capital do estado.

Lucas Luan dos Santos

Estudante do sétimo período da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso. Integrou o Núcleo de Estudos Tec-noíndia em 2017 com a pesquisa “A natureza da forma e as formas da na-tureza”.

João Francisco Ciochi Souza

Estudante do sétimo período da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso. Integrou o Núcleo de Estudos Tec-noíndia em 2017, com a pesquisa “A natureza da forma e as formas da na-tureza”. Atuou como cenógrafo da peça “O auto da compadecida”, desen-volvido pela Cia. de Teatro Primeiro Sinal, e auxiliou em projetos de infraes-trutura e paisagismo comunidades carentes da Colômbia em intercâmbio voluntário.

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Tecnoíndia | Arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso 21

paRte i

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Capítulo 1 | O grande cerco à casa ancestral 23

1

O grande cerco à casa ancestral

MARIA FÁTIMA ROBERTO MACHADO

J. A. B . P or toc arr er o

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Capítulo 1 | O grande cerco à casa ancestral 25

Resumo

As habitações tradicionais indígenas são um patrimônio cultural de Mato Grosso e do Brasil, apesar das investidas históricas e atuais contra os valores e os modos de viver de dezenas de po-vos. Há mais de uma década, pesquisadores das áreas de antropologia e arquitetura da Univer-sidade Federal de Mato Grosso têm procurado responder às necesUniver-sidades locais e estimular as expectativas dos próprios índios, produzindo conhecimento e um acervo de memórias em torno das técnicas construtivas e da cultura do habitar tradicional, abrindo novas possibilidades de es-tudo e de atuação. A presente proposta é concebida como uma oportunidade de reflexão sobre o futuro dessa “arquitetura sem arquitetos” e sobre as iniciativas e os desafios do diálogo com a arquitetura e o design acadêmicos, em um contexto de pressões abusivas para a imposição de outros modos de viver, decorrentes das novas territorializações e da imensa destruição ambien-tal, provocados pela expansão das fronteiras econômicas no Sul da Amazônia e no Centro-Oes-te do Brasil.

Os “nós” da colonização

Mato Grosso é um dos estados com a maior diversidade sociocultural do Brasil. Situado no Sul da Amazônia e nas extensas fronteiras do Centro-Oeste, nele habitam povos que ocupam o imaginário da etnologia mundial desde o século XIX, quando aqui chegaram pesquisadores da grandeza de Karl von den Steinen e Max Schmidt, em busca daqueles que eram considerados pe-los europeus como sendo os últimos seres mais primitivos da terra. São sociedades com culturas

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26 Tecnoíndia | Arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso

e línguas diferentes: Apiaká, Kayabi, Munduruku, Arara, Xavante, Cinta-Larga, Bakairi, Paresí, Ka-yapó, Enawenê-nawê, Mynky, Bororo, Nambikwara, Aweti, Juruna, Kalapalo, Kamayurá, Kuikuro, Matipu, Nahukwá, Mehinaku, Suyá, Tapayuna, Trumái, Txicão, Waurá, Yawalapiti, Rikbaktsa, Iran-txe, Panará, Karajá, Surui, Tapirapé, Terena, Umutina, Zoró, Guató e Chiquitanos. Eles compõem uma reduzida população sobrevivente de quase 37 mil índios, ocupando em torno de 11% do território mato-grossense, que é de 903.357 quilômetros quadrados.

Muito antes da chegada dos exploradores alemães, colonizadores portugueses conviveram com grupos indígenas habitantes dessa imensa região conquistada do império espanhol, em uma empreitada que empurrou as fronteiras do Brasil na direção do então Vice-Reinado do Peru (atualmente Bolívia e Paraguai). Movido pela ambição da metrópole em busca do ouro, um pe-queno grupo de profissionais com ampla e sólida formação em áreas como engenharia, topo-grafia, geografia e astronomia foi encarregado da árdua missão de demarcar os novos limites conquistados e consolidados pelo Tratado de Santo Ildefonso, em 1777. Militares, iluministas, fortemente influenciados pela reforma leiga pombalina na Universidade de Coimbra, esses inte-lectuais práticos deixaram em seus registros oficiais preciosas informações cotidianas, etnográfi-cas, que testemunharam a intensa imersão naquele desconhecido mundo dos habitantes tradi-cionais, dos quais dependiam para o sucesso do empreendimento.

Quando o marquês de Pombal tomou para si a hercúlea missão de “civilizar” o Brasil, imposta pelo regulamento do Diretório dos Índios (que vigorou entre 1757 e 1798), traçou e endereçou convicto a linha reta dos seus princípios transformadores aos agentes da colonização, princípios esses que chegaram às fortalezas e povoações sob os cuidados daqueles profissionais iluminis-tas de Coimbra. Tratava-se de incorporar os “nacionais”, forjando uma nova sociedade nos ser-tões, através da imposição de valores e comportamentos vigentes na cultura urbana portuguesa. Era de extremo interesse da metrópole interferir em todas as instâncias da vida dos índios e, no que pretendo enfatizar aqui, foi a inauguração, em Mato Grosso, do grande cerco históri-co não só aos seus territórios históri-como também à históri-constituição das suas famílias e às suas culturas de habitação. Isso acabou por desagregar vários povos e sua dispersão alimentou, através dos séculos, a imagem que temos hoje de uma sociedade “misturada”, uma nação de mestiços urba-nizados, que assim se reconhece e é reconhecida como sendo formadora da identidade exótica do Brasil.

Entre outras determinações, o Diretório visava combater a “indecência” das casas indígenas, por abrigar em um mesmo ambiente várias famílias, o que contribuía para “relaxar os vícios” da convivência entre os sexos, da educação “torpe” das crianças. Para “desterrar esse

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prejudicialíssi-Capítulo 1 | O grande cerco à casa ancestral 27

mo abuso”, orientava o regulamento a persuasão dos índios para que construíssem as suas ca-sas “à imitação dos Brancos, fazendo nelas diversos repartimentos”, adotando “como Racionais, as leis da honestidade e polícia” (ALMEIDA, 1997). Com as “casas decentes para os seus domicílios, desterrando o abuso e a vileza de viver em choupanas”, aumentariam os diretores a população dos aldeamentos, sabendo que, para afastar a “barbárie”, concorria muito “a nobreza dos Edifí-cios”.

Dentre os registros históricos dos colonizadores que conviveram com os índios, é particu-larmente admirável a qualidade dos relatos do militar e engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra, exibindo os vestígios do seu esforço para sobreviver aos confrontos entre as suas obriga-ções, a inspiração que trazia das luzes do conhecimento científico cultivado em Coimbra e as descobertas cotidianas desnorteadoras que abriam seus horizontes (MACHADO, 2002). Entre os cavaleiros Guaikuru (que saqueavam ou negociavam os animais com os espanhóis), conheceu as amarguras da superioridade bélica de um povo arrogante, uma altivez “ridícula” que até ousava zombar dos colonizadores. Pantaneiros nômades, desprezavam as fadigas da agricultura e trans-portavam no lombo dos cavalos as suas casas, que consistiam em grandes taquaruçus – com os quais faziam a cumeeira – e outras taquaras menores, que serviam de esteios, cobrindo o teto e as paredes com esteiras, armadas “muito brevemente”, dependendo da quantidade de famílias.

Se insisto nessa introdução histórica, que remete ainda aos tempos coloniais, é para expe-rimentar tecer, com os meandros de uma linha condutora, um panorama que torne mais com-preensível uma realidade que sobrevive ainda muito perto de nós, aqui em Mato Grosso, quan-do tratamos de abordar especialmente o tema das habitações indígenas entre os estudantes da nossa Universidade. A despeito dos esforços do nosso pequeno grupo de pesquisas, no Departa-mento de Arquitetura, resta sempre a sensação da vitória do pensaDeparta-mento espraiado ainda pelos desígnios pombalinos: a riqueza cultural das habitações e dos modos de viver dos povos tradi-cionais é tomada como indigna de um olhar mais atento, de um esforço de produção e de reno-vação do conhecimento no interior da academia, quando não é desprezada abertamente, den-tro e fora dela, pela arrogância de grande parte dos administradores públicos, nos seus mais di-ferentes matizes, imbuídos ainda hoje do velho sonho de “civilizar” os índios, sempre com vistas à usurpação de suas terras e de seus recursos naturais.

Como problematizar a visão colonizadora/colonizada que persiste entre nós, que impede o desabrochar de novas reflexões, que viriam, inclusive, a favorecer uma renovação no interior da própria área de conhecimento? Como lidar com a distância que existe entre a abertura que cons-tatamos entre pesquisadores renomados e de grandes centros de pesquisas nacionais e

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mun-28 Tecnoíndia | Arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso

diais, interessados vivamente nos temas relacionados aos povos e às culturas indígenas, e o fe-chamento da mente de muitos jovens e promissores estudantes, influenciados pela visão pre-conceituosa forjada, muitas vezes, na sala de jantar, nas noites calorentas das nossas modernas e ricas cidades da nova colonização?

Há todo um universo, um ambiente que conspira para isso, é certo. Todos podemos dizer que são os tempos que vivemos, e os exemplos do mundo não são dos melhores, considerando a vio-lência das expulsões, rejeições e genocídio por toda parte.

Olhando para nós mesmos, o que nos cabe parece ser continuar teimando, insistindo, per-sistindo, investindo em uma melhor compreensão do que vai na mente dos jovens estudantes, que têm muita informação eletrônica e pouca paciência para o conhecimento nem sempre ca-nônico, carentes de disponibilidade e disciplina para o aprendizado, aliando a essa compreensão um esforço maior nosso para agregar sempre mais qualidade aos desafios que eles mesmos nos impõem. No que cabe especificamente aqui, o desejo é o de tentar uma experiência que chame a atenção para os valores que estão ocultos na socialização desses jovens, enfrentando questões como esta: por que conhecer a arquitetura das habitações indígenas pode ser importante para a minha própria formação de arquiteto? O que eu tenho a ver com isso? Por que deveria investir, mesmo que o meu interesse vá além, muito além, de casas de palha e de gente “estranha”, perdi-da na imensidão perdi-das matas e dos cerrados em volta de mim?

Questionamentos como esses parecem caber não só no estudo das habitações indígenas e da diversidade das suas culturas de morar, mas são pertinentes, e os antropólogos sabem disso, em qualquer outro contexto onde culturas tradicionais estão sendo desprezadas e todo o conhe-cimento se esvai, em nome de algo difuso, interesseiro, provocado pela adesão incondicional ao pensamento hegemônico.

Os índios e suas casas

Ao longo de séculos, a sobrevivência das arquiteturas tradicionais indígenas, especificamen-te em Mato Grosso, foi resultado do inespecificamen-teresse e do esforço exclusivo dos índios. Quanto a isso e muito mais, eles nada nos devem, pois o que se seguiu ao assédio colonial não foi mais do que o completo abandono do Estado, sem qualquer tipo de valorização e assistência, até conhecerem a retomada da expansão das fronteiras econômicas e da violência decorrente, já no século XX. Podemos dizer que, ao longo desse tempo, desde o final do século XVIII, são memoráveis apenas a atuação humanitária de um militar, mato-grossense de origem indígena, o marechal Cândido

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Capítulo 1 | O grande cerco à casa ancestral 29

Rondon, ao implantar linhas telegráficas ao longo dos territórios tradicionais (“morrer se preciso for, matar nunca” era o seu lema), e a criação, em 1961, mais de cinquenta anos depois, do Par-que Nacional do Xingu, por iniciativa de antropólogos e indigenistas do porte de Darcy Ribeiro e de Orlando Villas-Boas, enfrentando grandes interesses das elites regionais. Vivem hoje no Xingu 14 povos, em quase três milhões de hectares, expostos às ameaças ambientais provocadas por grandes projetos econômicos no seu entorno.

O nosso interesse pela arquitetura das habitações indígenas começou a tomar corpo mais concretamente a partir de 2002, quando vencemos um edital público federal e iniciamos um projeto com os custos financiados pelo Ministério da Saúde, para a proposição de unidades fí-sicas de apoio para os doentes e convalescentes indígenas em polos de atendimento da Funa-sa (Fundação Nacional de Saúde). Nos anos que se seguiram, realizamos um amplo trabalho de campo em 26 aldeias, dos povos Paresí, Bororo, Xavante, Umutina, Irantxe, Mynky, Kamayurá e Yawalapiti, esses dois últimos no Parque do Xingu.

Eu já vinha de uma longa experiência anterior, com a realização de pesquisas na área de an-tropologia da Universidade Federal de Mato Grosso e em perícias antropológicas para a Justiça Federal, em questões relacionadas às terras indígenas, além de uma tese de doutorado defendi-da em 1994 no Museu Nacional (UFRJ). O professor José Afonso Botura Portocarrero, do Depar-tamento de Arquitetura, havia defendido em 2001 uma dissertação de mestrado sobre a habita-ção tradicional Bororo, no programa de pós-graduahabita-ção do Departamento de História da nossa universidade, iniciando ali uma longa experiência na proposição de uma arquitetura com inspi-ração vernacular, que o tornou bastante conhecido e respeitado não só em Mato Grosso. Ele é hoje uma referência quando se trata de pensar o significado e as viabilidades de uma arquite-tura de raiz cularquite-tural entre nós. Sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Arquitearquite-tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, publicada em 2010, foi um amadurecimento de todos esses anos de trabalho.

Nosso projeto de pesquisa inicial acalentou um sonho que nutre nossas energias até hoje: valorizar as técnicas construtivas indígenas como sendo viáveis também para sistemas construti-vos existentes na sociedade não indígena mais ampla, apostando na associação entre as culturas nativas e as inovações tecnológicas, para a melhoria tanto das técnicas modernas, importadas de outras realidades, quanto das técnicas acumuladas pelo conhecimento empírico e tradicional.

Um dos resultados mais compensadores dessa experiência de contato e convivência com os índios nas aldeias, que durou ao todo quatro anos, foi a criação de uma acervo fotográfico e digital preservando o design das casas, algumas delas já não construídas para habitação,

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subs-30 Tecnoíndia | Arquitetura, antropologia e tecnologias indígenas em Mato Grosso

tituídas ao longo do tempo por adaptações de casas no modelo dos regionais (por influências de missionários, agentes públicos e vizinhos das áreas rurais), com paredes e cobertura em duas águas, compartimentadas em cômodos, de madeira de serrarias ou de alvenaria. Em nosso caso, fazemos uma inversão do que ocorre no universo da arquitetura, onde o design precede a cons-trução, tornando-se esse acervo uma memória técnica para os próprios índios, que assim o com-preenderam. Em momentos marcantes das viagens pelas aldeias, quando havia necessidade de esclarecer alguma dúvida, os croquis surgiam ali, no pátio das casas, pronta e pacientemente de-senhados no chão, na terra, com o auxílio de uma varinha, feito pela mão do construtor. Isso deu, desde o início, o sentido para o nosso trabalho, contando sempre com a colaboração de todos que, atentos e disponíveis, investiam na transmissão do seu saber. Concluído, o projeto para a Fu-nasa, a despeito dos nossos esforços, não resultou na construção das unidades físicas, frustrando as nossas expectativas, mas abrindo uma série de novas possibilidades.

Não são muitos os arquitetos que foram a campo e se dedicaram ao estudo das casas indíge-nas, grande parte das informações está contida nas observações e nos relatos de antropólogos brasileiros e estrangeiros. Portocarrero já situou em seu livro as principais referências existentes e obrigatórias para os interessados nessa área de conhecimento, e duas delas foram, desde o iní-cio, inspiradoras para nós: o arquiteto professor Carlos Zibel Costa, que produziu sua tese de dou-torado sobre o desenho cultural da arquitetura guarani, defendida na FAU-USP em 1989, tendo sido ele o orientador do doutorado de Portocarrero, e a arquiteta professora Cristina Sá, com es-tudo de campo entre vários povos, cuja dissertação de mestrado sobre a casa dos Xavante, fendida em 1982, também pela FAU-USP, é reconhecida como uma produção pioneira. Além de-les, que sempre estiveram prontos a nos estimular, reconhecemos a influência decisiva do clás-sico Habitação Indígena Brasileira, produzido pelo arquiteto Hamilton Botelho Malhano e pela antropóloga Maria Heloísa Fenelon Costa, publicado em 1987, no volume 2 da Suma Etnológica Brasileira, organizado por Berta Ribeiro e editado por Darcy Ribeiro. Esses trabalhos introduzem os interessados no universo desconhecido das tipologias das habitações, morfologias das al-deias, técnicas de construção, de amarração, organização do espaço, com seus respectivos dese-nhos, respeitando as exigências antropológicas quanto à orientação social e cultural dos povos.

A pesquisa de Portocarrero acentua a importância do desenho como ferramenta de conhe-cimento, como um instrumental à disposição das comunidades indígenas na construção da sua própria memória, através da valorização das suas tecnologias. A construção do acervo de dese-nhos, com seus respectivos registros etnográficos, possibilitou desencadear outras experiências com a participação dos próprios índios, como foi o caso da elaboração das maquetes das casas

Referências

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